Penitência: mortificação cristã e ascese pagã

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 030/1960)


«Como se distingue a mortificação cristã da ascese pagã?

Não se trata em ambos os casos de uma atitude dualista, contrária à natureza e, por isto, injuriosa ao Autor da natu­reza ou Criador?»

A palavra «ascese» vem de uma raiz grega que significa «exercer, exercitar»; áskesis em grego é o exercício. O termo designava originariamente os exercícios corporais; depois passou a significar qual­quer modalidade de esforços, incutindo geralmente a idéia de tarefa árdua e perseverante; assim na linguagem pré-cristã o filósofo que procurava a sabedoria era tido como asceta; gozavam do mesmo con­ceito o homem que tendia à virtude e o atleta que combatia no estádio.

Os cristãos adotaram o vocábulo áskesis para designar a vida cristã com seus aspectos de combate enérgico; o próprio S. Paulo deu fundamento a tal uso, comparando os discípulos a lutadores da arena ou a atletas que aspiram a uma coroa incorruptível; cf. 1 Cor 9,24-27; 1 Tim 4,7.

Na nomenclatura teológica atual, «ascese» designa o trabalho, inevitavelmente árduo, que o homem deve empreender para mortificar a carne e atingir a perfeição cristã.

Como foi dito à pág. 239 deste fascículo, a mortificação, ou seja, a renúncia aos prazeres lícitos (não somente aos deleites pecaminosos) é absolutamente necessária ao cristão a fim de que o espírito conserve o domínio sobre o corpo e suas tendências naturais.

A razão decisiva pela qual o discípulo de Cristo deve efetuar essa renúncia, é a desordem acarretada sobre a natureza humana pelo pecado dos primeiros pais: as criaturas eram, sim, originariamente harmoniosas; o homem, porém, abusando de seu livre arbítrio, quis contradizer à ordem produzida pelo Criador, sujeitando assim a natu­reza humana a tendências desregradas, as quais só mediante coibição e violência podem ser devidamente contidas.

Essa coibição, por conseguinte, não significa contradição às leis do Autor da natureza; é, antes, colaboração com Este, pois equivale a reprimir a rebordosa geral introduzida no mundo pelo primeiro homem.

Como se vê, o fundamento da ascese cristã, assim concebida, nada tem que ver com o pessimismo de ideologias não cristãs; trata-se de princípios genuinamente cristãos, o que melhor se patenteará após a consideração das três notas características da mortificação cristã: 1) renúncia por amor; 2) meio, e não fim; 3) otimismo relativo, baseado na graça de Deus.

1. Mortificação. . . por amor

Uma observação do célebre historiador A.-J. Festugière exprime muito bem esta primeira nota da ascese cristã :

«Doravante (depois de Cristo) o ato tem menos importância do que a intenção. Discípulos de Zeno (estóico), de Epicuro, de Pitágoras e de Jesus podem realizar o mesmo ato de ascese, entregando-se, por exemplo, ao jejum. O discípulo de Zeno visaria fortificar sua vontade, formando em si uma alma de atleta; o discípulo de Epicuro procuraria principalmente evitar o mínimo excesso que perturbasse a paz do indivíduo; o discípulo de Pitágoras abster-se-ia para se afastar da matéria o mais possível e guardar livre o seu espírito aparentado ao éter. O cristão, porém, jejuaria por amor. ‘Comer’ e ’não comer’ não constituem, para o discípulo de Cristo, senão meios para amar. O essencial é o amor» (L’enfant d’Agrigente) 123s.

O autor, no texto acima, enumera três atitudes não cris­tãs perante o jejum ou a ascese em geral: as duas primeiras (a do estóico e a do epicureu) são egocêntricas, visando jejuar apenas como instrumento de aperfeiçoamento moral ou de garantia da tranqüilidade do sujeito que o pratica. A terceira atitude, a do pitagórico, é dualista, considerando a matéria como algo de deprimente ou mau, algo portanto que deva ser repudiado pela alma sequiosa de pureza.

