Religião: indiferentismo religioso

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 258/1981)

Em síntese: O indiferentismo religioso é fenômeno cada vez mais alastrado. Por motivos diversos, muitas e muitas pessoas julgam que não merece atenção o problema de Deus e da Religião. Todavia é de notar que o problema de Deus é tão vital quanto a questão do sentido da vida; ele coincide com as perguntas: Donde vimos? Para onde vamos? Por que sofremos? Por que morremos?

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Estas indagações, as quais interpelam todo homem que leve a sério a sua vida, têm recebido respostas da ciência e da filosofia… Da ciência esperam muitos homens a elucidação das suas dúvidas e o afastamento dos males que os afligem; todavia esta esperança é desmentida pelo que acontece em países de tecnologia e organização social evoluídas como é, por exemplo, a Suécia; nesta o número de suicídios é crescente, porque o homem se sente só, embora cercado de semelhantes; o vazio do indivíduo não é preenchido pelos benefícios da técnica e do conforto. A filosofia, ou melhor, as filosofias apresentam um leque de respostas ao homem, várias delas materialistas (e frustrativas por este motivo), outras dualistas (avessas ao corpo e à matéria – o que é artificial).

Existe também a resposta filosófica teísta, que é completada pela Revelação cristã. Esta apresenta a seguinte síntese:

Existe o Transcendental ou Deus, como existe o pólo Norte que atrai a agulha magnética. Sem pólo Norte não se explica a “Inquietação” da agulha.

O homem só existe por um ato de amor gratuito do Criador; esse amor é irreversível, porque divino, de modo que o homem o encontra inabalável, mesmo depois das mais graves faltas. A grande vocação do homem é a de voltar para Deus através das estradas desta vida.

A nossa vida terrestre é comparável a uma gestação consciente que nos prepara para a segunda natividade ou para o nosso pleno nascimento. Se no seio materno a criança é irresponsável por sua estatura, no decorrer desta vida o homem é autor da sua sorte definitiva.

Esta perspectiva não desobriga o ser humano de trabalhar fielmente neste mundo como mediador entre as criaturas Inferiores e o Criador.

O sofrimento é a conseqüência da desordem acarretada pelo homem na obra de Deus; cioso de ser Igual a Deus vê-se vítima da sua arrogância. Todavia o Redentor assumiu a dor e a morte do homem e as transfigurou.

A luz destas verdades, a morte é consumação.

Comentário: Já temos aludido em PR ao fenômeno do indiferentismo religioso, que em muitos países se substitui ao ateísmo militante. Nos Estados Unidos, na Escandinávia, no Japão contam-se aos milhões aqueles que, embora não sejam hostis à religião, se dizem desinteressados do problema religioso.

O fenômeno da apostasia em relação à religião começou no séc. XVIII com o racionalismo dos filósofos franceses (os enciclopedistas Voltaire, Diderot, D’Alembert), alemães e ingleses (iluministas). Já em 1748 escrevia o filósofo materialista De La Mettrie: “O mundo nunca será feliz a menos que seja ateu. A apostasia prolongou-se no século XIX, assumindo diversas formas: o positivismo de Augusto Comte († 1857), a esquerda hegeliana de Feuerbach († 1872), o socialismo ateu militante de Marx e seu precursor Engels (+ 1895); o evolucionismo materialista de Darwin († 1882) e Spencer († 1903), o voluntarismo desesperado de Friederich Nietzsche († 1900) e Schopenhauer († 1860). Nietzsche, por exemplo, referindo-se aos cristãos dizia: “O cristão é um inútil, um separado, um resignado, é estranho ao trabalho da terra”.

As últimas expressões do fenômeno no séc. XX são o pansexualismo de Freud († 1930), o hedonismo ou o culto do pra­zer, as ideologias comunista, fascista, nacional-socialista, racista.

Hoje em dia essas tendências anti-religiosas tomaram nova forma, que não exclui as anteriores, mas se vai alastrando como sendo mais cômoda, porque não implica militância alguma: a do indiferentismo. – Ora é precisamente esse indiferentismo, tão propagado em nossos dias que interessa levar em conta, procurando aprofundar o seu significado. É o que vamos fazer nas páginas que se seguem.

1 .O fenômeno do indiferentismo

Podem-se registrar diversas facetas do indiferentismo religioso em nossos dias.

