Pecado: pecado original: que é?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 365/1992)

 

Em síntese: A doutrina do pecado original não é questão de lingüísti­ca, história geral ou filosofia apenas, mas é assunto de fé, sobre o qual a igre­ja se tem pronunciado sucessivamente desde os primeiros séculos até nossos tempos, quando João Paulo II tem proferido várias catequeses sobre a te­mática. – O presente artigo recolhe sumariamente os dados atinentes ao pe­cado original como a fé da Igreja os ensina, ilustrando-os ainda com trechos do magistério do Papa João Paulo II, este fala não apenas como erudito, mas como aquele a quem Cristo confiou a missão de confirmar seus irmãos na fé (cf. Lc 21,32). A palavra do Santo Padre, nesta temática, tem mais autorida­de do que a de qualquer outro pensador, pois se trata estritamente de um te­ma de fé, que só pode ser autenticamente estudado à luz dos documentos da fé.

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O tema “pecado original” causa dificuldades ao homem moderno. Por isto autores católicos, desejosos de facilitar a aceitação de tal conceito, têm proposto explicações de Gn 3,1-24 que esvaziam o conteúdo da fé e prejudicam o povo de Deus. Verdade é que o texto bíblico respectivo (Gn 3,1-24) apresenta locuções figuradas, que se prestam a interpretações diversas.

Ainda recentemente, num periódico de grande circulação entre os fiéis católicos, lia-se que “Adão e Eva são apenas figuras de retórica, que nunca existiram”; o pecado original não seria um acontecimento real do passado, mas o orgulho e o egoísmo que afeta toda criatura humana: “Quando se diz que nascemos marcados pelo pecado original, o que se entende por isso é que há na pessoa humana, desde o começo, uma tendência a escolher a si mesmo em detrimento dos outros. No Brasil isto se caracteriza pela expres­são ‘levar vantagem em tudo”‘. Em conseqüência, diz o respectivo articulis­ta, “libertar-se do pecado original é algo mais do que derramar água na cabe­ça da criança. É educá-la para a justiça e a misericórdia”. Tais palavras são errôneas ou, ao menos, ambíguas.

Quem assim escreve, esquece que a temática do pecado original foi objeto de prolongados estudos e debates no decorrer dos séculos. O assunto não é apenas da alçada da lingüística, da literatura ou da história antiga; é também assunto de fé, de modo que tem de ser considerado à luz dos vários pronunciamentos do magistério da Igreja efetuados em Concílios ou em do­cumentos dos Sumos Pontífices. – Eis por que, nas páginas subseqüentes, retomaremos a questão do pecado original, levando em conta especialmente as Catequeses proferidas pelo Papa João Paulo II durante o ano de 1986. Ninguém é mais abalizado do que o S. Padre para expor o assunto, pois ele o faz não apenas na qualidade de estudioso e erudito, mas no exercício da função que Jesus lhe confiou: “Confirma teus irmãos na fé” (Lc 22, 32); de preferência a qualquer outro autor, merece atenção a palavra do Papa, a quem Jesus prometeu sua especial assistência (cf. Mt 16, 17-19; Lc 22,31 s; Jo 21,15-17; 14, 26; 16,13-15).

1. Adão e Eva

Não se diga que “Adão e Eva são figuras de retórica, que nunca existi­ram”. Eis o que a propósito a fé ensina:

Deus criou o homem e a mulher… Em hebraico Adam significa ho­mem, e Eva significa Mãe dos vivos. Por conseguinte, Adão e Eva são tão reais quanto o gênero humano é real. Dizer que Adão e Eva nunca existiram é afirmar que os primeiros pais da humanidade não existiram – o que vem a ser absurdo.

Todavia o cristão não é obrigado a crer que o primeiro homem tenha sido tirado do barro. Na verdade, a imagem do Deus Oleiro é freqüente nas literaturas antigas; não pretende entrar no campo das ciências naturais, mas apenas significa que “como o oleiro está para o barro, Deus está para o ho­mem”, ou seja, Deus é sábio, providente, senhor, carinhoso… para com o homem, à semelhança do oleiro que é sábio,. . . carinhoso em relação aos seus artefatos. Mais nada daí se deve depreender.

Quanto à costela de Adão da qual terá sido feita a mulher, é símbolo da identidade de natureza que existe entre o homem e a mulher; esta com­partilha a dignidade do homem, e não é inferior a este. Trata-se, pois, de um símbolo cujo significado é filosófico-teológico, e nada insinua no tocante às ciências naturais.