Ao contrário, a quarta atitude recenseada, a do cristão, num contraste estupendo aparece como expressão de amor. Por conseguinte, o cristão jejua por amor, não, porém, por amor próprio ou amor egocêntrico (como seria o do estóico e o do epicureu) e, sim, como veremos, por amor a Deus.

Mas que tipo de amor seria esse que leva ao jejum?

Jesus o explicou muito bem quando certa vez Lhe per­guntaram: «Por que razão teus discípulos não jejuam…?» O Divino Mestre respondeu: «Por ventura podem estar tristes os companheiros do esposo enquanto o esposo está com eles? Dias virão em que o esposo lhes será arrebatado; então jejuarão» (Mt 9,15s).

Estes dizeres supõem uma concepção clássica da espiri­tualidade bíblica: a Encarnação pode ser comparada a uma união nupcial do Filho de Deus com a carne humana (cf. Ef 5,25-32). Enquanto Jesus vivia visivelmente na terra, fun­dando sua Igreja, essas núpcias iam sendo realizadas; por isto os discípulos de Cristo (tidos como pagens ou companheiros do Divino Esposo) não se podiam entregar a alguma manifestação de luto (como seria o jejum). Após a Ascensão do Senhor, porém, a Igreja se veria na terra à semelhança de uma esposa cujo marido tivesse partido para a pátria ce­leste, isto é, à semelhança de uma viúva. Neste caso, então, o jejum teria (e tem) cabimento como expressão das saudades que a esposa, privada da presença visível do esposo, experi­menta para com este. É por isto que as gerações de cristãos após a Ascensão de Jesus jejuam: visam purificar-se ou re­mover todo obstáculo que possa retardar a união com o Senhor Jesus, Divino Esposo da Igreja e de cada alma cristã; é um amor comparável ao veemente amor de esposa saudosa, que leva os cristãos a jejuar; desejam que em sua natureza humana nada fique que na hora da morte impeça a união consumada com o Senhor; desejam enfim que, ao compare­cerem diante de Cristo no fim deste exílio, nenhuma escória se encontre neles, tornando-se entrave para possuírem plena­mente o Cristo. Com outras palavras: jejuando, os cristãos, cheios de amor a Deus, aspiram a coibir o seu desregrado egocentrismo e assim fazer o purgatório aqui na terra, em vez de o fazer na vida póstuma, entre a morte e a entrada no céu. Toda a ascese cristã, por conseguinte, é movida pelo amor; por isto também está sempre marcada por uma nota de alegria.

2. Mortificação: . . . meio, e não fim

O amor a Deus impele naturalmente o cristão a amar as criaturas de Deus, entre as quais está o próprio corpo humano.

S. Agostinho e, com ele, a tradição posterior, se compraziam em enumerar os quatro objetos da caridade cristã:

Deus, que está acima de nós,

nós mesmos, ou a nossa própria personalidade (imagem e seme­lhança de Deus),

os demais homens que estão em torno de nós,

o nosso corpo, que está abaixo de nós (na medida em que somos caracterizados por uma alma espiritual).

Como se vê, também o corpo do cristão é destinado a ser amado, dentro de justa medida, pois ele foi concebido pelo Criador como instrumento que deve cooperar com a alma na prática da virtude.

Se, por conseguinte, o cristão mortifica o corpo, mortifica-o para o elevar, para lhe assegurar o cumprimento de sua nobre missão, não simplesmente para o destruir.

Era esse pequeno paradoxo que S. Francisco de Assis (†1626) exprimia quando, referindo-se ao corpo, falava ora do «Irmão asno», ora do «Irmão corpo». Asno, sim, é o corpo, enquanto deve servir disciplinadamente à alma, sem jamais lhe tomar a dianteira; irmão, porém, também é o corpo, pois por si ele é uma criatura boa de Deus bom.

S. Francisco de Sales (†1622) incutia a mesma concepção nos seguintes termos:

«Como diz o grande S. Agostinho, a caridade nos obriga a amar nossos corpos de maneira conveniente, isto é, na medida em que são necessários às obras boas, na medida em que constituem parte da nossa personalidade e serão participantes da felicidade eterna» (Tratado do amor de Deus 1. 3, c. 8).