1) Há os que não dão o mínimo de atenção ao problema religioso, porque estão “atolados” no trabalho e nas obrigações sociais, de tal modo que não lhes resta tempo para encarar a questão religiosa. São pessoas que vivem constantemente fora de si mesmas, vítimas do ritmo frenético da vida, mas que, em última instância, estão contentes por nunca se encontrarem consigo mesmas e com a própria consciência, porque isto as poderia “assustar” ou levar a uma certa desinstalação ou mudança de vida.

2) Outros nunca foram sacudidos pela vida e, conseqüentemente, obrigados a sair de certa leviandade rotineira. Talvez sejam pessoas “vazias” em seu íntimo e, por isto, necessitadas de encher a vida, com coisas que lhes prometem ilusória satisfação: a conquista e o uso do dinheiro que nunca basta, a ornamentação da casa com mil objetos inúteis, a carreira ameaçada por obstáculos, a moda que tiraniza e obriga a constantes mudanças…..

3) Outras ainda há que colocaram para si o problema religioso, ainda que talvez sem grande esforço, mas que julgaram não dever “perder tempo” com Cristo, pois religião seria um fenômeno ultrapassado ou um acervo de histórias e práticas obscurantistas (embora muitas dessas pessoas tenham sua crença no “horóscopo” ou nos porte-bonheur ou nos talismãs ou evitem o w 13).

Perguntamo-nos agora:

2. Fé não é problema?

Na verdade, o problema de Deus é vital, porque vem a ser o problema do sentido da vida humana; por isto também quem se interroga sobre o significado da sua vida, não pode deixar de encarar o problema de Deus com seriedade.

Com efeito. Todo homem, em sua existência, vê-se obrigado a se defrontar com vários desafios imediatos: o da subsistência, por exemplo, que envolve alimentação, habitação, cura de doenças. Há, depois, os problemas do trabalho, da profissão, da família, da cidade ou da política…, que constituem um conjunto de sérias preocupações.. .

Acontece, porém; que há um problema radical ou fundamental, que é o do homem; tudo o que o homem faz, deriva o seu sentido daquilo que o homem é. De fato, pergunta-se: quem é o homem que trabalha, constrói, luta, sofre e morre? Por que trabalha e padece? Donde veio? Para onde vai após a morte, Ou esta põe fim a tudo o que ele é e faz? São estas as perguntas supremas e decisivas às quais nenhum homem pode fugir. Aqueles que não as concebem, arriscam-se a levar uma vida superficial e rotineira; somente os seres infra-humanos não concebem as perguntas relativas aos grandes porquês e para quês da vida.

Se o problema do sentido da vida é “vital”, e não lhe pode escapar quem realmente queira viver consciente e profundamente, examinemos algumas das respostas mais freqüentemente dadas a tal problema.

3. A resposta da ciência e da técnica

Há quem julgue que a ciência poderá responder às grandes indagações do homem e proporcionar-lhe paz e felicidade. Quanto à técnica, que decorre do progresso da ciência, ela seria apta a oferecer ao homem comodidade e bem-estar.

Ora, na verdade a ciência como tal não chega a colocar as grandes e supremas interrogações do homem; se o fizesse, ela se tornaria filosofia, saindo da sua alçada sem ter métodos adequados para enfrentar as indagações da filosofia. Assim, por exemplo, a biologia, que é a ciência da vida, procura saber como a vida teve origem, como se desenvolve e multiplica, mas ela (como ciência biológica) não pergunta por que a vida existe e qual o sentido do fenômeno da vida, pois tais problemas fogem ao campo de competência da ciência biológica. Mais ainda: a biologia só pode estudar os viventes corpóreos materiais; caso haja viventes não corpóreos, a biologia não os atinge, ela não pode dizer nem mesmo se existem ou não. Eis por que não tem sentido dizer que a alma não existe, pois nenhum biólogo ou nenhum médico jamais a encontrou na ponta do seu bisturi; na verdade, a alma, como ser espiritual, pertence a outro plano que não o da matéria; ela não é matéria mais sutil do que os outros tipos de matéria, mas simplesmente não é matéria.

