(Revista Pergunte e Responderemos, PR 455/2000)
Em síntese: Aos 31/10/99 foi assinado um Acordo entre Luteranos e Católicos, que a imprensa divulgou em termos inexatos, lançando perplexidade em muitos leitores. Daí o propósito, dos três artigos seguintes, de esclarecer a questão, começando por evidenciar o pensamento de Lutero, muito pessimista em relação à natureza humana ferida pelo pecado e incapaz e produzir o bem; o homem aí é tido como escravo do pecado ou invencivelmente pecador.
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É notório que aos 31/10/99 foi assinado em Augsburgo (Alemanha) um Acordo entre Católicos e Luteranos a respeito da justificação ou da maneira como o homem se pode tornar amigo de Deus. Tal documento foi inadequadamente apresentado pela imprensa aconfessional, de modo a confundir as mentes. Eis, por exemplo, o que refere o jornal O GLOBO em sua edição de 1º de novembro de 1999, p. 22:
“Lutero – que também representava os interesses da emergente burguesia alemã – defendia que o homem é salvo apenas por sua fé. Para a Igreja Católica, porém, também eram levadas em conta as suas boas obras…
Os dois lados recuaram em posições fundamentais. Em seu ponto mais importante, o documento diz; ‘Junto confessamos: só pela graça e pela fé na ação salvadora de Cristo e não com base em nossos méritos, somos aceitos por Deus e recebemos o Espírito Santo, que renova nossos corações e nos habilita e conclama a realizar as obras de bem'”.
Quem lê tal notícia, pode conceber a impressão de que houve concessões de parte a parte, como as pode haver entre partidos políticos, a fim de constituírem uma Frente Única, por exemplo, contra o ateísmo – o que seria totalmente falso. A Igreja sabe que não lhe é licito alterar o depósito da Revelação como se fosse filosofia humana; o que ela deseja e tem feito, é dialogar com os irmãos separados para tentar dissipar equívocos e preconceitos. Tal foi justamente o caso ocorrido nos últimos tempos entre católicos e luteranos.
Quanto ao texto acima transcrito, professa uma verdade que sempre foi proclamada por católicos e luteranos: ninguém merece por suas boas obras tornar-se justo ou amigo de Deus. A isto é acrescentada na Declaração Conjunta a necessidade das boas obras para que o cristão persevere na amizade de Deus; cada qual será julgado na base do seu comportamento frente aos irmãos (ou ao Cristo) faminto(s), encarcerado(s), enfermo(s), como observa Jesus em Mt 25, 31-46. É o que se depreenderá com mais clareza dos textos que apresentaremos no terceiro artigo desta série, texto referente ao citado Acordo.
Passemos agora ao pensamento de Lutero. No artigo seguinte consideraremos a resposta dada pelo Concílio de Trento e no terceiro voltar-nos-emos para o Acordo recente.
Como pano de fundo, seja abordado o pensamento nominalista.
1. O Nominalismo
Nominalismo é a doutrina filosófica dos séculos XIII / XIV que afirma não haver conceitos gerais ou universais, mas apenas palavras que designam realidades individuais. Assim, por exemplo, o conceito de flor é um universal que se realiza concretamente na rosa, no cravo, na violeta, no lírio… Ora o Nominalismo professa que a essa palavra flor nada corresponde na realidade; é mero sopro de voz.
O Nominalismo professava também o voluntarismo, doutrina que atribuía à vontade predominância sobre a inteligência. Em conseqüência dizia que as verdades metafísicas e morais dependem unicamente da vontade de Deus; assim dois mais dois seriam quatro unicamente porque Deus o quer; poderiam valer três, se Deus o quisesse. Tais idéias foram, já antes de Lutero, aplicadas à doutrina da justificação ou do tornar-se amigo de Deus.
Aliás, já Duns Scotus O.F.M. (+1308) havia ensinado que, de potentia absoluta (a rigor, considerando-se o poder de Deus como tal), Deus poderia receber na bem-aventurança celeste um pecador sem lhe infundir a graça ou manchado por pecados não absolvidos; só não o faz porque estabeleceu a ordem de coisas vigentes ou de potentia ordinata:
“Deus – de potentia absoluta – não está obrigado a infundir a graça que vivifica a alma, para justificar o ímpio e acolhê-lo na vida eterna, pois Deus não vinculou o seu poder… a alguma criatura” (Duns Scotus, Reportata Parisiensia I, distinção 17, questão 1).