À luz destas considerações, explica-se que os mestres da vida espiritual recomendem gradação e moderação nos exer­cícios de ascese: evitem os discípulos, movidos talvez por seu fervor inicial, esgotar as energias do corpo, inutilizando-o para a prática posterior da virtude.

O Abade João Cassiano (†435), por exemplo, referindo-se à experiência dos Padres do deserto, podia afirmar que «os jejuns excessivos produzem o mesmo mal que a gula» (Col. 2,16).

S. Jerônimo (†421) narra que Piniano e Melânia, no século IV, desejosos de levar uma vida de renúncia, tiveram que temperar suas austeridades, «com receio, diziam eles, de que, se de início cansarmos excessivamente nossos corpos, recaiamos, a seguir, numa vida de delícias» (Vita S. Melaniae 9).

O S. Doutor mesmo sublinhava tal perigo, dizendo que «o asno cansado tende facilmente a escapar pela tangente (divertícula quaerere)» (ep. 107, 10).

S. Anselmo, em seu tempo (†1109), inculcava que a abstinência deve ser «discreta, proporcionada ao temperamento assim como às forças do corpo; se não, longe de ser auxílio, provocaria graves embaraços» (De similitudinibus 193).

A este propósito, convém frisar que, mesmo nos casos nos quais por debilidade de saúde não seja possível realizar grandes violências externas, resta sempre margem para a prática de fecunda austeridade interior.

«Nada é mais simples do que colocar mortificação em nossa conduta de vida. Todos temos ocasião para isso cem vezes ao dia, sem que alguém o observe. Se gosto de sal, não o tomarei; se não gosto, tomá-lo-ei. Caso deseje sentar-me num ônibus, procurarei ficar em pé; se, ao contrário, prefiro ficar em pé, sentar-me-ei. . . Num encontro de sociedade, em vez de me precipitar sobre as pessoas mais simpáticas, irei logo trocar algumas palavras com a senhora idosa ou com o ancião lunático. A todo momento, em nossos pensa­mentos, palavras, ações e omissões, temos ocasião de praticar a mortificação; basta que tomemos consciência disto para verificar como a vontade, aos poucos, exercendo constantemente essas pequenas violências, pode acabar dominando a nossa atividade» (J. Leclercq, Ascesi Cristiana II. 1955, 87).

«Aceitar de bom gosto a tribulação que se apresenta de improviso é muitas vezes mais árduo do que fazer algo de desagradável que tenhamos nós mesmos decidido fazer. Tomar com sorriso uma sopa mal cosida é mais difícil do que ingerir, de caso pensado, um alimento de que não gostemos. De resto, nada é mais mortificante do que a obediência, que nos obriga a dobrar-nos à vontade de outrem» (ibd. 132).

3. Otimismo relativo

As idéias expostas sugerem importante conclusão.

O cristão, ao tratar o seu corpo, não segue:

nem otimismo irrestrito, à semelhança do pagão antigo, cujos ecos se fazem ouvir na época moderna através da filo­sofia de Jean-Jacques Rousseau. Tais pensadores julgavam encontrar na sua própria natureza a capacidade para se aper­feiçoar e consumar;

nem pessimismo total, semelhante ao do hindu ou ao do maniqueu dualista, segundo os quais o ideal da alma humana só se pode realizar fora do corpo, que por isto há de ser sistematicamente destruído.

Na verdade, o cristão, em relação ao corpo, se inspira de um pessimismo moderado ou de um otimismo relativo. Com efeito, na medida em que olha para si, não pode deixar de afirmar sua miséria e, por conseguinte, sua inépcia para con­seguir a perfeição e a santidade; Jesus, aliás, dizia:

«Sem Mim nada podeis fazer» (Jo 15,5). — O discípulo de Jesus, porém, sabe que Deus se dignou olhar para a sua miséria e que, por conseguinte, ele tem que erguer um olhar confiante para o Pai do Céu; daí se origina uma atitude de otimismo, otimismo, porém, totalmente fundado na benevolência ou na graça do Redentor. A Moral cristã, em última análise, é sorri­dente, e não melancólica, porque se baseia no amor de Deus, amor que é todo-poderoso!

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