Aliás, uma prova de que a ciência e a técnica não satisfazem às aspirações mais fundamentais do homem nem respondem aos interrogativos mais profundos, é a situação de países tecnologicamente evoluídos como os Estados Unidos, a Suécia e o Japão. A propósito da vida na Suécia, a revista espanhola Cambio 16 publicou interessante crônica com o titulo “Suecidarse” (palavra que funde Suécia e Suicídio). Passamos a apresentar essas observações em tradução brasileira:

“Vinte e dois dentre cem mil suecos se suicidam porque têm casa e carro próprios, poucas horas de trabalho por dia, riqueza material e muito tempo livre, segundo o estudo Gente en crisis, editado pelo Departamento social do Sindicato de Empregados. O número de suicidas, de resto, é duas vezes maior do que o das vitimas de desastres de automóvel.

Os dados são sombrios. Entre os motivos que duas mil pessoas encontram para matar-se todos os anos, os autores do trabalho põem em primeiro lugar a solidão.

Além disto, o ingresso da mulher no mundo alienado do trabalho colocou-a em condições de carência idênticas às dos homens. Nos últimos vinte anos o índice de suicídios femininos subiu de 100%, ao passo que o de masculinos aumentou de 25%. Não somente isto: as mulheres se salvam, por ora, em virtude da sua relativa falta de eficácia para tirar a vida a si mesmas, pois são três vezes mais numerosas as que tentam o suicídio do que as que morrem.

Leve-se em conta também que os índices não são de toda confiança. O pudor e a pouca simpatia das Companhias de Seguros para com o suicídio levam a tachar de acidentes automobilísticos muitos casos de suicídio. Assim, com a chegada da primavera e o degelo dos lagos, é freqüente subirem os números de afogados, os quais na verdade não seriam senão suicidas, cujo fim trágico é encoberto pela mentira Imposta por normas sociais.

A maior porcentagem de suicídios – revela Gente en crisis – ocorre entre os homens de 40 a 65 anos e entre as mulheres de 45 a 60 anos. Os grupos mais afetados são os dos alcoólicos, drogados, enfermos e divorciados (nessa ordem). As pessoas se matam mais nas grandes cidades do que no campo; o índice de suicidas em Estocolmo, por exemplo, é longe o dobro do de todo o país.

Um exame dos dados estatísticos leva os estudiosos a verificar que o suicídio é o resultado de um ato refletido e não de um impulso. Vinte por cento dos que se suicidam deixam cartas de despedida; alta porcentagem mata-se depois de ter estado com seu médico ou psiquiatra; os familiares não parecem surpreender-se com a decisão; apenas observam: ‘Estava muito deprimido’. ‘As coisas não lhe iam a contento’.

Atualmente um milhão de suecos vivem solitários. O número não deixa de aumentar porque a casa própria deixou de ser um luxo… Em seus tempos de lazer, os suecos, ajudados por seus recursos materiais, torna­ram-se individualistas: passeiam, patinam, praticam o esqui ou navegam solitários e silenciosos, segundo as conclusões do estudo, que também afirma: ‘O alcoólico se suicida quando perde o último contato de relacionamento pessoal com os seus semelhantes’.

Visto que as causas do suicídio estão muito ligadas às condições de vida na Suécia, parece impossível extirpá-las. O diário Dagens Nyheter de Estocolomo lançou uma cética proposta em editorial, sugerindo o aumento das horas de trabalho diário ou uma redução das comodidades postas à disposição do público… Todavia os observadores mais realistas exprimem o seu pessimismo; ‘Não há solução, dizem; será sempre assim: as sociedades desenvolvidas terão que acostumar-se ao suicídio e considerá-lo como um dos numerosos e indesejáveis efeitos do progresso”.

Estas observações sugerem dois comentários:

1) A solidão é o grande mal do homem num mundo que se vai povoando cada vez mais. ó paradoxo! Os indivíduos se isolam uns dos outros, embora estejam cercados de gente. E por quê? Em parte, porque cada qual se deixa absorver por seu pequeno mundo e seus interesses pessoais ou, também, porque tem medo de que os outros o perturbem e desinstalem. Por ironia, esse fechamento “protetor” e “tutelar” não acarreta maior felicidade ou paz para a pessoa que se flecha, mas, ao contrário, dá-lhe a impressão do vazio e da solidão, que se tornam mortais para o homem. Vê-se que este tem que escolher entre o culto egoísta dos bens materiais ou o serviço aos irmãos. Isto não quer dizer que não seja possível possuir bens materiais e sentir-se feliz; mas para tanto é necessário que os bens materiais não tornem pesado e gorduroso o coração do homem (adjetivações bíblicas), mas, antes, concorram para torná-lo mais livre e generoso. – Ora uma tal atitude dificilmente se consegue se não se tem uma motivação de ordem transcendental, ou seja, o amor a Deus como fundamento do amor ao próximo.

