(Revista Pergunte e Responderemos, PR 315/1988)
Em síntese: A vida cristã não pode dispensar a renúncia e a mortificação, visto que dentro da natureza humana existem tendências desregradas, as quais não se harmonizam com o ideal que a razão e a fé concebem. É necessário, pois, vencer ou extirpar a desordem interior. Isto se pode obter mediante a aceitação paciente e amorosa das tribulações desta vida, que a Providência Divina sabiamente dispensa aos homens; mas requer-se outrossim que o cristão (com a graça divina) saiba empreender renúncias espontâneas até mesmo a coisas lícitas (mortificações ou penitências), pois estes exercícios fortalecem a vontade do homem e a habilitam a resistir mais tenazmente às tentações e más inclinações.
Os exercícios de penitência não são fins, mas são meios. São meios que outrora assumiam características hoje talvez menos praticáveis (severos jejuns, longas vigílias noturnas, peregrinações a pé…); mas, como quer que seja, hão de ser exercícios significativos e eficazes, aptos a corroborar a vontade na demanda da virtude e na fuga do pecado. – Ascese significa originariamente o treinamento que o atleta espontaneamente empreendia (mesmo sem ter adversário) para que, no dia da competição, pudesse estar adestrado e vencer o páreo. Sem treinamento prévio e habitual, não pode haver esperança de vitória no estádio. Assim também, sem ascese ou penitência não pode haver progresso na vida espiritual do cristão.
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Tendo em vista as condições de vida dos homens de nossos tempos, a Igreja reformulou as suas normas relativas à prática da virtude da penitência. Esta reforma suscitou certa hesitação em muitos fiéis, os quais às vezes passaram a crer que já não se pode nem deve praticar a penitência; esta ficaria reservada para certas vocações especiais na Igreja ou estaria ligada a tipos de cultura que hoje não mais existem.
Ora estas concepções têm graves conseqüências na vida cristã… Na verdade, as normas da Igreja são claras e aptas a promover a santificação dos fiéis que lhes queiram dar atenção. Eis por que, neste artigo, consideraremos a Constituição Apostólica Paenitemini de Paulo VI, emanada logo após o Concílio do Vaticano II (17/02/66) e assumida pelo atual Código de Direito Canônico, além de alguns documentos congêneres da Igreja que orientam o povo de Deus em matéria penitencial.[1] Para facilitar a exposição do assunto, procederemos por perguntas e respostas.
1. A doutrina da Igreja
P. – Afinal que se entende por penitência?
R. – Responde o S. Padre Paulo VI no seu sermão de Quarta-feira de Cinzas de 1967:
“A penitência é um corretivo da nossa maneira de viver. Bem o sabemos: nossa natureza não é perfeita. Não funciona bem. Traz em si profunda desordem interna, à qual se deve dar remédio. Eis por que todos quantos entoam a apologia… da substancial bondade da vida humana, são profetas de ilusões e, muitas vezes, de desilusões, pois nossa vida, em seu desenvolvimento e em seu funcionamento, abandonada a si própria, sem esses corretivos e sem tal disciplina que redimensionam… a expressão de toda a nossa atividade, a vida não seria boa e, por isto, não seria nem mesmo realmente feliz”.
Como se vê, penitência vem a ser a purificação e o burilamento da natureza humana desregrada e incoerente. Quem não aceita essa disciplina e diz Sim a todos os seus impulsos, não se comporta à altura de sua vocação de filho de Deus; consequentemente não pode ser feliz, pois é constantemente humilhado e traído por seus afetos desregrados, como nota o Apóstolo:
“Não consigo entender o que faço, pois não pratico o que quero e faço o que detesto… O querer o bem está ao meu alcance, não, porém, o praticá-lo… Eu me comprazo na lei de Deus segundo o homem interior, mas percebo outra lei nos meus membros, que peleja contra a lei da minha razão e me acorrenta à lei do pecado, que existe em meus membros. Infeliz de mim!” (Rm 7,15-24). Ver também GI 5,16-26.
P. – Em que consiste a penitência?
Responde Paulo VI no mesmo sermão:
“Se perguntássemos aos estudiosos em que é que consiste, ouviríamos responder que o primeiro elemento é a metánoia, isto é, uma mudança interior. Que é mais fácil: mudança interior ou mudança exterior? É mais fácil, por exemplo, renunciar a alguma coisa que de fora cerca a nossa vida ou transformar o coração, nossos pensamentos, instintos, idéias, aquele tesouro de interioridade que todos obstinadamente guardam no íntimo, dizendo: ‘Eu sou assim; são estes os meus princípios, o meu modo de pensar, a minha educação e – a grande palavra – a minha personalidade’?”
