Protestantismo: somente a escritura?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 313/1988)

 

Em síntese: Os Reformadores do século XVI estabeleceram o princí­pio de que Sola Scriptura, somente a Escritura, pode ser considerada fonte de fé, com exclusão da Tradição oral. Desta maneira Lutero queria “purifi­car” o Cristianismo de tradições espúrias ou crenças e costumes menos ade­quados que se haviam introduzido no Catolicismo. – Verifica se, porém, que a recusa dos Reformadores foi drástica demais. Teria sido necessário dis­tinguir entre a Tradição divino-apostólica (oriunda de Cristo e dos Apósto­los) e as tradições que, posteriormente a estas, começaram a existir dentro da Igreja; estas não gozam de garantia de autenticidade, ao passo que aquela a possui. Com efeito; sabe-se que Cristo nada deixou escrito nem mandou es­crever, dado que a escrita era uma arte difícil e rara na antigüidade. Os Apóstolos pregaram de viva voz, e só ocasionalmente escreveram algo de quanto assim anunciaram; cf.Jo 20,32; 21,25, 2Ts 2,15. Em conseqüência, os escritos do Novo Testamento (como também os do Antigo Testamento) não podem ser lidos independentemente da Tradição ( = transmissão) oral que os precedeu e os berçou; é essa Tradição que, antes do mais, define o catálogo dos escritos sagrados ou o cânon bíblico; é essa Tradição que con­tribui autenticamente para o entendimento do texto bíblico, o qual está su­jeito a ser distorcido segundo as categorias subjetivas dos seus intérpretes. A Tradição oral oriunda de Cristo e dos Apóstolos continua viva na Igreja através dos séculos e é fielmente expressa pelo magistério, da Igreja, a quem Cristo confiou a missão de guardar e transmitir a sua Palavra.

Quem não leva em conta este amplo quadro da Revelação Divina, mas se põe a ler e interpretar a sós as Escrituras, arrisca-se a deturpá-las, desvian­do cada vez mais o Cristianismo das suas origens, como atestam as nume­rosas denominações protestantes originadas pelo princípio do “Livre exa­me”.

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No diálogo entre católicos e protestantes volta freqüentemente a per­gunta dos interlocutores evangélicos: “Como se pode provar tal ou tal pro­posição pela S. Escritura?” Esta indagação é decisiva para que os protestan­tes aceitem, por exemplo, a Virgindade de Maria SS., a existência do purga­tório, o primado de Pedro, etc.. A posição evangélica se deve ao fato de que Lutero e os reformadores do século XVI estipularam como única fonte de fé a S. Escritura (Sola Scriptura), julgando que a Tradição oral, como era, e é, professada pela Igreja Católica, deturpa, aumenta ou desvia o depósito da fé revelada por Jesus Cristo.

A questão é básica no diálogo ecumênico: será a Escritura a única fon­te de fé? Ou poder-se-á admitir a seu lado a Tradição oral? Uma análise se­rena e objetiva dos fatos evidenciará que o problema supõe um equívoco e se pode resolver sem grande dificuldade.

1. Tradição oral e Tradição escrita

A fé cristã procede do fato fundamental de que Deus quis revelar aos homens os mistérios de sua vida assim como seu desígnio de salvação; este inclui a participação do homem, elevado à dignidade de filho, na vida do próprio Deus: “”Recebestes o Espírito pelo qual clamais: Abbá, Pai!” (GI 4,6; Rm 8,15).

A Revelação iniciada com o Patriarca Abraão (século XIX a.C.), conti­nuada através dos séculos do Antigo Testamento, foi consumada por Jesus Cristo, o Logos ( = Palavra) de Deus feito homem (cf. Jo 1,1.14).

Ora sabe-se que a revelação de Deus aos Patriarcas, aos Profetas e aos Apóstolos se realizou sem o concurso da escrita: os antigos só rara e dificil­mente escreviam, pois tal arte era árdua e dispendiosa; as mensagens eram transmitidas por via meramente oral.