2) O artigo termina chamando a atenção para o fato de que a crescente onda de suicídios na Suécia está muito vinculada às condições de vida da população local. Há quem diga que doravante as perspectivas da sociedade de consumo incluirão a nota marcante do suicídio. Esta prospectiva é profundamente dolorosa. – Deve-se dizer, porém, que progresso da civilização e suicídio não são elementos necessariamente associados entre si; o primeiro de per si não implica o segundo. A associação só ocorre se o homem perde a visão do sentido do progresso material ou se esquece de que as conquistas materiais devem ser o trampolim para a ascensão ao plano dos bens definitivos e transcendentais.

Pode-se, pois, concluir que por certo o progresso da ciência e da tecnologia é insuficiente para proporcionar ao homem as respostas atinentes ao sentido da vida.

Examinemos agora as respostas que a filosofia, ou seja, o uso da razão natural, sem fé, oferece ao homem a respeito das mesmas questões.

4. As respostas da Filosofia

A filosofia, sem dúvida, procura ultrapassar as causas imediatas de cada fenômeno, para descobrir as causas últimas ou supremas; ela tem por objetivo colocar cada fato e cada valor no conjunto dos fatos e dos valores em síntese harmoniosa. Todavia acontece que não há uma filosofia, mas muitas filosofias. Principalmente a partir do século XVI cada pensa­sador tende a trilhar seu caminho próprio, resultando daí que muitas vezes os sistemas filosóficos se destroem mutuamente e chegam a conclusões contraditórias. Em conseqüência, muita gente, diante das propostas da filosofia, toma uma das duas atitudes: o relativismo (tanto faz uma como outra) ou o ceticismo (nenhuma atinge a verdade). É o que explica que já se tenha falado do “escândalo da filosofia”. Percorramos rapida­mente as principais respostas dos filósofos:

1) Materialismo: Há quem diga que só existe matéria. Deus não existe; quanto ao chamado “espirito”, é redutível à matéria. Por conseguinte, não há vida póstuma: o homem vive e morre como os demais viventes, e, como estes, desaparece no nada. Por isto o sentido da vida consiste em procurarmos ser o mais possível felizes com os bens desta terra.

2) Positivismo e nopositivismo. Esta escola ensina que não se deve procurar o que fica para além da percepção dos sentidos. Indagar qual seja o significado da vida não tem propósito, porque só se pode falar do que se consegue experimentar e averiguar cientificamente. Por conseguinte, não tem cabimento falar de Deus, do espírito, de vida póstuma e de voca­ção transcendental do homem.

3) Idealismo. Os filósofos desta escola afirmam que o homem só conhece as suas próprias idéias. O conhecimento, portanto, não bem valor objetivo. Mais amplamente, dizem: é o próprio homem quem cria os seus valores e realiza em absoluta liberdade a imagem que ele projeta de si mesmo e para si mesmo. Tome consciência disto, e não pretenda realizar padrões objetivos ou atingir metas transcendentais porque estas escapam ao seu conhecimento.

4) Panteísmo. Esta corrente de pensamento identifica o homem com a Divindade. Entre as várias formas que ela assume, uma das mais freqüentes afirma que a Divindade se acha apoucada ou diminuída dentro do corpo ou da matéria, de sorte que o sentido da vida terrestre consiste em libertar do corpo a centelha divina que está dentro do homem ou que é o homem propriamente dito. Esta perspectiva está associada a duas teses filosóficas:

a) o dualismo, segundo o qual a matéria e o mundo visível são algo de mau. Os únicos valores são os do espírito. Este se acha encarcerado dentro da matéria, que impede a sua plena expansão. Em conseqüência, tal escola filosófica não tem interesse pelo progresso da civilização; antes, vinculam o homem à matéria e ao mundo, quando na verdade todo o afã do homem deve consistir em desprender-se de qualquer relacionamento com a matéria.

b) o reencarnacionismo. Se o homem é a própria Divindade, está claro que ele não espera de Deus a sua salvação, mas a espera de si mesmo. E, se o homem não consegue salvar-se ou libertar-se interiormente do apego à matéria e aos bens materiais numa só vida ou encarnação, terá que se encarnar de novo e passar outra vez pela vida terrestre; isto se repetirá tantas vezes quantas forem necessárias para possibilitar ao indivíduo a sua total purificação ou renúncia aos afetos terrenos.

