Religião: meu Deus em quem confio

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 296/1987)

por Jacques Loew

Em síntese: Jacques Loew é alguém que tem um itinerário de vida as­saz acidentado: freqüentou o Catolicismo, o protestantismo, as rodas do ateísmo amargurado e cético; voltou-se para o islamismo e o budismo. E fi­nalmente fixou-se no Catolicismo, onde se fez frade pregador (dominicano), mensageiro da Boa-Nova entre intelectuais e operários. Ao completar cinqüenta anos de conversão, escreveu o livro “Meu Deus em quem confio”, no qual expõe algo de suas experiências de ‘peregrino do Absoluto” e reflete profundamente sobre Deus, o homem e o mundo. O livro é especialmente interessante por apresentar o embate do homem diante da fé e do Transcen­dental; mostra as reações psicológicas do ser humano destituído de precon­ceitos diante da mensagem do Absoluto. – Do livro em pauta foram extraí­dos tópicos relevantes, que vão expostos nas páginas subseqüentes.

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Jacques Loew nasceu em Clermont-Ferrand (França) aos 31/08/1908, de pais católicos não praticantes. Estudou em escolas protestantes e final­mente tornou-se ateu. Formou-se em Direito e exerceu a sua profissão no Tribunal de Nice desde 1929. Converteu-se ao Catolicismo em 1932, e en­trou na Ordem Dominicana em 1934, sendo ordenado sacerdote aos 29/10/1939. Em 1942 passou a viver qual padre-operário, ganhando o seu salário como estivador em Marselha. Em 1955 fundou a Missão Operária São Pedro e São Paulo (M.O.P.), que se estendeu para a África e a América do Sul (inclusive o Brasil); de 1964 a 1973 passava nove meses por ano no Bra­sil (periferia de São Paulo). Em 1969 deu início à Escola de Fé em Friburgo (Suíça), destinada ao aprofundamento da fé e à formação de pregadores do Evangelho, Religiosos e leigos. De 28/02 a 05/03/1970 pregou o retiro ao S. Padre e a membros da Cúria Romana, donde resultou o livro “Jesus qu’on appelle le Christ” (traduzido para o português pelas Edições Paulinas). Final­mente em 1981 renunciou à direção da Escola de Fé e às demais atividades apostólicas para retirar-se ao mosteiro dos Trapistas em Citeaux (França), onde vive a vida monástica na espera do último e definitivo encontro com o Senhor Deus.

Em 1982, ao completar cinqüenta anos de conversão, Jacques Loew quis escrever mais um livro, que recorda o seu passado, no intuito de louvar a Deus, que se manifestou cheio de amor a esse “peregrino do Absoluto”. Traduzido para o português, tem o título “Meu Deus, em quem confio”[1]. – Dado o valor desse testemunho, vamos, a seguir, apresentar alguns tópicos dos mais interessantes de tal obra.

1. A conversão

“Meus pais, teoricamente católicos, fizeram-me batizar e educar no protestantismo, de maneira muito vaga, aliás, como reação à Igreja Católica. Meu pai… considerava inimigo o clericalismo… Sob a influência de pasto­res que conhecera em Cannes, preferiu educar-me na religião protestante, que lhe parecia mais simples” (p. 18).

“Quando se falou da decisão de me encaminharem para a Igreja pro­testante, fui acometido de um verdadeiro acesso de desespero. Nitidamente ainda me vejo entrando na igreja Nossa Senhora de Cannes e lá, agarrado às grades do coro, repetir: ‘Não quero ser protestante! Não quero ser protestan­te!’ Mas fui para a Escola Dominical e minha fé se extinguiu” (p. 20).

Jacques Loew formou-se em Direito. Aos vinte anos de idade, adoeceu e passou doze meses no Sanatório de Leysin, na Suíça. Aos vinte e quatro anos, adoeceu de novo e voltou para o mesmo Sanatório; como fosse advo­gado iniciante, recebeu uma ajuda da Ordem dos Advogados de Nice para pagar seu tratamento. Seguiu para a Suíça assaz desanimado: “Andava tão enojado de mim mesmo, da vida e até dos prazeres que me cercavam, que as­pirava por esta espécie de parênteses” (p. 15). Queria refletir e, por isto, le­vou em sua bagagem os mais diversos livros: o Novo Testamento, “Les Nour­ritures Terrestres” de André Gide (ateu), uma obra sobre Gandhi, “A Imita­ção de Cristo”. . . Freqüentava autores ateus como Anatole France (que lhe transmitira o ceticismo), Ernest Renan, também cético, Maupassant, que o deixavam descrente e amargurado.

No Sanatório Jacques leu assiduamente, sem chegar a conclusão algu­ma a respeito da existência ou não de Deus.

Aconteceu que certa vez uma amiga manifestou-lhe o desejo de visitá­-lo em Leysin nas férias de Páscoa. Jacques não estava disposto a dar-lhe atenção. Perguntou então a um companheiro de Sanatório se conhecia al­gum lugar aonde se pudesse retirar durante a Semana Santa. O amigo indi­cou-lhe a Cartuxa de Valsainte, onde ele mesmo passara dias agradáveis.