Detendo-nos, de modo especial, na revelação do Novo Testamento, verificamos que Jesus Cristo nada deixou escrito nem se preocupou com a redação de seus ensinamentos. Apenas mandou aos Apóstolos fossem pregar pelo mundo e se tornassem testemunhas da verdade; cf. Mt 10,7; 28,18-20; Mc 16,15.

Acontece, porém, que os Apóstolos e seus discípulos, ao anunciarem a Boa-Nova, experimentaram a necessidade ocasional de escrever algo. Ora tra­tava-se de responder a dúvidas de cristãos recém-evangelizados ou de com­pletar a catequese inacabada (tais foram as ocasiões que levaram São Paulo e os outros Apóstolos a escrever suas cartas). Ora tratava-se de deixar aos fiéis uma parcela ou uma síntese de quanto havia sido pregado pelos Apóstolos (tal foi a ocasião dos Evangelhos). É de notar, porém que os autores de tais escritos (evangelistas, São Paulo, São João, São Pedro, São Tiago…) não ti­veram em vista expor todo o depósito dos ensinamentos de Jesus, como eles mesmos declararam:

“Muitos outros prodígios fez ainda Jesus, na presença dos discípulos, os quais não estão escritos neste livro. Estes, porém, foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome” (Jo 20,30s).

“Há ainda muitas outras coisas que Jesus fez. Se elas se escrevessem, uma por uma, penso que nem o mundo inteiro poderia conter os livros que se teriam de escrever” (Jo 21,25; cf. 2Ts 2,15).

Os Apóstolos consignaram por escrito aspectos da vida e da doutrina de Jesus, atendendo a necessidades esporádicas das comunidades cristãs e da catequese. Disto se seguem conclusões importantes:

1) Tradição divino-apostólica

Existe no Cristianismo uma Tradição oral que remonta ao próprio Cristo e aos Apóstolos e, por isto, é chamada divino-apostólica. Esta Tradi­ção divino-apostólica é anterior à S. Escritura e se espelha ou exprime nesta. Tem-se indagado ultimamente, entre os teólogos, se existem verdades de fé que tenham ficado apenas na Tradição oral, não havendo sido consignadas pelos autores sagrados nos livros do Novo Testamento. Em nossos dias ad­mitem os teólogos que a S. Escritura contém, ao menos de modo implícito, todas as proposições da fé; estas encontram seu fundamento próximo ou re­moto nos textos da Bíblia; admite-se, portanto, a suficiência da S. Escritura, desde que lida no contexto da Tradição viva que a berçou.

2 ) Identificação e interpretação da Bíblia

A Bíblia só poderá ser explicada autenticamente à luz do depósito oral que a precedeu e que é a grande fonte donde os escritores sagrados tiraram o material histórico-dogmático que eles redigiram. Esse depósito meramente oral continou a ser transmitido incontaminado (em virtude da prometida assistência de Cristo e do Espírito) até hoje, identificando-se com a voz ofi­cial dos sucessores dos Apóstolos ou com o magistério da Igreja. O ponto em que mais aparece a necessidade de recurso a algo anterior à S. Escritura mes­ma, é o que se refere ao cânon ou catálogo dos livros bíblicos: como saber se um livro é ou não inspirado ou fonte de fé? – Procuraram os Reformadores do século XVI estipular critérios como o da sublimidade do conteúdo, o da beleza do estilo, os frutos de piedade e edificação suscitados pela leitura de tais livros, mas nenhum critério é eficaz, pois na verdade existem livros, na Bíblia, de conteúdo chão ou mesmo violento, “escabroso”, (cf. Jz), de esti­lo rude (cf. Ap, Mc), aparentemente estéreis ou áridos ao leitor (cf. Lv, Nm). – Somente a palavra da Tradição oral que entrega ao povo de Deus tais e tais livros e não outros, palavra confirmada pelo magistério da Igreja, é capaz de servir de critério para definir o catálogo sagrado. A Igreja, guiada pelo Espírito Santo, à medida que a literatura cristã ia surgindo, tomava cons­ciência (ora mais cedo, ora mais tarde) de que tal ou tal escrito era inspira­do e, por isto, merecedor de ser agregado à coleção dos livros sagrados, ao passo que a mesma consciência cristã rejeitava outros escritos como espúrios ou apócrifos. Nunca esse testemunho foi consignado por escrito antes do sé­culo IV. Quando em 393 um Concílio regional reunido em Hipona definiu pela primeira vez a lista dos livros sagrados, foi a Tradição oral, anterior aos escritos bíblicos, quem falou por esse Sínodo; o Concílio não era um novo órgão de ensinamento dentro do Cristianismo (órgão criado simplesmente pelos homens da Igreja), mas era, ao lado das Escrituras, outra expressão do depósito de verdades que Cristo e os Apóstolos transmitiram verbalmente às gerações cristãs.