Os primeiros pais, por conseguinte, podem ter tido origem por evolu­ção da matéria preexistente; quando esta, sob a ação da Providência Divina, estava suficientemente organizada para ser sede da vida humana, Deus terá criado a respectiva alma espiritual e a terá infundido naquele(s) organismo(s), de modo a dar origem ao ser humano; este é um composto de matéria (corpo), para a qual se pode admitir evolução, e alma espiritual, que só pode ter origem por criação direta da parte de Deus.

2. Elevação à filiação divina

Os primeiros homens, logo no início de sua existência, foram eleva­dos ao estado dito “de justiça original”, ou seja, foram enriquecidos por dons que os elevavam ao estado de graça ou à ordem sobrenatural[1]. Tais dons eram:

a) a graça santificante, que tornava os primeiros homens filhos de Deus em sentido muito denso, aptos a viver em comunhão e intimidade com Deus;

b) os dons preternaturais ou dos que aperfeiçoavam a natureza humana:

a imortalidade ou a isenção de morte violenta e arrebatadora como ela é hoje; o fim de vida terrestre do homem seria suave transição para a gló­ria; ver Gn 2, 17; 3, 19;

a impassibilidade ou a ausência de dores geralmente precursoras da morte; cf. Gn 3,16-19;

– a integridade ou a imunidade de cobiças desregradas, que tornam o homem contraditório (vê o que é melhor, e realiza o que é pior; cf. Rm 7, 15-19). Ver Gn 2, 25; 3, 7. 21;

a ciência moral infusa, para que pudesse agir responsavelmente pe­rante o desígnio de Deus.

É de notar que tais dons não implicavam beleza física para os primeiros homens. Eram realidades latentes no íntimo do ser humano; só transpa­receriam no físico se os primeiros pais se mostrassem fiéis ao desígnio de Deus.

Afirma o S. Padre João Paulo II em sua Catequese de 3/9/1986, n° 5:

“A luz da Bíblia, o estado do homem anterior ao pecado aparece co­mo uma situação de perfeição original, expressa, de algum modo, pela ima­gem do paraíso… Se perguntarmos qual era a fonte dessa perfeição, a res­posta será era principalmente a amizade com Deus mediante a graça santifi­cante e os dons chamados em linguagem teológica preternaturais, que foram perdidos mediante o pecado. Graças a tais dons de Deus, o homem, que se achava unido em amizade e harmonia com o seu Princípio, possuía e manti­nha em si o equilíbrio interior; não era angustiado pela prospectiva da deca­dência e da morte. O domínio sobre o mundo, que Deus dera ao homem desde o começo, realizava-se, antes do mais, no próprio homem, como do­mínio de si. E neste autodomínio e equilíbrio consistia a integridade da exis­tência (integritas), no sentido de que o homem era intato e harmonioso em todo o seu ser, porque livre da tríplice concupiscência, que o dobra aos pra­zeres dos sentidos, à ambição dos bens terrestres e à afirmação de si contra os ditames da razão”.

Por conseguinte, a fé não pode esquecer o pano de fundo da história da humanidade. Esta não decorre simplesmente como a história de viventes racionais, mas é, sim, a existência da humanidade chamada originariamente à filiação divina em grau especial e decaída dessa dignidade mediante o pecado.

3. A transgressão

Os dons de Deus aos primeiros homens deviam ser confirmados pela conduta dos primeiros pais ou pelo Sim do homem. Daí a história da árvore da ciência do bem e do mal. Esta é símbolo[2] de um modelo de vida a que o homem se devia submeter pelo fato mesmo de estar elevado a uma dignidade superior; já não competia ao homem ditar as normas racionais, “pruden­ciais”, do seu comportamento, mas, feito filho de Deus em grau especial, de­via viver conforme as normas da nova ordem de coisas a que pertencia. É isto que vem simbolizado pelo preceito de não comer do fruto da árvore da ciên­cia do bem e do mal. O homem devia dar o seu assentimento ao dom de Deus, comportando-se não como autônomo, mas como teônomo.