Refletindo sobre as quatro respostas filosóficas que acabam de ser enunciadas, podemos dizer:

As três primeiras (materialismo, positivismo, idealismo) cortam qualquer perspectiva de transcendência, deixando o homem confiado ao regime do visível, material e transitório. Por certo, não satisfazem à aspiração inata que temos para a vida, e a vida sem fim, nem correspondem ao testemunho de todos os povos que, da antigüidade até nossos dias, admitiram a vida póstuma.

A quarta resposta (a panteísta-reencarnacionista) supõe, em grau mais ou menos explícito, o dualismo entre a matéria e o espírito, condenando a matéria à rejeição, como sendo elemento aviltante e degradante da centelha divina que é o cerne do homem. Ora o dualismo é antinatural ou artificial, visto que o corpo faz parte integrante da natureza do homem; sem o corpo, a mente não adquire idéias nem concebe afetos.

5) Teísmo. Existe também uma filosofia teísta, isto é, que professa a existência de Deus e do transcendental. Todavia, sendo filosofia ou obra da razão entregue tão somente ao seu acume natural, não consegue penetrar a fundo na realidade do homem e da vida. Por isto, ela tem sido completada pela revelação que o próprio Deus fez de si ao homem. Assim se origina a síntese ou a resposta cristã.

Aliás, é de notar que já Platão († 347 a. C.), embora reconhecesse o valor da razão para desvendar o mistério do homem (a questão da imortalidade da alma), julgava que a razão é como uma pobre jangada, que nos leva a atravessar o mar da vida com riscos ou perigos para nós; seria melhor, dizia ele, fazermos o trajeto com mais segurança e menos perigo, usando mais sólida embarcação, ou seja, seguindo uma revelação divina (Fedon c. 35c-d). Ora é precisamente esta mais sólida embarcação que leva os pensadores cristãos a responder com segurança às grandes questões atinentes ao sentido da vida.

Vejamos, pois, as grandes linhas da síntese cristã.

5. A síntese cristã

Eis os principais pontos que compõem a resposta cristã.

1) O transcendental (Deus). A síntese cristã afirma a existência de Deus… Entre as numerosas razões desta afirmativa, salientamos as de ordem antropológica. Onde há polarização, existe pólo; se a agulha magnética é inquieta e atraída por algo invisível, existe esse invisível, que é o pólo Norte; ele é real, embora os sentidos não o vejam imediatamente. Ora o homem é atraído naturalmente (não em virtude dos artifícios de alguma cultura ou escola) para a Vida, a Verdade, a Felicidade, o Amor, a Justiça, a Paz.. . Por conseguinte, estes valores que atraem, devem existir; existe, sim, um ser que é a Plenitude ou o Ser propriamente dito, e que é, ao mesmo tempo, a Verdade, o Amor, a Vida, etc. Sem tal Ser, não se explica o mistério do homem; este seria uma agulha magnetizada sem polo Norte – o que é absurdo ou contraditório.

2) O homem. A razão pela qual o homem e, com ele, o mundo existem, é, sem dúvida, a bondade de Deus. Este, sendo o ser absolutamente perfeito, não tinha necessidade de criar. Se criou, foi porque quis fazer a criatura participante da sua vida e felicidade. Diziam os neoplatônicos: “O bem é difusivo de si”». Ora, se Deus é o Sumo Bem, Ele é sumamente difusivo de Si. – Há, pois, na raiz da existência de cada ser humano um ato de benevolência gratuita ou um ato de amor de Deus, que quer bem sem compensação ou sem interesse egoísta. Esse ato de amor é irreversível; é Sim uma vez por todas, dado que Deus não pode ser Sim e Não ou não se pode contradizer nem retratar; mesmo que o homem vacile ou se afaste, ele pode encontrar esse amor inabalável do Criador desde que resolva voltar a Este. Esta verdade será útil, mais adiante, para se ilustrar o sofrimento humano.