3) Duas fontes ou uma?

O Concílio refere-se, logo a seguir, ao magistério da Igreja como órgão da: existem duas fontes de Revelação Divina – a Tradição oral e a S. Escri­tura (como diziam alguns católicos)? Ou existe apenas uma fonte – a S. Es­critura (como dizem os protestantes)? Após longos estudos, a assembléia conciliar se exprimiu, afirmando haver uma só fonte de Revelação – a Pala­vra de Deus – e os dois canais de transmissão da mesma – a S. Escritura e a Tradição oral. Estes dois canais se harmonizam mutuamente:

“A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura relacionam-se e comuni­cam estreitamente entre si. Com efeito, derivando-se ambas da mesma fonte divina fazem como que uma coisa só e tendem ao mesmo objetivo” (Consti­tuição Dei Verbum n° 9).

O Concílio refere-se, logo a seguir, ao magistério da Igreja como órgão assistido pelo próprio Cristo para interpretar autenticamente a Palavra de Deus transmitida por seus dois canais:

“O ofício de interpretar autenticamente a Palavra de Deus escrita ou transmitida oralmente foi confiado unicamente ao Magistério vivo da Igreja, cuja autoridade se exerce em nome de Jesus Cristo. Tal Magistério evidente­mente não está acima da palavra de Deus, mas a seu serviço, não ensinando senão o que foi transmitido, no sentido de que, por mandato divino e com a assistência do Espírito Santo, piamente ausculta aquela Palavra, santamente a guarda e fielmente a expõe. E deste depósito único da fé tira o Magistério o que propõe para ser acreditado como divinamente revelado” (Dei Verbum n° 10).

É importante notar que o Magistério da Igreja não é uma terceira ins­tância ao lado da Palavra escrita e da Tradição oral, que transmita as verda­des da fé, mas, em última análise, não é senão a Tradição oral que continua a falar autenticamente através dos séculos; o Magistério só se pronuncia depois de auscultar a Palavra de Deus oral e escrita existente no depósito da Igreja, procurando, com a assistência do Espírito Santo (cf. Mt 16,16-19; Lc 22,32; Jo 21,15-17), deduzir desse depósito as conclusões nele contidas para ser desdobradas no decorrer da história do Cristianismo. Dizia Jesus:

“O Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, en­sinar-vos-á todas as coisas e vos recordará tudo o que vos tenho dito” (Jo 14,26).

“Quando vier o Espírito da verdade, Ele vos guiará para a verdade to­tal, porque não falará de si mesmo, mas dirá o que tiver ouvido, e anunciar­-vos-á o que há de vir” (Jo 16,13).