O apelo à metánoia ou à mudança de mente, à conversão interior, está na primeira pregação de Jesus: “O Reino de Deus está próximo. Metanoeite (convertei-vos) e crede no Evangelho” (Mc 1, 15). É, pois, no íntimo de cada um de nós que começa a tarefa de purificação; o comportamento exterior decorrerá do nosso modo de pensar e de amar. A metánoia é algo de mais exigente e difícil do que doar os bens que nos são extrínsecos (dinheiro, vestes, comida…); alguém pode praticar muitas obras de caridade sem ter realizado uma profunda e séria mudança interior.
Continua o S. Padre:
“A Igreja, pronta e solicitamente, nos admoesta: é para a metánoia que deves dirigir a tua atenção e os teus esforços. É necessário deveras renovar o espírito. A penitência não significa um regresso na vida e na pedagogia moderna; realiza, antes, um progresso, visto que torna o homem mais interior, e é mais exigente quanto a… tornar a personalidade tal qual deve ser: cristã… Importa morrer interiormente, se queremos renascer. É necessário ter a coragem… da acusação de si e não dos outros. Devemos reconhecer plenamente: sou fraco, sou ilógico, fui mau e cometi a falta que devo deplorar na consciência… dizendo sinceramente mea culpa“.
Por conseguinte, a penitência nada tem que ver com masoquismo ou morbidez psíquica; ao contrário, é a atitude heróica e magnânima de quem deseja libertar sua personalidade de qualquer forma de escravidão interior. Dizer Pequei e tirar daí as conseqüências é muito mais nobre e belo do que pôr máscaras que me façam passar por algo que não sou.
P. – A penitência é apenas interior ou espiritual?
R. – “Em tempo algum pode a verdadeira penitência prescindir de uma ascese também física..Com efeito; todo o nosso ser, alma e corpo… deve participar ativamente deste ato religioso, com que a criatura reconhece a santidade a majestade divina.
A necessidade da mortificação do corpo aparece claramente se se considera a fragilidade da nossa natureza, na qual, após o pecado de Adão, a carne e o espírito têm desejos contrários entre si. Tal exercício de mortificação do corpo – bem longe de qualquer forma de estoicismo – não implica uma condenação da carne, carne que o Filho de Deus se dignou de assumir; antes, a mortificação visa à libertação do homem, que, em razão da concupiscência, freqüentemente se acha como que agrilhoado pela parte sensitiva do seu ser; através do jejum corporal, o homem readquire vigor, e o ferimento infligido pela intemperança à dignidade da nossa natureza é curado pela medicina de uma salutar abstinência” (Const. Paenitemini n° 20).
Na verdade, somos psicossomáticos, de modo que tudo o que é autenticamente humano se traduz sempre em expressões corpóreas e sensíveis. Daí a necessidade de que a conversão interior assuma formas exteriores; o próprio Deus se encarrega de nos enviar ocasiões de renúncia corpórea (moléstias físicas, flagelos naturais, penúria material…), mas, como se dirá mais adiante, é oportuno que o próprio cristão empreenda espontaneamente exercícios de penitência física, como o jejum, a abstinência, a vigília noturna… pois tais práticas treinam e fortalecem a vontade, habilitando-a a dizer Sim ou Não decididos no momento da tentação ou de uma encruzilhada.
Sabemos que o jogador de futebol treina seus músculos, mesmo que não tenha adversário, para poder jogar em competição no dia previsto; se ele não treina espontaneamente, pode perder a esperança de vencer na disputa do torneio. Assim também o soldado faz exercícios de tiro, de marcha, de acampamento… mesmo que não esteja em guerra, porque, se não os praticar, não poderá enfrentar o adversário em campo de batalha. – Ora o cristão é um atleta e um soldado de Cristo (cf. 1Cor 9,24-27; 2Tm 2,3-5); por isto também deve treinar espontaneamente a sua vontade, com a graça de Deus, dizendo Não (a um prazer supérfluo) quando lhe seria lícito dizer Sim, a fim de fortalecer a vontade, adestrando-a a resistir aos assaltos das tentações.
Os antigos cristãos realizaram a ascese (tal é o nome grego desse treinamento) com grande coragem, entregando-se a prolongadas práticas de jejum e vigílias. Em nossos dias, as condições gerais de saúde não permitem ir tão longe, pois é necessário ter forças físicas e psíquicas capazes de enfrentar o desgaste do trabalho e dos incômodos de cada dia. Todavia nem por isto está abolida a penitência na Igreja (nem o poderia estar). Eis o que observa a Constituição Paenitemini:
“O caráter preeminentemente interior… da penitência… não exclui nem atenua… a prática exterior de tal virtude, antes evoca com particular urgência a necessidade desta, e induz a Igreja – sempre atenta aos sinais dos tempos – a buscar, além da abstinência e do jejum, expressões novas, mais aptas a realizar, segundo a índole das diversas épocas, o próprio fim da penitência” (n°18).