Diz o S. Padre João Paulo II:

“A presença da justiça original e da perfeição no homem, criado à ima­gem de Deus… não excluía que o homem, como criatura dotada de liberda­de, fosse submetido (como os outros seres espirituais, os anjos) desde o iní­cio à prova da liberdade. A própria Revelação… nos dá notícia da prova fundamental reservada ao homem, prova na qual ele caiu em falta” (Cate­quese de 31911986, n° 6).

Esta falta foi, antes do mais, a do orgulho. Com efeito; o tentador (sob forma de serpente é designado o demônio em Gn 3,1) sugeriu aos pri­meiros pais que, se transgredissem a ordem de Deus, seriam como Deus, árbitros do bem e do mal. A soberba humana foi assim bajulada e cedeu à mentira.

Afirma ainda João Paulo II:

“A árvore (da ciência… ) significa o limite impreterível ao homem e a qualquer criatura, por mais perfeita que seja. Assim, a criatura é sempre ape­nas uma criatura, e não Deus. Por certo, não pode pretender ser como Deus, conhecer o bem e o mal como Deus. Só Deus é a fonte de todo ser, só Deus é a Verdade e a Bondade absolutas, a quem se sujeita e de quem recebe sua identidade o que é bem e o que é mal. Só Deus é o Legislador eterno, do qual procede toda lei no mundo criado, em particular a lei da natureza hu­mana (lex naturae)… Nem o homem nem alguma criatura pode colocar-se no lugar de Deus, atribuindo a si o controle da ordem moral” (Catequese de 101911986, n° 5).

4. Fato Histórico

A fé cristã professa que a desobediência dos primeiros pais elevados ao estado de justiça original foi um acontecimento real, histórico, que condicio­nou a subseqüente história da humanidade. O fato de estar o relato de Gn 3 marcado por uma linguagem simbolista não pode ser invocado para se negar a historicidade da queda original. É o que afirma João Paulo II:

“Na descrição do pecado, trata-se de um evento primordial, isto é, de um fato que, segundo a Revelação, teve lugar no início da história da huma­nidade” (Catequese de 101911986, n° 11).

5. Conseqüências

1) A falta dos primeiros pais é, chamada pecado original originante. Teve conseqüências graves e duradouras.

Com efeito. Os primeiros pais perderam os dons gratuitos que recebe­ram logo depois de criados. Isto quer dizer que

– a morte passou a ser o que ela naturalmente é: arranco violento, que contraria profundamente o instinto de conservação da pessoa;

– os impulsos ou instintos sensíveis não se harmonizam sempre com a razão, mas antecipam-se desordenadamente aos critérios do raciocínio, pro­vocando o que se chama “a cobiça desregrada”;

– o ser humano sofre os choques dolorosos e embates naturais, de­correntes da fragilidade da sua natureza;

– o homem é obnubilado em seu entendimento das coisas de Deus. Este é invisível, ao passo que as criaturas são coloridas, sonoras e mais atra­entes para os sentidos.

A propósito observa o S. Padre João Paulo II

“Toda a existência do homem sobre a terra está sujeita ao medo da morte, que, segundo a Revelação, se acha claramente conjugada com o peca­do original… Sinal e conseqüência do pecado original é a morte do corpo, como desde então ela é experimentada por todos os homens. O homem foi criado por Deus para a imortalidade; a morte, que aparece como um trágico salto no escuro, vem a ser a conseqüência do pecado, quase devida à lógica imanente do próprio pecado, mas principalmente infligida como castigo de Deus. Tal é o ensinamento da Revelação e tal é a fé da Igreja: sem o pecado, o fim da nossa provação terrestre não seria tão dramático.

O homem foi criado por Deus também para a felicidade, que, no âmbi­to da existência terrestre, significava ser isento de muitos sofrimentos, ao menos no sentido da possibilidade de ser isento: posse non pati, como também a isenção da morte tinha o sentido de posse non mori. Como se depre­ende das palavras atribuídas a Deus no Gênesis (Gn 3,16-19) e em outros muitos textos da Bíblia e da Tradição, o pecado original fez que essa isenção deixasse de ser o privilégio do homem. A vida deste na terra foi submetida a muitos sofrimentos e à necessidade de morrer” (Catequese de 8/10/1986, n° 5).

