(Revista Pergunte e Responderemos, PR 439/1998)
Em síntese: A personalidade de Martinho Lutero é, a seguir, considerada pelo sábio historiador que é o Prof. Ricardo Garcia-Villoslada, da Universidade Gregoriana (Roma). O autor procura ser tão imparcial quanto possível; por isto põe em relevo diversos aspectos da figura de Lutero, freqüentemente contrastantes entre si. É certo, porém, que Lutero queria revestir-se de autoridade indiscutível, que não aceitava o diálogo e injuriava com palavras de baixo calão não somente os católicos, mas também os reformadores que não pensassem como ele. – Jamais Lutero aceitaria ser canonizado pela Igreja Católica; ele preferiria “o maior dos ultrajes diabólicos”, como ele mesmo diz. O brado revolucionário de Lutero dentro da Igreja Católica encontrou ampla ressonância e reforço por parte da nação alemã, que alimentava um complexo anti-romano e passou a ver em Lutero o porta-bandeira da identidade germânica.
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Ultimamente têm-se aproximado luteranos e católicos, realizando colóquios a respeito de temas teológicos que motivaram a separação de Lutero em relação à Igreja Católica. As conversações têm chegado a resultados positivos e alvissareiros. Em conseqüência há quem diga que Lutero foi reabilitado ou será reabilitado e até … canonizado …
Tais sentenças não partem de quem conhece adequadamente a figura e o pensamento de Lutero; são extrapolações emotivas mais do que racionais. Eis por que, nas páginas subseqüentes, proporemos as considerações de abalizado estudioso de Lutero, que procura ser imparcial ao ponderar a figura do reformador. Trata-se do Professor da Universidade Gregoriana Ricardo Garcia-Villoslada, autor da obra Martín Lutero, em dois volumes publicados na coleção “Biblioteca de Autores Cristianos” em Madrid. Tal autor escreveu em seu volume 1 (1976) as reflexões que vão abaixo traduzidas para o português.
1. Martinho Lutero: quem é?
“Sempre suscitará altercações esse alemão ‘puro sangue’, esse filho da Saxônia, intimamente apegado ao seu país e, doutro lado, arauto de mensagem universal, superadora de fronteiras, pregador da angústia desesperada e, ao mesmo tempo, núncio de interna consolação produzida pela fé, advogado da absoluta liberdade evangélica e, simultaneamente, da incapacidade do livre arbítrio e das obras humanas para levar o crente à salvação; doutor de intuições religiosas tão profundas quanto unilaterais e tão vivamente sentidas que, ao dar-lhes expressão, fazia perder a paciência a quem o ouvisse; teólogo popular e sublime, prisioneiro da palavra de Deus, como ele mesmo disse em Worms (capta conscientia In verbis Dei), mas, ao mesmo tempo, desligado e solto por sua interpretação pessoal, muitas vezes subjetiva e arbitrária, da Escritura Divina…, Escritura Divina que ele exaltou constantemente e que, ao mesmo tempo, ele recortou e depauperou; homo religiosus, que, vivendo a religião cristã mais tragicamente do que ninguém, não se deu conta de que tendia a secularizá-la, porque, ao emancipar-se da hierarquia e do magistério para depender somente de Deus, caia num individualismo humano demasiadamente humano, exposto à anarquia doutrinal, às ilusões pseudomísticas e à idolatria da razão por ele tão odiada; monstro sagrado – espécie de dragão mitológico, mescla de serpente, de leão e de anjo -, que guardava zelosamente o templo santo do Deus das misericórdias e soprava fogo abrasador, ódio e maldições contra aqueles que se recusavam a aceitar a sua verdade.
A respeito de Lutero pode-se afirmar que era isto, isso e aquilo, e também o contrário. Todos os qualificativos são verídicos e falsos, se entendidos de maneira absoluta. As imagens desenhadas por seus amigos e seus inimigos hão de ser sobrepostas umas às outras, para que nos proporcionem uma terceira imagem, mais próxima da realidade” (pp. 15s).
Pouco adiante o Prof. R. Garcia-Villoslada se refere à historiografia de Lutero.