Assim quem não pode jejuar rigorosamente, faça um jejum mitigado; abstenha-se de alimentos supérfluos; adie a hora de satisfazer a justos desejos; reze um pouco mais no começo ou no fim do dia…
P. – A penitência assim entendida constituiria uma entre outras correntes de vida cristã? Seria algo deixado à escolha de cada um?
R. – Não. A Constituição é muito enfática a tal propósito: “Por lei divina, todos os fiéis são obrigados a fazer penitência” (n° 35 § 19).
Por lei divina… Isto quer dizer, que se trata de um preceito do próprio Deus. Com efeito; somos todos chamados, antes do mais, a ver Deus face-a-face; esta é a razão pela qual fomos criados. Devemos, pois; preparar-nos a esse encontro final e supremo com o Senhor Deus. Ora ninguém pode ver a Deus face-a-face se traz em si resquícios de pecado (Deus é três vezes santo; cf. Is 6,3). Daí o imperativo – decorrente da nossa vocação mais fundamental – de nos corrigirmos ou de nos libertarmos das sombras do pecado para poder ver a Deus. E – notemos bem – a ocasião normal de realizarmos essa purificação é a vida presente, e não o purgatório póstumo (este é uma concessão extraordinária de Deus feita à fragilidade das criaturas).
Todos os fiéis… – Por conseguinte, clérigos, Religiosos ou leigos, todos, sem exceção, estão obrigados à prática da penitência. Não há vida cristã que não seja penitente; seria despropositado julgar que no século XX, tão marcado pelo humanismo, se possa pensar num ideal de vida cristã isento de penitência. O que pode mudar, são as formas de mortificação, e não a realidade desta.
P. – Como satisfazer ao preceito divino da penitência?
R. – Eis a resposta da Constituição Paenitemini:
“A Igreja convida todos a fazerem acompanhar a conversão interior do – espírito com o exercício voluntário de atos exteriores de penitência:
a) Insiste, antes de tudo, em que se exerça a virtude da penitência na fidelidade perseverante aos deveres do próprio estado, na aceitação das dificuldades provenientes do próprio trabalho e da convivência humana, na paciente suportação das provações da vida terrena e da profunda insegurança que a permeia.
b) Aqueles membros da Igreja que são atingidos pelas enfermidades, pelas doenças, pela pobreza, pela desventura, ou que são perseguidos por amor da justiça, são convidados a unir suas dores ao sofrimento de Cristo, de modo a poderem não somente satisfazer mais intensamente o preceito da penitência, mas também obter para seus irmãos a vida da graça e para si mesmos aquela bem-aventurança que no Evangelho é prometida aos que sofrem” (n.º 23-25).
Ao abordar o modo de fazer penitência, verifica-se que a Igreja aponta, em primeiro lugar, a aceitação generosa da dureza da vida cotidiana, da qual ninguém está isento (trabalho, convívio com o próximo, doenças, pobreza…). A Providência Divina se encarrega de oferecer-nos tais oportunidades de santificação. Importa, pois, aceitá-las não em atitude meramente “resignada e cabisbaixa”, mas com o coração dilatado, porque se trata de graças de Deus… O texto indica dois tipos de fecundidade de tais provações:
1) configuram o paciente a Cristo, dando-lhe o penhor de participação mais íntima na Páscoa do Senhor; quem padece com Cristo, ressuscitará e triunfará com Ele;
2) tornam o cristão corredentor com Cristo (“‘obtém para seus irmãos a vida da graça”, diz a Constituição); habilitam-no a atender a irmãos afastados da vida reta, imersos no pecado e impermeáveis à Palavra de Deus; não falando, mas configurando-se a Cristo Crucificado, o cristão pode ser missionário junto a essas pessoas; sabemos que a Providência Divina quer salvar a uns mediante outros, servindo-se especialmente da rede de vasos comunicantes que é a Comunhão dos Santos.
Acrescenta o texto da Constituição:
“Afora as renúncias impostas pelo peso da vida cotidiana, a Igreja convida todos os cristãos indistintamente a corresponderem ao preceito divino da penitência por atos voluntários” (n.º 27).