Ora os nominalistas, movidos por sua aversão à essência e pelo senso do todo-poderoso arbítrio divino, desenvolveram o princípio de Duns Scotus: Deus poderia receber na glória celeste uma alma que não tenha a graça divina, embora na verdade não o faça; poderia deixar que coexistam na mesma alma o pecado (falta de amor) e o amor, mesmo que Ele na realidade não o permita; poderia acolher como meritórios atos praticados por um pecador sem amor, embora hoje de potentia ordinata o amor seja necessário para que haja mérito. Em suma, Deus poderia justificar (tornar justo ou amigo de Deus) um pecador sem o transformar interiormente, embora Ele tenha decidido transformar interiormente os pecadores.
Pois bem. Lutero e os reformadores do século XVI afirmaram que Deus faz realmente (de potentia ordinata) o que Ele faria de potentia absoluta segundo os nominalistas.
À influência nominalista acresce-se a da devotio moderna (devoção moderna). Oriunda nos Países-Baixos em fins do século XIV por obra de Gerard Grote e dos Irmãos da Vida Comum, a devotio moderna privilegiava os sentimentos e a experiência religiosa subjetiva acima da razão, da qual a Escolástica decadente abusava, caindo em raciocínios sutis e dialética. Ora Lutero e os reformadores se voltaram contra o “racionalismo” escolástico, exaltando a experiência religiosa subjetiva e a simplicidade do linguajar bíblico. Lutero tinha uma personalidade fortemente emotiva e sentimental, mas sinceramente religiosa.
Consideremos explicitamente o seu modo de pensar.
2. Lutero e suas concepções
Antes do mais, convém notar a
2.1. Evolução do pensamento de Lutero
O pensamento de Lutero foi-se desenvolvendo aos poucos na base de três fatores principais:
a) educação severa por parte do pai, que se irava freqüentemente e surrava o filho a ponto de amedrontá-lo;
b) formação filosófica nominalista, forjada pelas sentenças de Guilherme Ockam (1270-1342). O voluntarismo dessa escola muito contribuiu para alimentar o medo em Lutero; diante de Deus, cuja vontade é insondável e está acima da lógica, perguntava Lutero: estarei predestinado a salvar-me ou não? – Esta interrogação lhe suscitou fases de grande angústia; Lutero se via entre duas sentenças conflitantes em sua alma: a vida cristã e a salvação são incompatíveis com o pecado (sentença bíblica clássica), mas o pecado é inevitável, pois a própria concupiscência desregrada já é pecado (sentença da escola agostiniana extremada).
c) entrada no convento dos frades agostinianos de Erfurt sem ter vocação ou por razão emotiva; tendo escapado da morte numa tempestade em que um raio quase o fulminou, prometeu a Santa Ana que se faria frade. E fez-se frade quinze dias depois, embora dissuadido por seus amigos.
No convento Lutero sentiu o contraste entre o ideal de uma vida observante e fiel à Regra e a sua realidade pessoal. Procurou resolver o problema mediante práticas ascéticas e orações; queria viver como “um monge irrepreensível”. Sentia-se diante de Deus inquieto em sua consciência e pecador; não podia encontrar paz nas suas obras expiatórias.
Em 1505, com pouco menos de vinte anos de idade, Lutero entrou no convento. Em 1519 descobriu a solução para o seu caso, solução que lhe ia aflorando à mente desde 1514: em Rm 1,17 Frei Martinho lia: “O justo vive da fé”; esta bastaria para torná-lo amigo de Deus, sem necessidade de boas obras; seria uma fé não intelectualizada, mas fé fiducial, isto é, confiante, que lhe permitiria sentir-se amigo de Deus em sua situação concreta.
Eis agora, em síntese, as grandes linhas da doutrina que decorreu dessa evolução:
2.2. Assim pensava Lutero
a) Após a culpa de Adão, o homem está intrinsecamente afetado e irremediavelmente vendido ao pecado. Assim o antigo pessimismo agostiniano se exprime em Lutero.
b) Conseqüentemente a vontade humana não é livre, mas servidora do pecado. É o que se lê na obra De servo arbítrio, escrita em 1525 contra o humanista Erasmo de Rotterdam. Esta tese é deduzida também do tato de que a vontade de Deus é absoluta e suprema, de modo que ninguém lhe pode contradizer. O reformador ilustra a sua posição nos seguintes termos:
“A vontade humana, posta entre Deus e Satanás, é semelhante a um jumento. Quando Deus a cavalga, ela vai aonde Deus quer que ela vá… Mas, quando Satanás a cavalga, vai onde Satanás quer que ela vá. Não está em seu poder procurar um ou outro desses dois cavaleiros; são eles que combatem entre si para apoderar-se dela e a possuir” (Weimarer Ausgabe der Lutherwerke 18, 635). Citado como WA.
Ou ainda:
“Se Deus está em nós, Satã fica ausente e não podemos senão querer o bem. Se Deus está ausente, Satã se faz presente e não podemos senão querer o mal” (WA 18, 670).