2. Como apresentar Lutero?
Eis o que responde o autor:
“O historiador fará o possível para que os feitos narrados sejam autênticos; ao interpretá-los, será sempre possível o erro. Certamente a eliminação de todo preconceito e a imparcialidade absoluta são inalcançáveis tanto de uma parte como de outra; mas é evidente que a historiografia crítica progride e, na medida em que se fazem novas investigações sobre um problema ou sobre um personagem, mais e mais luz aflora; assim dá-se um passo adiante no conhecimento da verdade objetiva…
Explico-me:
Se uma mulher foi caluniada, vilipendiada, ultrajada, e amaldiçoada por um homem poderoso e influente, é natural que, quando tal homem passa para a história, não será fácil a um filho daquela mulher escrever a biografia serena, imparcial, objetiva, friamente crítica… do ultrajador, esbofeteador e execrador de sua mãe, ainda que aplique a essa tarefa a máxima boa vontade. Pois bem; é coisa manifesta – muitas vezes ignorada pelo comum dos protestantes, que apenas lêem livros de edificação – que Lutero passou os últimos vinte e sete anos de sua vida lançando, sem cessar, em suas publicações, em suas cartas, em suas conversas de família, maldições ferozes, ultrajes indizíveis, acusações morais e doutrinais, às vezes absolutamente falsas, outras vezes
desmedidamente exageradas, contra a Igreja e o Pontífice de Roma, contra todos os Bispos, contra todos os monges e monjas e sacerdotes, contra todos os que ele denominava ‘papistas’, asnos papais, seguidores do anticristo e da prostituta babilônica. E tudo isto sem a mínima intenção de compreender o adversário.
Não conheço em toda a história um transbordamento tão atroz e persistente de ódio (refiro-me às expressões verbais, não ao fundo do coração, que talvez se mantivesse inocente e sem fel) para com uma instituição sagrada que o havia amamentado com seu leite e lhe tinha dado o melhor que lhe podia dar: a Bíblia, os sacramentos, a Tradição apostólica, o símbolo da fé, as orações da Liturgia. Nesses contínuos ímpetos de ódio, irracional à primeira vista, era ele plenamente sincero? Fazia-o por imperativo de sua consciência ou, antes, por instinto de
caudilho e tática de guerra, a fim de desacreditar o inimigo, criando-lhe um ambiente desfavorável frente ao povo, de modo que ninguém sonhasse em retornar à obediência a Roma, poço e arcabouço de todas as alucinações? Se era esta a meta que ele tinha em vista, é certo que ele a alcançou. E, em conseqüência, a Igreja Católica, aquela Igreja que havia civilizado e educado cristãmente o grande povo alemão dos séculos anteriores, ficou marcada, para todo crente luterano, até nossos dias, com o estigma de meretriz do Apocalipse e de prostituta do diabo…
Lutero cai nas graças de muitos católicos hodiernos…; é tornado simpático, de modo que não duvidam em elogiá-lo, mesmo que não tenham lido uma página de seus escritos. Qualquer livro ou artigo de revista que ponha nas nuvens a sua profunda religiosidade, proclame seus protestos irados contra os abusos e desordens da Igreja e até canonize sua ‘ortodoxia dogmática’, é lido com entusiasmo e aplaudido em toda parte[1]. Ao contrário, quem tenha a incrível ousadia de chamá-lo herege ou cismático ou falsificador de algumas passagens da Escritura, censurando-o de algum modo, será condenado ao ostracismo ou aos cárceres do silêncio como réu de desobediência aos sinais dos tempos ou refratário à atualização pós-conciliar.
Estes fáceis louvadores do reformador não o conhecem bem. Os que no frade de Wittenberg contemplam não a imagem do protestante, mas a do moderno contestatário, enganam-se de ponta a ponta. Nada sabem de sua intolerância total em questões de fé, nem dos seus preceitos de submissão quase servil à autoridade do Estado, ainda que este seja opressor e tirânico, nem do seu absoluto desinteresse pela política (praedicator non debet politica agere, o pregador não deve fazer política).