4) Tradição e Protestantismo

O próprio Protestantismo, que afirma só reconhecer a fonte bíblica, recorre necessariamente à Tradição oral em duas ocasiões:

a) ao definir o catálogo dos livros sagrados do Antigo Testamento, Lu­tero optou pela tradição dos judeus firmada pelo Sínodo de Jâmnia em 100 d.C., ao passo que a Igreja Católica, seguindo o uso dos Apóstolos, optara pela tradição dos judeus de Alexandria, como está dito às pp. 253-255 deste fascículo. Sem recurso à Tradição oral, não se pode definir o catálogo sagra­do, visto que em parte nenhuma da S. Escritura está dito qual o âmbito da mesma ou quais os livros que, inspirados por Deus, a devem integrar; é preci­so procurar a delimitação do cânon bíblico fora da Escritura ou na Tradição oral, isto é, no testemunho que passou de geração a geração desde Abraão até hoje (os pais entregam a Palavra de Deus aos filhos, estes aos netos, estes, por sua vez, aos bisnetos…).

b) Na sua maneira de interpretar a S. Escritura, os protestantes tam­bém recorrem a uma tradição. Com efeito; embora o texto da Bíblia seja o mesmo para as diversas denominações evangélicas, estas não concordam entre si, por exemplo, no tocante ao batismo de crianças, à constituição da Igreja, à observância do dia do Senhor, etc. As divergências não provêm do texto da Bíblia como tal, mas da interpretação dada a esse texto por cada fundador de denominação protestante. Com outras palavras: dependem da tradição, oral ou escrita, que cada fundador quis iniciar na sua respectiva congregação. Donde se vê que, embora o cristão queira rejeitar a Tradição oral, ele a professa sempre: professa a Tradição divino-apostólica, oriunda de Cristo e dos Apóstolos, ou a tradição oriunda de Lutero, Calvino, John Knox, Wesley, John Smith, Ellen Gould White, etc… Isto se explica pelo fato de que a Palavra escrita jamais pode ser separada da oral; é esta que dá vida, atualidade e pleno significado à letra ou ao texto escrito. Sem a pala­vra oral que a traduz de maneira atualizada e viva, a letra pode tornar-se pe­ça de museu.

5 ) A Reforma considerada hoje

Os reformadores do século XVI encontraram na Igreja de seu tempo tradições secundárias, infelizes ou inadequadas, ao lado da Tradição divino-­apostólica. No intuito de cancelar tais tradições, Lutero e Calvino rejeitaram a própria Tradição – o que se tornou nocivo para o Cristianismo, em vez de o beneficiar. Com efeito, originou-se assim um cisma que até hoje perdura tem gerado outros cismas; o Protestantismo, em conseqüência da sua pró­pria índole, desligada da Tradição e entregue ao subjetivismo de “mestres” leitores da Bíblia, vai-se esfacelando cada vez mais.

Muito a propósito vêm as ponderações de Peter Langsfeld em Myste­rium Salutis 1/2, p. 16:

“A Reforma, iniciada como movimento de retorno à fidelidade ao Evangelho, desaguou em divisão da própria Igreja que pretendia reformar-se. A repulsa às práticas indevidas e aos costumes tradicionais na Igreja não afas­tou apenas a tradição eclesiástica que contrariava o Evangelho, mas também a própria tradição que afeta a fé, enquanto continuação e prolongamento da Escritura. Não nos compete expor aqui a história e as conseqüências desta controvérsia. Tem contudo a teologia católica a impressão de que, do lado da Reforma, a criança, que se amava e se procurava salvar, lhe foi roubada, ao dar-se-lhe o banho que, sem dúvida, deveria reformá-la; com a tradição, os costumes e ensinamentos opostos e estranhos à Bíblia, a Tradição firmada na Bíblia e a autoridade eclesiástica, que guarda a Tradição e a Escritura, fo­ram repelidas… ”

Já em 1907, Adolf v. Harnack descrevia, com exatidão, a situação atual da referida controvérsia:

“… Escritura e tradição: quanto se debateu a autoridade destas duas realidades, no século XVI e depois dele! Através de quantos profundos escri­tos se doutrinou sobre este assunto! Presentemente, contudo, e já desde muito tempo, perceberam os teólogos protestantes que a Escritura não se pode separar da Tradição. Por seu turno, viram também os teólogos

católi­cos que nenhuma tradição deve ser admitida sem a devida crítica e que o Novo Testamento, no tocante aos problemas mais importantes do Cristianis­mo primitivo, é a única fonte indispensável. A grande controvérsia perdeu, portanto, não somente seu caráter agudo, mas até sua razão de ser, desde que se entenda a própria Escritura como tradição, e que não se admita tradi­ção nenhuma sem a devida prova…” (Protestantismus und Katholizismus in Deutschland, Berlin 1907, pp. 18-19).