Tais atos voluntários ou espontâneos hão de ser programados por cada fiel de acordo com o seu quadro próprio de vida espiritual: cada qual deve fazer o diagnóstico do seu relacionamento com Deus e o próximo; deve colocar o dedo em suas chagas ou em seus pontos nevrálgicos e procurar consequentemente o remédio adequado ou o antídoto: a inclinação ao abuso da palavra exigirá mais rigorosa prática do silêncio, a tendência à impaciência suscitará especial atenção ao próximo, a intemperança levará à abstinência em pontos bem definidos, etc[2]. Além do mais, o jejum, a sobriedade, a vigília noturna, a privação de prazeres (especialmente quando isto redunda em ajuda ao próximo)… são sempre recomendáveis, qualquer que seja a problemática pessoal de cada cristão. Diz o texto da Constituição:
“Conservando – onde quer que ele possa ser oportunamente mantido — o costume (observado por tantos séculos com normas canônicas) de exercer a penitência mediante a abstinência de carne e o jejum, a Igreja tenciona corroborar também, com suas prescrições, os outros modos de fazer penitência” (n.º 32).
P. – No plano estritamente jurídico, quais são as normas da Igreja atinentes à penitência?
R. – A Constituição Paenitemini responde nos seguintes termos (que foram confirmados pelo Código de Direito Canônico):
“37º O tempo da Quaresma conserva seu caráter penitencial.
38º Os dias de penitência a ser obrigatoriamente observados em toda a Igreja são todas as sextas-feiras do ano e a quarta-feira de Cinzas.
39º Salvas as dispensas previstas pelo Direito, deve-se observar abstinência em todas as sextas-feiras do ano que não caiam em festa de preceito, ao passo que a abstinência e o jejum se observarão na quarta-feira de Cinzas… e na sexta-feira da Paixão e Morte do Senhor.
40º A lei da abstinência proíbe o uso de carne, mas não o uso de ovos, de laticínios e de qualquer condimento mesmo de gordura animal.
41º A Lei de jejum obriga a fazer uma única refeição durante o dia, mas não proíbe tomar um pouco de alimento pela manhã e à noite, atendo-se – no que respeita à quantidade e a qualidade – aos costumes locais aprovados.
42º À lei da abstinência estão obrigados os que completaram quatorze anos. À lei do jejum estão obrigados todos os fiéis, dos vinte e um anos completos ao sessenta começados.
43º No tocante aos de idade inferior, apliquem-se os pastores de almas e os pais, com particular cuidado, a educá-los no verdadeiro sentido da penitência”.
No Brasil, a Conferência Nacional dos Bispos, usando de faculdade concedida pela Santa Sé e tendo em vista as circunstâncias de vida da população local, houve por bem determinar:
“Nas sextas-feiras do ano (inclusive as da Quaresma, excetuada a sexta-feira Santa) fica a abstinência comutada em outras formas de penitência, principalmente em obras de caridade e exercícios de piedade”.
Podemos agora passar a uma
2. Conclusão
De quanto foi explanado na leitura dos documentos da Igreja, podemos reter o seguinte:
1) A penitência – corretivo da nossa vida – é inerente e obrigatória à existência do cristão. Não há vocação cristã que não inclua a prática da penitência, pois somos todos chamados a ver a Deus face-a-face, o que não é possível a quem traga tendências desordenadas.
2) Embora a penitência seja, antes do mais, conversão interior, ela não dispensa expressões corpóreas, dado que o ser humano só se realiza plenamente nesta vida dentro de formas corpóreas.
3) Dessas maneiras corpóreas de fazer penitência, muitas nos são impostas pela Providência Divina, que assim nos estimula a fazer o que a nossa natureza lerda não teria coragem de praticar (infelizmente, porém, nem sempre o cristão está alerta para tais “visitas do Senhor” e fecha-se a elas). Todavia a Igreja julga necessário que cada cristão empreenda obras espontâneas de penitência; a própria Igreja, aliás, impõe levíssima prática de jejum e abstinência e deixa à consciência de cada um fazer o diagnóstico de sua vida espiritual a fim de aplicar-lhe os remédios necessários. Este dever pessoal – que é uma lei de vida – deve estar bem presente ao espírito de cada fiel, e merecerá ser levado muito a sério, pois se trata da Grande Tarefa da vida cristã (preparar a veste nupcial para a ceia da vida eterna).
4) Nesse contexto, caso se pergunte se a vida do cristão leigo no mundo é vida de penitência, compreende-se que não há outra resposta senão a positiva. Quanto mais o cristão queira viver a “conversão dos seus costumes”, tanto mais há de se empenhar por praticar a morte ao velho homem, sem a qual é impossível a formação da nova criatura ou do Cristo Jesus em nós. Se os documentos jurídicos atualmente pouco falam de penitência, não deixa de ser imperiosa a necessidade de purificação interior, mediante práticas adequadas, que cada irmão e irmã deve assumir em consciência diante de Deus.
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NOTAS:
[1]Tal documentação está reunida no fascículo –Penitência –, n° 173 da série “Documentos Pontifícios” da Ed. Vozes.
[2] No plano da saúde física, qualquer dor ou sintoma de desequilíbrio provoca logo a procura de diagnóstico e do tratamento adequado. – Somente na vida espiritual é que haveria displicência?