Aos que alegremente lhe estendem a mão – sem, porém, ter a intenção de passar para os seus acampamentos -, ele responderia com uma bufada de touro ou com uma maldição de profeta. Creio que aquele frade agostiniano (que muito de frade conservou sempre até a morte no seu modo de pensar, na sua piedade e no seu estilo), aquele saxão de granito e ardente dogmatismo levantaria a cabeça em nossos dias, flagelaria sem compaixão, com o chicote ruidoso da sua palavra, certos irenistas amigos de conciliar o inconciliável, como flagelou em seu tempo o humanista Erasmo (dignus odio magno, digno de grande ódio), e os que não queriam entender luteranamente o Evangelho: Zvinglio e Ecolampádio (nimium blasphemi, demasiado blasfemos); entre outros, Lutero muito mais ainda rejeitaria os que apregoavam um profetismo revolucionário, como Karlstadt (diabo encarnado) Münzer (assassino e arquidemônio), e outros ‘fanáticos’, contra os quais lançou o vocábulo de Schwärmer (fanáticos). Frei Martinho não tolerava oposição nem queria diálogo. Dizia ele a Erasmo na disputa contra o livre arbítrio: “Não dialoguei contigo, mas afirmei e continuo afirmando, e a ninguém permitirei que seja meu juiz!”
Para falar bem ou mal de Lutero, é preciso primeiramente estudá-lo com seriedade e devagar… As obras completas do reformador, em sua última edição crítica, compreendem cerca de cem volumes in folio, parte em latim e parte em alemão antigo” (pp. 20-22). Serão citados pela sigla WA (= Weimarer Ausgabe).
A seguir, vai uma apreciação de uma das principais obras de Lutero, que tem por título
3. De Captivitate Babilonica (A respeito do Cativeiro Babilônico)
“Muitas coisas surpreendem neste tratado demolidor da teologia tradicional…
Para Lutero, não existe a dúvida, nem a tolerância para com a opinião contrária, mesmo que esta seja doutrina corrente e certa em todas as Faculdades de Teologia da Europa. Não se pode entender a Sagrada Escritura se não no sentido em que ele a entende. Não vacila em aceitar todas as conseqüências teóricas e todos os resultados práticos, desprezando anátemas e excomunhões de uma Igreja que até pouco antes ele amava. A resposta que ele dá a todas as questões, é taxativa, clara e categórica, como se a tivesse meditado durante anos e anos, embora na realidade seja algumas vezes quase improvisada. Sente-se arrebatado por um furacão misterioso, que o empurra não sabe para onde; impelido por uma força superior à razão e à prudência humana, força à qual lhe é impossível resistir.
Outra coisa surpreendente para o leitor que raciocina, é a superioridade majestática com que ele se ergue acima de todos, como um oráculo inapelável. Ninguém tem direito a objetar-lhe a mínima dificuldade. O papado romano é o anticristo desde o momento em que ele é o antiLutero. A palavra deste se identifica com a palavra de Deus. Por isto ele estabelece e afirma suas teses mais temerárias como evidentes e indubitáveis, derrubando com bofetadas as teorias mais fundamentadas e tidas como certas por milhares de doutores. Que os Santos Padres e os Concílios e os mais exímios teólogos tenham dito o contrário durante longos séculos e após discutir atentamente os argumentos, que a Igreja inteira com todo o povo cristão tenha sentido diversamente do professor de Wittenberg, que todos os Códigos Civis estabeleçam uma praxe pouco conforme com a mente luterana, e, por fim, para usar uma expressão hiperbólica de Lutero, que venha um anjo do céu para ensinar doutrina diferente, nada disso o demove nem lhe provoca a mais leve sombra de dúvida, pois todos se equivocaram, mas Lutero não pode errar, já que a palavra de Deus não admite outra interpretação senão a de Frei Martinho Lutero. Tal atitude mental não toca as raias do patológico?” (p. 483s).