O homem criado benevolamente por Deus é chamado a participar da vida divina para todo o sempre. Ele procede de Deus (por criação) como ser embrionário e retorna para Deus, através das estradas desta vida.

3) A vida presente é, pois, concedida como um caminhar para a “Casa do Pai” ou para a Plenitude da Vida, da Verdade, do Amor… Ela pode (e deve) ser comparada a uma gestação; com efeito, o ser humano só nasce plena e definitivamente no termo da sua vida terrestre. Entre o nascimento para a luz do sol e o nascimento para a luz da eternidade, vai-se formando a personalidade e vão-se desabrochando as virtualidades desta; a gestação no seio materno (onde a criança está oculta e inconsciente) se prolonga no decorrer desta vida terrestre umbrátil ou claro-escura, só terminando no dia em que o homem é projetado diretamente para a luz sem fim e definitiva. Se no seio materno a criança não é responsável por sua formação ou construção, já no decurso da segunda gestação o homem é, via de regra, responsável pela sua estatura e configuração definitiva.

4) Se realçamos o caráter provisório e passageiro desta vida (o que, aliás, é evidente à própria experiência), não queremos dizer que o ser humano se possa considerar descompromissado em relação à realidade deste mundo. É mediante o exercício da sua missão de mediador ou de sacerdote entre o mundo material e Deus que o homem se realiza ou desabrocha as suas virtualidades e atinge a plenitude da sua estatura. O Criador entregou ao homem o mundo ainda embrionário para que este continue a obra do Criador. Tal é o sentido do trabalho humano; é digno e nobre, ainda que braçal e servil. O homem não há de trabalhar segundo seus caprichos, mas procurará construir um mundo melhor, mais consentâneo com os desígnios de Deus, que são de amor, justiça e fraternidade; trabalhar contra este plano, ou seja, a serviço do egoísmo e do ódio é desfigurar o trabalho e torná-lo obra satânica, da qual só podem resultar dissabores e amarguras para o trabalhador.

5) O sofrimento há de ser considerado neste contexto de otimismo. Resulta da desordem introduzida pelo homem na obra do Criador, por abuso do livre arbítrio. Ele quis ser “como Deus” (Gn 3,5) ou auto-suficiente.

É natural, pois, que, tendo desejado assumir por soberba uma posição que não lhe compete, o homem sinta as conseqüências da desordem acarretada. Todavia o sofrimento, embora suscite sempre interrogações ao homem, não é simplesmente um enigma indecifrável; o próprio Deus se dignou de assumir a sorte dolorosa e mortal do homem, a fim de trans­figurar tal realidade; assim o homem sofre justamente, mas com a esperança, ou mesmo a certeza, de que tal sofrimento, associado ao de Cristo, é passagem para a ressurreição e a glória. Em síntese: o sofrimento é explicado pelo Cristianismo como conseqüência do pecado, mas é transfigurado pela presença da misericórdia do Senhor, que faz da dor um instrumento de pu­rificação e santificação. É esta, entre todas as explicações dadas ao sofrimento, a mais plausível. A que recorre ao dualismo, admitindo um Principio Subsistente do Mal, é antifilosófica (pois o mal é sempre uma carência e nunca um ser positivo). A última atitude da filosofia perante a dor é a da angústia e do desespero, de que dá testemunho o existencialismo ateu; o homem vê a vida como algo de absurdo, e tira as conseqüências dessa perspectiva. Ao invés, a visão cristã, embora reconheça o que tem de horrendo o sofrimento, sabe integrá-lo numa síntese de otimismo.

6) Após quanto foi dito, a morte aparece como consumação, e não como ruptura da vida. É o término da gestação e a segunda ou definitiva natividade do ser humano. O cristão olha para ela não como para algo de meramente negativo, mas como algo que o ajuda a avaliar cada um dos bens que lhe ocorre; cada um destes só tem sentido se contribui para que o cristão se encontre,mais livre e mais consciente, com o Bem Infinito no fim da sua peregrinação terrestre.

Eis em poucos tópicos a resposta cristã à questão do sentido da vida humana.

É harmoniosa; todavia a sua veracidade só se comprova plenamente pela experiência ou pela vivência concreta e fiel da mesma.