“O Credo do povo de Deus, redigido por Paulo VI, ensina que a natureza humana, após o pecado original, já não se acha no estado em que se encon­trava inicialmente em nossos primeiros pais. Ela está decaída (lapsa), porque privada do dom da graça santificante e também dos outros dons, que no es­tado de justiça original constituíam a perfeição (integritas) da natureza hu­mana. Trata-se aqui não só da imortalidade e da isenção de dons perdidos por causa do pecado, mas também das disposições interiores da razão e da vontade, isto é, das energias habituais da razão e da vontade. Como conse­qüência do pecado original, o homem todo, alma e corpo, foi afetado; se­cundum animam et corpus, precisa o Sínodo de Orange em 529, Sínodo ao qual faz eco o Decreto de Trento, observando que o homem todo foi dete­riorado: in deterius commutatum fuisse.

Quanto às faculdades espirituais do homem, esta deterioração consiste no ofuscamento da capacidade do intelecto para conhecer a verdade e no en­fraquecimento da vontade livre, que se debilitou frente aos atrativos dos bens sensíveis e está exposta às falsas imagens do bem elaboradas pela razão sob o influxo das paixões” (Catequese de 8/10/1986, n° 6s).

2) Despojados dos dons iniciais, os primeiros pais só puderam gerar prole carente, também ela, da justiça original. Ora essa carência é o que se chama pecado original originado. Não é pecado propriamente dito da parte da criança, mas é conseqüência do pecado dos primeiros pais. Deus não é in­justo ao permitir que a criança nasça despojada da graça, pois a graça é gra­tuita; ademais toda criança é naturalmente solidária com seus genitores; re­cebe o que estes têm, e não recebe o que estes não possuem. – Eis as res­pectivas palavras do S. Padre:

“O pecado original não tem o caráter de culpa pessoal em nenhum descendente de Adão. Consiste na privação da graça santificante na natureza humana, que, por culpa dos primeiros pais, foi desviada da sua finalidade sobrenatural. É ‘um pecado da natureza’, que tem apenas analogia com ‘o pe­cado da pessoa’. No estado de justiça original, antes do pecado, a graça san­tificante era como que um dote sobrenatural da natureza humana. Na lógica do pecado, que é a recusa da vontade de Deus, doador deste dom, está im­plicada a perda da graça. A graça santificante deixou de ser a riqueza sobre­natural da natureza humana, que os primeiros pais transmitiram a todos os seus descendentes.

Por isso o homem é concebido e nasce sem a graça santificante. Preci­samente este estado inicial do homem, decorrente da sua origem, constitui a essência do pecado original como uma herança (pecado original originado), “como se costuma dizer” (Catequese de 19/10/1986, n° 5).

O Concílio de Trento afirma que o pecado dos primeiros pais se trans­mite por geração. Isto não significa que o ato de gerar seja pecaminoso, mas, apenas, que é o veículo pelo qual se transmite a natureza humana destituída da graça e dos dons preternaturais.

Por conseguinte, o pecado original na criança não implica culpa da criança, mas resulta da solidariedade dos pequeninos com os seus antepas­sados, especialmente com os primeiros pais. Consiste na ausência da justiça original, que tem por conseqüência o desencadeamento das paixões e co­biças desordenadas.

O S. Padre enfatiza as afirmações do magistério relativas ao pecado original:

“Os textos bíblicos referentes à universalidade e ao caráter hereditário do pecado, quase congênito com a natureza humana concebida pelos res­pectivos genitores, introduzem-nos no exame mais direto da doutrina católi­ca.

Trata-se de uma verdade transmitida implicitamente no ensinamento da Igreja desde o início; foi explicitamente aclarada pelo magistério da Igreja no Sínodo XV de Cartago em 418 e no Sínodo de Orange em 529, principalmente contra os erros de Pelágio (cf. Denzinger-Schönmetzer, Enchiridion Symbolorum et Definitionum, no 222s e 371s. A seguir, na época da Refor­ma protestante tal verdade foi solenemente formulada pelo Concílio de Trento em 1564 (cf. Denzinger-Schönmetzer, Enchiridion n° 1510-1516). O Decreto de Trento sobre o pecado original exprime tal verdade nos termos precisos em que é objeto da fé e do ensinamento da Igreja. Por conseguinte, podemos referir-nos a esse Decreto para daí tirar o conteúdo essencial do dogma católico atinente a tal assunto” (Catequese de 2419/1986, n º 4).

Vê-se, pois, que o tema do pecado original originante e originado não é assunto de livre discussão na Igreja; não está subordinado aos pareceres de teólogos e pesquisadores, mas é objeto de definições por parte do magistério ordinário e extraordinário da Igreja.