Eis o que o Prof. Garcia-Villoslada apresenta a respeito da figura religiosa de Lutero após prolongados estudos, que procuraram ser tão imparciais quanto possível. Em grande parte, o brado revolucionário de Lutero dentro da Igreja foi bem sucedido porque encontrou a nação alemã preparada para se voltar abertamente contra Roma em virtude de tendências nacionalistas e políticas existentes desde a Idade Média. O mesmo Prof. Garcia-Villoslada descreve os acordes nacionalistas das teses de Lutero nos seguintes termos:
4. 0 Brado à Nação Alemã
“A obra An den christlichen Adel deutscher Nation (À Nobreza Cristã da Nação Alemã) foi por Lutero escrita em junho e publicada em meados de agosto de 1520, quando o reformador esperava de um momento para outro a excomunhão que viria de Roma e podia atingir seu protetor, o príncipe Frederico da Saxônia. É um escrito em que o político e o social prevalecem sobre o teológico. Redigido em alemão numa época de grande excitação e com linguagem dura e áspera, esse livro não é dirigido aos doutos e eruditos de qualquer nacionalidade como os anteriores escritos latinos, mas aos compatriotas leigos de Lutero, começando pelo Imperador Maximiliano e pelos príncipes, principalmente os cavaleiros germânicos, que eram os mais dispostos a uma revolução social e religiosa. A obra, que bem revela o estado efervescente do ânimo de Lutero no ano mais crítico de sua vida, assim começa seu discurso aos nobres:
“Antes do mais, a graça e a força de Deus! Altezas Sereníssimas, benigníssimos e diletos Senhores,
Não é por mera impertinência ou temeridade que um pobre homem como eu ousa falar a vossas Altas Excelências. Os agravos e as angústias que oprimem toda a Cristandade, especialmente os países germânicos, movem a mim e a qualquer homem a clamar, pedindo ajuda, e agora me obrigam a gritar e vociferar para que Deus conceda a alguém o ânimo e a vontade de estender sua mão a esta miserável nação. Já foi tentado algo neste sentido por meio de Concílios, mas a astúcia de uns poucos homens o impediu habilmente, e a situação se tornou pior. Agora, com o favor de Deus, tenciono pôr em relevo esta astúcia maligna, a fim de que, revelada, não possa mais causar dano ou estorvo” (WA 6, 409ss).
A obra continua, procurando demolir a autoridade da Igreja Católica.
No mesmo ano de 1520, Frederico da Saxônia enviou a Lutero duas cartas de Roma que pediam a este príncipe procurasse colaborar para trazer de volta à casa paterna o filho pródigo desgarrado. Lutero respondeu ao capelão da corte, Jorge Spitlitz, o seguinte, com a data de 9/7/1520:
“Espero que o ilustríssimo príncipe responda de tal maneira que essas cabeças romanas entendam que a Alemanha, por oculto juízo de Deus, foi até agora oprimida não por causa de sua própria rudez, mas por causa da rudez dos italianos” (Briefe II 134-136).
O nacionalismo de Lutero se tornava ainda mais transparente quando no dia seguinte (10/7/1520) escrevia:
“Desejaria que o príncipe, em sua carta ao Cardeal de São Jorge, insinue que, se, com seus anátemas, me rechaçarem de Wittenberg, não conseguirão senão agravar a situação, visto que não na Boêmia[2], mas no meio da Alemanha, existem aqueles que me pedem e querem defender, à revelia de Roma, contra os raios desta… Da minha parte, a sorte está lançada; desprezo tanto o furor como o favor de Roma. Não quero reconciliar-me nem estar em comunhão com eles por toda a eternidade. Condenem e queimem meus livros; eu condenarei e queimarei publicamente, enquanto tiver fogo na mão, todo o Direito Pontifício, esse lamaçal de heresias… Como seria bom se o príncipe acrescentasse que a doutrina luterana está tão propagada e arraigada dentro e fora da Alemanha, que, se os romanos não a vencerem com a razão e a Escritura, entendam que, com as violências e as censuras, só conseguirão fazer da Alemanha uma segunda Boêmia! Eles já sabem que os germanos são ferozes por sua própria índole (germanorum ferocia ingenia); são tais que, se ninguém os convence pela Escritura e a razão, será perigoso para os Papas irritálos, principalmente agora, quando as letras e as línguas reinam na Alemanha, e até os seculares (leigos) começam a instruir-se. Portanto, ele, como príncipe cristão, os admoeste e lhes dê a saber que não confiem em suas forças e não deixem de dar razão do que fazem, a fim de que não suscitem contra si mesmos um tumulto irremediável” (Briefe II 137).