Vê-se, pois, assim que a questão da Sola Scriptura (somente a Escritu­ra como fonte de fé) se resolve sem dificuldade desde que haja sinceridade de parte a parte entre católicos e protestantes. Em verdade,

– de um lado, a S. Escritura só não pode ser, nem é no Protestantis­mo, a única fonte de fé, pois a própria índole da Escritura rejeita tal tese; a S. Escritura pede ao leitor ausculte a Palavra viva e autêntica que a berçou e que a acompanha; vejam-se, além dos textos bíblicos citados às pp. 264­266, a palavra da 2Pd 1,20:

“Antes de mais nada sabei isto: que nenhuma profecia da Escritura re­sulta de uma interpretação particular, pois que a profecia jamais veio por vontade humana, mas os homens impelidos pelo Espírito Santo falaram da parte de Deus-,­

– de outro lado, a Tradição oral e o magistério da Igreja só têm senti­do se fazem eco à S. Escritura, pois esta se tornou a Palavra normativa: “So­mente a Escritura, em seu caráter objetivo e permanente, pode conservar as origens em toda a sua pureza, de modo que, desde o início até o fim dos tempos, serve ela de regra de fé, da pregação e da vida na Igreja. Por outro lado, não lograria a Escritura realizar sua mensagem se lhe fosse vedado um incessante encontro com a tradição eclesiástica…” (Peter Langsfeld, Myste­rium Salutis 1/2, p. 240).

2. O testemunho da própria Escritura

Um atento exame das páginas bíblicas manifesta que a própria S. Escritura atesta a existência de autêntica Tradição oral, da qual a Bíblia se originou e da qual recebe sua interpretação. Tenham-se em vista as seguintes passagens:

a) Em 2Ts 2,15, São Paulo exorta:

“Assim, pois, irmãos, permanecei firmes e guardai as tradições (parado­seis, em grego) que recebestes, seja de viva voz, seja por carta nossa”.

No caso, o Apóstolo não apenas exorta a guardar as tradições, mas ex­plica que, quer escritas, quer orais, elas têm igual autoridade, desde que pro­venham do Apóstolo.

b) Em 1Cor 11,2 lê-se em termos semelhantes outra alusão às tradições:

“Eu vos louvo por guardardes as tradições tais como eu vo-las entreguei”.

c) Particularmente enfáticos são os textos de São Paulo a Timóteo:

“Sei em quem acreditei. Toma por norma as sãs palavras que ouviste de mim, na fé e no amor de Cristo Jesus. Guarda o bom depósito (parathé­ken) com o auxílio do Espírito Santo que habita em nós” (2Tm 1,12-14).

Nesta passagem o Apóstolo emprega um termo técnico da linguagem jurídica de seu tempo, o qual é altamente significativo: parathéke. Este vocá­bulo designava um tesouro confiado pelo respectivo proprietário aos cuida­dos de um amigo, o qual se obrigava em consciência a guardá-lo e restituí-lo; não era lícito ao depositário utilizar tal tesouro em seu proveito pessoal ou segundo seu bel-prazer. O ato de depositar pressupunha confiança da parte de quem entregava seus bens e exigia fidelidade absoluta da parte de quem os recebia; severas penas eram infligidas a quem violasse tais normas. Era esta a concepção de “depósito” vigente tanto entre gregos e romanos como entre judeus; atribuíam mesmo índole e autoridade religiosas à legislação concernente ao depósito. Alguns autores antigos chegavam a equiparar a re­ligião (com suas crenças e práticas) a um depósito (parathéke) entregue pela Divindade aos homens, depósito que os fiéis deviam conservar ciosamente, sem o ousar retocar em ponto algum (cf. Ranft, Der Ursprung des katho­lischen Traditionsprinzips. Wuerzburg 1931).