“Escrevi então a um dos monges expondo-lhe tanto a minha descrença quanto o meu desejo de passar as férias de Páscoa naquele mosteiro. Uma resposta alegre, fraterna e muito original não tardou a chegar, e assim, na se­gunda-feira da Semana Santa, tomei o trem rumo à Cartuxa de Valsainte” (p. 21).

Chegando à Cartuxa, entrou no quarto de madeira clara para onde o monge hospedeiro o levara, e instintivamente caiu de joelhos, dizendo: “Meu Deus, se existes, faze-me conhecer-te”. “E o Pai Nosso me veio à lembrança, como se o tivesse pronunciado todos os dias da minha vida” (p. 22).

“Assisti, depois, sem ter a menor idéia do que aquelas cerimônias sig­nificavam, aos ofícios da Semana Santa. Nada compreendia do que se desen­rolava diante de meus olhos, mas o espetáculo daqueles monges, o rosto avermelhado pelo frio, que permaneciam durante horas a fio naquelas esta­las, impressionava-me intensamente. Esses homens teriam, pois, descoberto Deus e descobriram-no a ponto de toda a sua felicidade consistir em viver para sempre com ele, nesta solidão glacial.

Na manhã seguinte, recebi a visita do monge hospedeiro, visita que também me surpreendeu profundamente. Preparava-me para receber uma es­pécie de vigário que viesse tomar-me, se não pela mão, pelo menos pelo espí­rito, e explicar-me – como dois e dois são quatro – que Deus existia! Qual não foi minha surpresa ao ver-me diante de um homem que falava e me fazia falar de Valéry e de Gide, dos escritores mais modernos e que se limitou a dizer-me: “Você está num bom caminho, continue”.

Na Quinta-feira Santa fui ao ofício da manhã, como nos outros dias. Vi, então, os monges que se colocavam em círculo, em torno do altar, para comungar. Vi, depois, os irmãos se aproximarem para também comungar e, por fim, os quinze hóspedes que lá se encontravam, fizeram o mesmo. De repente, vi-me sozinho naquele ângulo da tribuna. Todos os outros habi­tantes daquele enorme convento reuniram-se em volta do altar, recebendo a Comunhão. Onde estava realmente o louco? Onde estava o homem sensato? Poderia eu considerar loucos todos esses Cartuxos, que me pareciam, pelo contrário, tão equilibrados e cujo modo de vida eu presenciava? Poderia eu imaginar que estivessem fadados a uma ilusão monumental? Ou estaria eu, com minha negação de Deus, mergulhado nas trevas?

Os poucos dias da Semana Santa passaram rapidamente. No final, par­ticipei das Matinas da Anunciação que fora adiada, naquele ano, para depois da Páscoa. Essa oração noturna, aqueles homens que cantavam com uma voz forte e serena para e em nome da humanidade que os ignorava por com­pleto, marcaram-me profundamente.

A idéia da conversão surgia pouco a pouco em mim e eu nem sequer tinha resolvido o problema de Deus! Perguntava-me, e disso conservei uma nítida lembrança: Se você se converter, como será sua vida depois? A quan­tas coisas terá de renunciar! E, revisando o que compunha a trama de minha vida em Nice, passava pelo crivo minhas diferentes atividades: Isso e aquilo não poderei mais fazer, e toda uma série de espetáculos e de prazeres pare­ciam-me dever ser interditados, quando se descobre Deus. Aceitava renun­ciar a alguns, enquanto outros, pelo contrário, pareciam-me compatíveis: tal concerto, tal filme, aquela peça de teatro. Mas, se uma triagem era possível de ser feita, eu me indagava se realmente chegaria a livrar-me daquela escra­vidão dos sentidos na qual vivia desde tantos anos.

E os Cartuxos, como o conseguiram? No íntimo, tal fato parecia-me tão inacreditável quanto a existência de Deus…

Onde se achava, realmente, a verdadeira inteligência do homem? Esta­ria nesta técnica tão extraordinária que até parecia de outro mundo? Ou a verdadeira sabedoria e a verdadeira inteligência encontravam-se naqueles Cartuxos que, desde a Idade Média, levavam a mesma vida imutável havia cerca de mil anos?

Para que lado deveria eu orientar minha vida? Para o lado destas técni­cas, deste comércio e de tudo o que compunha a minha própria vida de ad­vogado, ou deveria dirigi-la para o lado desta busca permanente de Deus e sua verdade?”

Continua Jacques Loew a narrar suas impressões subseqüentes à expe­riência da Semana Santa, desta vez já de volta de Leysin:

“Sem dúvida, o problema de minha vida estava longe de ser resolvido e minha demanda de Deus não se processava sem este terrível ponto de in­terrogação: Como poderia eu viver na presença de Deus? Repito o que já contei: desde a idade de 11 ou 12 anos minha mente e minha carne viviam li­teralmente assediadas por uma ânsia de prazer.

É preciso ter vivido, real e pessoalmente, nesta espécie de obsessão im­possível de ser satisfeita, para compreender o que seja a escravidão dos sentidos que impede o ato de dar verdadeiramente o coração e a alma a alguém, pelo fato de procurar unicamente o que satisfaz o próprio prazer.