Os alemães que em seus castelos prometiam defesa e proteção a Lutero, eram os nobres cavaleiros Francisco de Sickingen e Silvestre de Schaumberg, além do príncipe Frederico da Saxônia. A sombra da tutela destes maiorais, podia Lutero desafiar qualquer autoridade” (pp. 466s).
Vejamos agora a repercussão da figura de Lutero na posteridade.
5. O Herói Nacional
No fim da vida dizia Lutero aos seus amigos em tom confidencial:
“Há mil anos, Deus a nenhum Bispo concedeu tão grandes dons quanto a mim (in mille annis Deus nulli episcopo tanta dona dedit ut mihi. Gloriandum est enfim de donis Dei)” (Tischreden 5494 V 189).
O mesmo foi repetido pelos discípulos do reformador, que, aliás, dizia: “Ego propheta Germaniae (Eu sou o profeta da Alemanha)” (MIA 41, 706). Quando ele morreu em 17/2/1546, elevou-se um coro sinfônico de elogios ao mestre, embora já houvesse dissensões e rupturas entre os seus seguidores. Na própria Universidade de Wittenberg, onde Lutero ensinara, ocorria a infiltração de doutrinas calvinistas, favorecidas pelo príncipe Augusto da Saxônia, que governou de 1553 a 1586.
1) A ortodoxia luterana ou a fidelidade a Lutero se estendeu por todo o século XVII. Na Alemanha e fora da Alemanha foi acatada. Em 1617, primeiro aniversário das 95 teses, foram cunhadas medalhas festivas com dizeres de panegírico. Lutero foi celebrado como mestre. Suas relíquias eram veneradas como as dos Santos medievais mais populares. O século XVII, aliás, foi a época do estilo barroco, de tal modo que a piedade do povo luterano tinha suas expressões exuberantes, como refere o historiador Boehmer em Luther im Lichte 7:
“O povo contava maravilhas a respeito de suas profecias, de seus milagres, de suas imagens; na casa de Lutero em Wittenberg, se
cortavam com grande zelo pequenas lascas dos postes de madeira como sendo algo de poderoso, como nos países católicos se veneravam as relíquias de Santa Apolônia para eliminar a dor de dentes”.
Foram publicados livros com títulos cheios de adjetivos:
Thaumasiander (Taumaturgo) et Triumphator Lutherus
(Leipzig 1610), da autoria de M. Hoe;
Memoria Thaumasiandri Lutheri renovata (Estrasburgo 1661), de J. C. Dannhauer e J. F. von der Strass; e em tradução portuguesa:
Delicioso aroma de rosas da vida imaculada e do nome duradouro do fiel homem de Deus Dr. Lutero, de boa memória (1695), de P. Kawerau, que atribui a Lutero os epítetos de Santo, Admirável, Taumaturgo, Taumasiandro, Herói. Em alemão: Lieblicher Rosengeruch des unbefleckten Wandls und immer wãh rendeu Namen des weiland teuren Mannes Gottes Dr. Luther;
Der wunderbare, wunderthãtige und wundersame Luther, de J. Kraus (Praga 1716).
O poeta F. G. Klopstock venerava “o santo Lutero, que fez da língua pátria uma língua de anjos”, tendo em vista a tradução alemã da Bíblia feita pelo reformador.
2) O século XVIII ofuscou essa glória, pois foi marcado pelo pietismo, que muito enfatizou práticas de piedade e devoção, sem se preocupar com dogmas teológicos; mais do que a fé fiducial, os pietistas pregavam a pureza de coração e as boas obras, reagindo contra a imoralidade que campeava na Alemanha por efeito da guerra dos Trinta Anos e de dogmas mal entendidos como o de “somente a fé”. Lutero era apreciado por suas canções religiosas e não por seus escritos polêmicos e dogmatizantes.
Juntamente com o pietismo, o Iluminismo ou Aufklãrung (nacionalismo) contribuiu para empalidecer a figura de Lutero no século XVIII. O Iluminismo não admitia a revelação cristã; negava o milagre, a inspiração divina da Bíblia e o sobrenatural – o que equivalia a negar radicalmente Lutero. Este, portanto, foi tido como doente mental e seus dogmas como extravagâncias medievais. Frederico, rei da Prussia, considerava Lutero e Calvino como “pobres diabos”. G. E. Lessing o censurava por sua intolerância religiosa e seu autoritarismo.