Pois bem. No texto de São Paulo acima citado vê-se que o depósito cristão são as palavras de doutrina que o Apóstolo fez ouvir a Timóteo, e que Paulo, por sua vez, recebeu de Cristo; esboça-se então a linha pela qual passa o depósito:

CRISTO => PAULO =>TIMÓTEO

(o qual recebeu suas palavras

do Pai, como Ele mesmo

afirma em Jo 8,28.40)

d) A linha continua…, conforme 2Tm 2,2:

“E, o que ouviste de mim em presença de muitas testemunhas, confia-­o (ou deposita-o, parathou, forma verbal derivada da mesma raiz que para­théke) a homens fiéis, que sejam capazes de o ensinar ainda a outros”.

Tem-se conseqüentemente a seguinte sucessão de depositários:

O PAI => CRISTO => PAULO (OS APÓSTOLOS)

=> TIMÓTEO (OS DISCÍPULOS IMEDIATOS DOS

APÓSTOLOS) => OS FIÉIS => OUTROS (FIÉIS).

Desta forma a Escritura mesma atesta a existência de autênticas pro­posições doutrinárias de Cristo a ser transmitidas por via meramente oral de geração a geração, sem que os cristãos tenham jamais o direito de as menos­prezar ou, como quer que seja, retocar. Este depósito oral chegou até a gera­ção presente e é expresso pela voz oficial da Igreja.

e) Na epístola aos Hebreus, a mesma concepção é professada com não menos clareza; o escritor, que pertence à geração seguinte à dos Apóstolos (não é São Paulo mesmo), traça por sua vez o roteiro da Tradição oral:

“… a mensagem salutar, anunciada primeiramente pelo Senhor, nos foi seguramente transmitida por aqueles que a ouviram” (2, 3).

A série de transmissores seria:

O SENHOR => AS TESTEMUNHAS AURICULA­RES

=> NÓS, QUE OUVIMOS DESTES.

f) Voltando às epístolas pastorais, encontramos mais uma vez a idéia do depósito de doutrina oral a ser fielmente preservado e transmitido:

“O’ Timóteo, guarda o depósito (parathéken); evita os discursos vãos e profanos e as objeções de uma falsa ciência; por ter professado a esta, alguns erraram na fé” (1 Tm 6,20s).

Neste texto São Paulo opõe seus ensinamentos (dados oralmente a Timóteo, como é óbvio) a discursos inovadores, fazendo da guardado ensi­namento oral a condição para que o discípulo não naufrague no erro.

g) Em 2Ts 2,5s São Paulo apela para o ensinamento oral que deu pre­viamente aos seus leitores e, em conseqüência, dispensa-se de escrever muita coisa sobre a segunda vinda de Cristo.

Em conclusão, os textos citados mostram a Escritura mesma a reco­mendar às subseqüentes gerações o respeito máximo à tradição oral que a antecedeu e ininterruptamente a acompanha.

São estas ponderações inspiradas por documentos bíblicos e respeitáveis textos do Cristianismo nascente e contemporâneo que levam a Igreja Católica a não separar S. Escritura e Tradição oral.

3. O Cristianismo antigo

Passando agora aos testemunhos dos antigos escritores cristãos, verifi­camos que, embora tivessem em mãos todos os livros do Novo Testamento, não desprezavam, mas, ao contrário, continuavam a estimar, como fonte pri­mordial da fé, a Tradição oral. Seja mencionado em primeiro lugar Papias ( + cerca de 130), bispo de Hierápolis na Ásia Menor:

“Caso viesse alguém que tivesse convivido com os presbíteros, eu pro­curava saber os ditos dos presbíteros, isto é, o que haviam ensinado André, Pedro, Filipe, Tomé, Tiago, João, Mateus ou outros dos discípulos do Se­nhor… Estava convencido de que da leitura dos livros não retiraria tanto proveito quanto da voz viva e permanente” (fragmento citado por Eusébio, História da Igreja 3,39).