Considerado em si mesmo ou sem o Espírito de Deus, o gênero humano é “o reino do diabo”, é “um caos confuso de trevas”.
Todavia o determinismo luterano não é total. O homem não é livre para escolher o que diz respeito diretamente à vida eterna, mas é livre para escolher entre os bens temporais (de ordem sócio-econômica).
c) Estando radicalmente deteriorada, a natureza humana não pode ser justificada por uma transformação interior; nada consegue eliminar a sua pecaminosidade nem prevalecer contra ela. Daí a necessidade de uma justiça (= santidade) exterior que, sem extirpar a realidade do pecado, faça o homem passar por santo; Deus gratuitamente deixa de imputar o pecado e aplica ao pecador os méritos de Cristo, que recobrem o réu como uma capa meramente extrínseca. O Pai assim vê no pecador a imagem de seu Filho feito homem e aceita esse infrator. É o que Lutero professa:
“O cristão é mais cândido do que a neve… Todavia é preciso observar diligentemente que essa pureza pertence a outrem; na verdade, Cristo nos ornamenta e nos reveste com a sua justiça. Se olhas tão somente para o cristão, deixando de lado a justiça e a pureza de Cristo, como o cristão é em si, mesmo quando é santíssimo, então não encontrarás pureza alguma, mas, por assim dizer, o diabólico negrume” (Comentário do Miserere).
“Os santos são sempre intrinsecamente pecadores; por isto a sua justificação é sempre extrínseca. Ao contrário, os hipócritas são sempre justos intrinsecamente (segundo pensam); por isto são sempre pecadores extrinsecamente (segundo o modo de ver de Deus)… Por conseguinte, somos extrinsecamente justos quando não o somos por nós mesmos nem por nossas obras, mas unicamente pelo conceito que Deus tem de nós. E, como esse conceito não depende de nós, também não depende de nós a nossa justiça” (WA 56, 268s).
Essa modalidade de justificação é dita “forense, imputativa, meramente jurídica”.
Eis outros dizeres muito significativos:
“A beleza que está em nós, não é nossa, mas é daquele que cobre a nossa feiúra” (WA 56, 280).
“As nossas obras não são boas senão porque Deus as julga boas. E são e não são boas na proporção em que ele as julga boas ou não boas” (WA 56, 394).
Tem-se aí uma expressão da formação nominalista de Lutero: os nomes não têm sempre algo de correspondente na realidade.
Desse modo natureza e graça ficam radicalmente separadas, assim como razão e fé. Quando age de acordo com a sua natureza, o homem não pode senão pecar; e, quando pensa de acordo com o seu intelecto, não pode senão errar. As virtudes e os conceitos dos antigos pré-cristãos não são senão vícios e erros. Nenhum esforço humano pode salvar o homem, mas tão somente a graça e a misericórdia de Deus. Esta é a única proposição certeira que, segundo Lutero, nos dá a paz.
d) Se o homem é radicalmente pecador, como pode atrair sobre si a justiça de Cristo? – Certamente não por suas pretensas boas obras ou por seus esforços próprios. As boas obras seriam até um obstáculo para a justificação ou para tornar-nos amigos de Deus, pois nos comunicariam uma satisfação ou uma segurança meramente humana e impediriam que nos abandonássemos unicamente à salvação que paradoxalmente vem da Cruz. Por conseguinte, a condição – e única condição – para que a justiça de Cristo recubra o homem, é a fé,… fé entendida não no sentido intelectualista, mas no sentido de confiança em Cristo Salvador: fé fiducial. Para Lutero, a fé é uma atitude do ser humano que se entrega a Deus e, em troca, recebe a convicção de que Deus lhe outorga a sua misericórdia e lhe propicia a salvação. É a experiência de sentir-se perdoado e envolvido pela justiça ou santidade de Cristo.
Como se compreende, a fé é gratuito dom de Deus, que o dá a quem Ele predestinou para a salvação, retirando a criatura humana da massa damnata agostiniana ou da massa da humanidade condenada de que falava Santo Agostinho.
e) Lutero admitia não somente a presciência de Deus a respeito de tudo o que o homem faz, mas também a predeterminação e a predestinação que extinguem o livre arbítrio:
“Se Deus sabia, desde toda a eternidade, que Judas havia de ser traidor, a traição cometida por Judas foi necessária e não estava em poder de Judas ou de alguma outra criatura agir de outra maneira ou mudar a vontade de Deus. A onipotência de Deus movia Judas… Porque Deus quer as coisas que Ele prevê… E, como a vontade de Deus é a causa principal de tudo quanto acontece, ela faz que o nosso querer seja necessário… Por conseguinte, onde fica o livre arbítrio? … O nosso livre arbítrio opõe-se diametralmente à presciência e à onipotência de Deus” (WA 18, 718).