Os burgueses racionalistas reconheciam em Lutero um modelo de virtudes domésticas e bom pai de família, obediente aos príncipes, conviva humorista e amigo dos prazeres da vida. A respeito escreveu o poeta J. E. Voss em sua ode An Vater Luther (1775), pondo nos lábios de Lutero os seguintes versos, que se inspiram em Tischreden (Conversas de Mesa):
“Quem não ama o vinho, o canto e a mulher,
Louco por toda a vida haverá de ser”.
3) No século XIX floresceu o romantismo, que reconhece os gênios, os homens originais e dá largas à intuição e à fantasia. A estes traços associou-se um sentimento nacionalista e patriótico, que restaurou a imagem de Lutero como herói nacional.
O filósofo J. G. Fichte, grande patriota e lutador contra a invasão napoleônica, em 1845 propôs Lutero “como o homem alemão”, “o protótipo dos alemães” (Reden an die deutsche Nation, disc. 6). Em 1817, terceiro aniversário das 95 teses, os protestantes de modo geral se uniram na proclamação de Lutero como “o herói germânico da fé”.
Era fervoroso luterano “o chanceler de Ferro” Otto von Bismarck, que fez a unificação da Alemanha após a vitória sobre a Áustria (1866) e a França (1870), potências católicas. Com ele cresceu enormemente o nacionalismo germânico e, conseqüentemente, o culto de Lutero; muitos governantes e escritores tendiam a identificar sempre mais Lutero com o espírito, o caráter e a religiosidade do povo alemão.
4) Todavia o racionalismo no século XX prevaleceu, ameaçando apagar por completo a figura de Lutero, pois negava a inspiração bíblica, o pecado original e a Redenção efetuada por Cristo.
O reformador, porém, reviveu na mente germânica por ocasião da primeira guerra mundial (1914-18): estes anos de tragédia nacional levaram a apelar para “Lutero germânico”, “Generalíssimo da guerra”, “o maior dos alemães”. Ser antiluterano equivaleria a ser antigermânico e viceversa. Em 1917 R. Seeberg escreveu que o luteranismo era a interpretação germânica do Cristianismo. Durante a mesma guerra o Imperador alemão Guilherme II via em Lutero o gênio unificador do seu povo e da sua raça.
Hoje em dia Lutero continua sendo exaltado por sua genialidade alemã; no plano teológico, porém, percebe-se que suas teses foram, em parte, inspiradas pelas circunstâncias em que ele pessoalmente (angustiado por não saber se era predestinado ou não) e a nação alemã se achavam no século XVI. O diálogo entre luteranos e católicos tende a superar as divergências e favorecer a aproximação dos irmãos separados. Queira Deus inspirar os dialogantes!
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NOTAS:
[1] “Que dizer dos que – com humor ou inconsciência – falam de canonizar Martinho Lutero? Lutero mesmo se levantaria do túmulo para protestar furiosamente contra tamanha ‘abominação e idolatria’. Que é que se canonizaria nele? Suas obras e virtudes, como as dos outros Santos? Precisamente essa santidade das obras (Werkheiligkeit) é que ele esteve continuamente amaldiçoando… Ao hipotético Papa que tentasse inscrevê-lo no catálogo dos Santos, ele replicaria sem hesitar: ‘Prefiro, querido papa, o maior dos ultrajes diabólicos. – Mache nur micte zum heiligen, lieber Papst, umb meiner Werk willen, der Teufel beschiesse mich” (WA 41, 165). Esta frase, ele a proferiu num sermão de 29 de maio de 1535. Nem mesmo se pode pensar na hipótese de que um Papa venha a anular o decreto de excomunhão pelo qual Leão X o declarou herege”.
O redator desta revista observa que a retirada da excomunhão significaria a volta de Lutero à comunhão com a Igreja peregrina na terra. Ora Lutero já não ó peregrino; pertence a outra jurisdição;
Deus o tem sob o seu santo juízo.
[2] Na Boêmia, João Hus (1372-1415) havia levantado a bandeira do nacionalismo anti-romano. (N.d.R.).