E Papias conhecia bem os Evangelhos escritos, como o demonstram as referências que a eles faz em seus escritos.

S. Ireneu ( + 220) é muito explícito no seu testemunho:

“Se os Apóstolos nada tivessem deixado escrito, dever-se-ia igualmen­te seguir a ordem da Tradição por eles confiada aos dirigentes da Igreja. Este método é seguido por muitos povos bárbaros que crêem em Cristo. Sem pa­pel e sem tinta, estes trazem inscrita em seus corações a salvação por obra do Espírito Santo; conservam fielmente a antiga Tradição” (Adv. haer. 3,4,2, ed. Migne gr. 7,855).

Naturalmente, pode haver tradições meramente humanas, que detur­pem o depósito sagrado. Existem, porém, critérios para distingui-las das au­tênticas tradições; estas

1) referem-se unicamente à fé e aos costumes (pois não há outro obje­to da Revelação divina); por conseguinte, proposições de cosmologia, biolo­gia e ciências naturais em geral, afirmadas repetidamente pelas gerações cris­tãs, carecem da autoridade do depósito da fé, embora os antigos, mediante uma exegese deficiente, julgassem que eram abonadas pela Escritura Sagrada.

Tal é o caso da exegese de Gênesis 1-3. Entendia-se esta peça bíblica como cartilha de cosmologia (Deus teria criado o mundo em seis dias de 24h ou em seis eras geológicas…). Tal foi também o caso de Josué 10,8-15, don­de se deduzia que Josué fizera estacionar o sol e que, por conseguinte, o sol girava em torno da Terra, centro do universo. Os antigos, conscientes de que a Bíblia é a Palavra de Deus, a consideravam como uma enciclopédia na qual encontrariam respostas para todas as suas perguntas sem levar em conta que a finalidade da inspiração bíblica é estritamente religiosa. – Hoje em dia, quando se reconhece melhor o âmbito específico da mensagem bíblica, os teólogos não hesitam em deixar de lado certas tradições exegéticas de índole meramente cosmológica ou biológica…

2) Além de se referirem unicamente à fé e aos costumes, as autênticas tradições também são universais. O que quer dizer: sempre e em toda parte estiveram em vigor, segundo a fórmula de Vicente de Lerins (+ 450): “Na Igreja Católica é preciso dar grande cuidado a que guardemos aquilo que em toda parte, sempre e por todos tem sido acreditado” (Commonitor 2, ed. Migne lat. 50, 640).

Era principalmente por recurso a este segundo critério que os antigos Padres da Igreja julgavam as novas teorias ou as interpretações da Revelação propaladas em tal ou tal região (Gnosticismo, Montanismo, Arianismo…); pediam dos inovadores que demonstrassem estar em contato com os Apósto­los através dos tempos e provassem que transmitiam uma doutrina sempre ensinada e reconhecida pelos cristãos em geral. Caso se comprovasse, ao con­trário, que as teses discutidas jamais tinham sido propaladas antes de deter­minada época e eram apanágio de um grupo de cristãos apenas, tais teses eram tidas como aberrantes ou heréticas.

4. Considerações finais

Uma das principais razões por que o homem moderno concebe dificul­dades para aceitar a tradição meramente oral como regra válida, é o fato de que as instituições modernas, desde a época de sua fundação, costumam ter seus estatutos escritos, os quais definem com precisão a orientação doutri­nária e disciplinar da respectiva instituição; quem formula os estatutos se empenha por incluir neles tudo que deva ser observado como norma, de sor­te que fora do código escrito nada pode haver de importante para a configu­ração de tal sociedade. Tal praxe é possível (e só se tornou possível) após a descoberta da imprensa por Gutenberg (+ 1468). Antes disto; quanto mais se retrocede na série dos séculos, tanto mais se verifica que tal praxe era inexeqüível, pois a escrita constituía uma arte difícil, mormente nos tempos anteriores e imediatamente subseqüentes a Cristo; o instrumento apto para ensinar e legislar devia forçosamente ser a palavra oral.