O Papa Paulo VI, no seu Credo do Povo de Deus, redigido em 1967, para concluir o Ano da Fé, professou:

“Cremos que em Adão todos pecaram; isto significa que a falta origi­nal, cometida por ele, fez que a natureza humana, comum a todos os ho­mens, caísse num estado em que arrasta as conseqüências desta falta e que não é aquele em que ela se encontrava antes, nos nossos primeiros pais, cons­tituídos em santidade e justiça, e em que o homem não conhecia o mal nem a morte. A natureza humana assim decaída, despojada da graça que a reves­tia, ferida nas suas próprias forças naturais e submetida ao domínio da mor­te, é que é transmitida a todos os homens, e neste sentido é que cada ho­mem nasce em pecado. Professamos, pois, com o Concílio de Trento, que o pecado original é transmitido com a natureza humana, não por imitação, mas por propagação e que, portanto, ele é próprio de cada um”.

6. O Protoevangelho

Não se pode falar do pecado original sem mencionar também o resgate ou a Redenção trazida por Cristo. O primeiro Adão não pode ser entendido senão à luz do segundo Adão. É o que observa João Paulo II:

“Segundo a doutrina católica, fundada sobre a Revelação, a natureza humana não se acha apenas decaída; ela foi remida por Jesus Cristo, de mo­do que onde o pecado abundou, superabundou a graça (Rm 5,20). Este é o autêntico contexto dentro do qual se devem considerar o pecado original e as suas conseqüências” (Catequese de 811011986).

Em vista da Redenção, logo após o pecado dos primeiros pais, o texto do Gênesis refere o Protoevangelho, ou o primeiro anúncio da Boa-Nova. Disse o Senhor Deus à serpente tentadora: “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua linhagem e a linhagem dela. E a linhagem da mulher te es­magará a cabeça, ao passo que tu lhe ferirás o calcanhar” (Gn 3,15).

Jesus Cristo é, por excelência, o descendente da mulher por excelência que é Maria. Ele esmagou a cabeça da serpente ou do tentador, obtendo para o gênero humano a reconciliação com o Pai. Tal reconciliação é comunicada a cada criança que nasce, mediante o sacramento do Batismo. Este confere a graça santificante, não, porém, os dons preternaturais, de modo que o cris­tão batizado é portador da desordem que as paixões naturalmente causam dentro dele; a educação religiosa deve tornar a criança consciente do dom de Deus e ajudá-la a dominar as tendências desregradas (orgulho, egoísmo. . .).

A educação religiosa supõe a graça batismal e colabora com ela. O Ba­tismo é essencial para que dentro do cristão a nova ordem, a filiação divina sobrenatural, se instaure. A vida sacramental traduzida em conduta moral condigna é que faz o cristão, e não apenas o bom comportamento ético.

7. Conclusão

Apresentamos os principais traços da doutrina do pecado original co­mo é professada pela fé da Igreja. Vê-se que é deduzida da Escritura e da Tradição expressas pelo magistério da Igreja; estas instâncias são os autênticos referenciais para se configurar tal doutrina. Não é lícito a um católico encará-la apenas do ponto de vista lingüístico, histórico ou filosófico.

Bem entendida, a doutrina do pecado original não entra em choque com as ciências naturais, pois não interfere nas concepções da paleontologia ou da arqueologia. Nem é absurda aos olhos da razão, mas, ao contrário, põe em evidência o princípio da solidariedade, tão importante para a compreen­são da história humana.

Além do mais, a doutrina do pecado original, se tem seus aspectos sombrios, é também o pano de fundo que melhor ajuda a compreender o mistério do amor de Deus para com os homens, pois “onde abundou o peca­do, aí superabundou a graça” (Rm 5,20).

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NOTAS:

[1] Sobrenatural, no caso, não significa extraordinário ou maravilhoso, mas designa a riqueza espiritual de que eram dotados os primeiros pais.

[2] As literaturas e a arte antigas atestam que, para os povos primitivos, a árvore e a vegetação tinham, não raro, o valor de símbolo religioso. Tenha­mos em vista a ambrásia e o nectar dos deuses nas mitologias. Ainda hoje certas tribos primitivas julgam que produtos vegetais (folhas, frutas. . .) dão união com a Divindade. A crença na eficácia do Santo Daime da Amazônia é um espécimen desse modo de pensar.

 

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