Lutero confunde presciência (que Deus certamente tem) com predeterminação sufocadora da liberdade. Deus pode saber de antemão o que os homens livremente vão fazer, sem tirar nem diminuir a liberdade do homem.
Lutero professava a predestinação ao céu ou ao inferno independente dos méritos ou deméritos da criatura. Sofreu angústias e tormentosos dramas ao pensar que Deus arbitrariamente (mera voluntate) possa condenar alguém como se se deleitasse nos pecados e na desgraça dos réprobos:
“Eu mesmo, mais de uma vez, me senti perturbado, caindo no profundo abismo do desespero, e desejei não ter nascido nem ser homem, até que reconheci quão salutar era aquele desespero e quão próximo da graça. Por isto muitos se esforçaram e suaram, procurando desculpas para a bondade de Deus e acusações contra a vontade do homem, e encontraram distinções entre a vontade de Deus ordenada e a vontade absoluta, entre necessidade de conseqüência e conseqüente e coisas semelhantes que para nada servem… Porque nós não fazemos coisa alguma segundo o livre arbítrio, mas sim conforme Deus o previu” (WA 18, 719).
Mais explícita e concretamente escreveu Lutero:
“O homem, antes de transformar-se em nova criatura do reino espiritual, nada faz, em nada se esforça em vista de preparar essa renovação e esse reino; uma vez regenerado, nada faz e em nada se esforça para perseverar nesse reino… Pois como podem aspirar ao bem… ou ter força para o praticar se todos (como diz o Apóstolo) se desviam do bem?” (WA 18, 761).
f) Apesar de todo esse pessimismo, Lutero afirma que o justo recebe o Espírito Santo, o qual atua nas almas retas e lhes comunica os dons da castidade, da obediência, da paciência, embora somente no reino dos céus conseguiremos a sua plenitude.
g) Na lógica do pensamento de Lutero, entende-se que ele atribua, no culto divino, o primado à pregação e considere os sacramentos como meros meios para transmitir e provocar a fé fiducial.
3. Outros Reformadores
Todos os reformadores do século XVI compartilham as idéias básicas de Lutero. Cada qual, porém, lhes acrescentou seus matizes próprios. Examinemos três deles em particular.
3.1. Melancton ou Filipe Schwarzerd (Terra Negra) (1497-1560)
Filipe Schwarzerd helenizou o seu nome, que ficou sendo Melancton ou, como dizia Lutero latinizando, Nigroterrâneo. Foi discípulo e partidário moderado de Lutero. Não quis negar o valor das boas obras; se elas não justificam, ao menos são frutos e testemunhos da fé: não precedem nem merecem a fé, mas seguem-se necessariamente. Melancton reconheceu a liberdade de arbítrio e a colaboração do homem com a ação divina no íntimo da criatura.
3.2. João Calvino (1509-1564)
O pensamento de Calvino é dominado pela noção da absoluta soberania de Deus, que tudo dispôs com livre e imutável vontade exclusivamente para a sua glória. Conseqüentemente Calvino professa a dupla predestinação:
“Os homens não foram criados em condições iguais; para uns é decretada a vida eterna, e para outros a condenação eterna” (Institution de la religion chrétienne 3, 21, 5).
Nos condenados é manifestada e exaltada a justiça divina e, nos que se salvam, a misericórdia. O ato divino de predestinar precede a própria previsão do pecado de Adão e explica todo o comportamento dos homens (é a predestinação supralapsária).
Calvino também julga que a humanidade foi intrinsecamente deteriorada pelo pecado. O homem decaído não tem possibilidade de escolher entre o bem e o mal, pois é sempre inevitavelmente atraído pelo mal. A justificação ocorre mediante a fé apenas sem obras preparatórias.
Todavia Calvino enfatiza mais do que Lutero a ação do Espírito Santo nas almas justas, da qual decorrem a conversão, o cumprimento dos mandamentos e o zelo pela glória de Deus. Atribui grande importância às obras boas como testemunhos da fé; esta atitude dinamizou as populações calvinistas da Suíça, da Holanda e da Inglaterra: sentiam-se certas de sua predestinação para a glória e fortemente impelidas a testemunhá-lo com obras de ardorosos profissionais e comerciantes.
3.3. Ulrico Zvínglio (1484-1531)
Em Ulrico Zvínglio, embora abraçasse as idéias básicas de Lutero, foi, de certo modo, opositor do reformador germânico: professava um humanismo de teor erasmiano (que Lutero abominava) e, em conseqüência, negava o pecado original e reconhecia as virtudes dos pagãos.
A resposta católica foi dada aos reformadores, especialmente a Lutero, pelo Concílio de Trento (1545-1563).