Os historiadores ensinam que principalmente no setor da religião o en­sinamento oral foi sempre grandemente estimado. Com efeito, sendo a religião um fenômeno muito antigo, verifica-se que cada um dos grandes sistemas re­ligiosos da humanidade depende de um patrimônio doutrinário transmitido de geração a geração por via meramente oral, depósito oral que, em época tardia e em virtude de necessidades mais ou menos acidentais, foi parcial­mente (não por inteiro) consignado em livros sagrados; em certas religiões os fiéis se negaram sempre a escrever algumas de suas proposições mais caras. A tradição oral é, pois, elemento essencial de todas as crenças religiosas, ele­mento que, mesmo após a redação dos códigos sagrados, continuava a ser auscultado com carinho. Em suma, cada uma das grandes religiões é mais antiga do que seus respectivos livros sagrados.

Chama a atenção, por exemplo, nos escritos oficiais da primitiva reli­gião chinesa (de que se derivaram o Taoísmo e o Confucionismo), a fórmula assaz freqüente: “Eu ouvi…”.

Para assegurar a fidelidade na transmissão oral de suas crenças, os anti­gos costumavam, de um lado, disciplinar a memória e, de outro lado, redigir as suas sentenças sob forma de frases breves, ritmadas ou cantantes, o que muito facilitava a aprendizagem de cor.

Pois bem; foi no mundo habituado a proceder desta forma que o Filho de Deus anunciou o Evangelho. A Revelação ou o depósito de fé do Cristia­nismo foi, por conseguinte, transmitido aos homens pelas vias comuns do magistério de outrora: palavra oral parcialmente cristalizada na palavra escri­ta em ocasiões esporádicas.

A título de ilustração, vai aqui transcrito um trecho das chamadas “Recognitiones Clementinae”, romance cristão oriundo provavelmente no séc. III. O episódio, embora seja fictício, é contudo ótima expressão de quanto as primeiras gerações cristãs estimavam a palavra oral:

“Ao despontar do dia que fora escolhido para a disputa com Simão (Mago), Pedro (Apóstolo), levantando-se aos primeiros cantos do galo, des­pertou também a nós; todos juntos éramos treze a dormir no mesmo aposen­to… À luz da candeia… sentamo-nos todos; Pedro, vendo-nos alertas e bem atentos, saudou-nos e começou sua alocução:

‘E surpreendente, irmãos, a elasticidade de nossa natureza, a qual me parece ser adaptável e maleável a tudo. Digo-o apelando para o que eu mes­mo tenho experimentado. Logo depois da meia-noite, costumo acordar-me espontaneamente e não consigo mais conciliar o sono. Isto me acontece por­que me habituei a evocar em minha memória as palavras que ouvi de meu Senhor (Jesus Cristo); desejoso de as revolver no espírito, incitei o meu âni­mo e a minha mente a se despertarem, a fim de que, em estado de vigília, recorde cada palavra de Jesus em particular e as guarde todas ordenadamen­te na memória. Já que desejo com profundo deleite meditar no meu coração as palavras do Senhor, adquiri o hábito de ficar em vigília, mesmo que nada, fora deste intento, me preocupe o espírito’ ” (Ps.-Clemente Il 1, ed. Migne gr. 1, 1247-9).

Este texto não nos interessa pela sua narrativa como tal, mas antes por pressupor que de fato os antigos cristãos estimavam extraordinariamente a decoração e a repetição industriosas (auxiliadas por métodos mnemotécni­cos) das palavras do Divino Mestre. Tal mentalidade privilegiava o ensina­mento transmitido de boca em boca.

BIBLIOGRAFIA

CONCÍLIO DO VATICANO II, Constituição Dei Verbum 1965.

FEINER-LOEHRER, Mysterium Salutis 1/2. Ed. Vozes, Petrópolis 1971.

SCHMAUS, M., A Fé da Igreja, vol. I. Ed. Vozes, Petrópolis 1976.