Desde alguns anos, é verdade, essas exigências vinham-me desagradan­do, mas havia uma corrente que eu não conseguia romper. Tendo crescido neste ambiente de Nice, com seus cassinos, seus palacetes e jantares de luxo, tendo ganho de meus pais o primeiro smoking aos 13 anos, muito cedo me corrompi numa vida que, entretanto, parecia muito razoável aos olhos da­queles que me cercavam. Sentia, porém, profundamente essa contradição que reinava em cada um de meus membros. E, acima de tudo, a experiência me havia mostrado que nenhuma saída era possível.

Na solidão de meu quarto, continuava a voltar-me para o Evangelho. Este Cristo me atraía. Não falava à maneira dos homens e eu passei a me di­rigir a ele, embora não tivesse ainda muita certeza da existência de Deus. E, nesta espécie de matemática onde eu procurava a solução de um Cristo des­conhecido, pressenti que a mãe de semelhante homem devia ter um poten­cial de pureza extraordinário. Foi assim que, embora ainda me considerando um incrédulo, lembrei-me de invocar a Virgem Maria, para que ela me liber­tasse de todas as paixões acumuladas havia tantos anos…

Como que para confirmar o novo rumo de meus pensamentos, fui sur­preendido pela carta de uma amiga, estudante em Paris, aluna do filósofo Alain. Num curso de admissão à Escola Normal, um de seus melhores cole­gas acabara de se suicidar por fidelidade – segundo diziam – às idéias de Gide.

Compreendi perfeitamente a atitude deste jovem, preferindo morrer a continuar uma vida absurda e sem fito algum. Mas, no momento em que eu mesmo vislumbrava esta saída, o fato impeliu-me a aprofundar-me ainda mais em minha busca e a pensar que, se um dia eu viesse a descobrir real­mente a luz total, procuraria, como os monges que vi na Cartuxa, consagrar-­me a esta única verdade. Mais tarde, ao ingressar na Ordem Dominicana, fi­quei surpreendido ao saber que a divisa da Ordem era Verítas.

Estas descobertas se processaram na primavera de 1932. Amava cada vez mais a solidão, se é que se pode chamar solidão este diálogo permanente com Deus. Quanto à Virgem Maria, se eu a invocava, fazia-o sem me apro­fundar na realidade de sua existência, sem mesmo pensar que seria atendido; bem mais tarde é que me dei conta disto.

Restava a Igreja. . . A primavera findara, o verão se prenunciava. Esta Igreja, eu a abordava repleto de preconceitos que constituíam um verdadei­ro muro entre ela e mim. Uma brecha se abriu, quando, alguns meses antes, reli Gandhi, após ter visitado os Cartuxos. Gandhi elogiava – o que me im­pressionou grandemente – a pobreza, a castidade e até mesmo uma espécie de obediência a que se submete um chefe que chega a sacrificar-se pelos seus subalternos. Encontrar tais valores neste homem impressionou-me ainda mais, pois percebi que estes valores eram o próprio fundamento da vida dos monges da Cartuxa. Eram pobres, eram castos e eram obedientes.”

Uma vez restabelecido, Jacques voltou para a França, indo ter com seus pais, que faziam uma estação de águas em Aix-les-Bains.

“No primeiro domingo fui à Missa. Para dizer a verdade, não era pro­priamente a Missa que me atraía naquela manhã. Postado no fundo da igreja, o que eu procurava era a maneira de fazer o sinal da cruz. Católico que deci­dira ser, até então não o aprendera. Via por onde começava, mas depois? de­veria tocar o ombro direito ou o esquerdo? Atento esperava ver que de que modo os cristãos e aquela elite de Aix-les-Bains o traçavam. Muitos, na entrada ou na saída da igreja, faziam um gesto circular que partia da testa, mas per­dia-se em seguida no terno ou no vestido, sem que eu realmente conseguisse saber como era feito. Por fim, uma pobre velha, trôpega e com lenço preto amarrado na cabeça, saiu por último e vi, traçado por ela, um belo sinal da cruz. Foi assim que aprendi a faze-lo.

Voltei para casa, ou melhor, para o hotel, com o coração repleto de imensa alegria. Parecia-me que, naquele momento, eu ingressava na Igreja Católica, sabendo o sinal pelo qual o cristão se identificava. Algumas sema­nas depois, indo a Paris, escrevi para um endereço que o monge Cartuxo me dera, quando lá estive. Dissera-me textualmente: ‘Se um dia você quiser ir mais longe na fé católica, procure estes meus amigos, que moram em Paris. São escritores e artistas, mas, por eles, você chegará a se compreender e será bem recebido’ “.

O endereço indicado pelo Cartuxo era o de Stanislas Fumet e sua es­posa, que muito bem acolheram Jacques. Encaminharam-no para um mis­sionário, Mestre de Noviços da Congregação do Espírito Santo, na Rua Lho­mond em Paris.

“Lá tudo se processou rapidamente, visto que, dentro de poucos dias, pude-me confessar e comungar. Esta confissão vinha realmente me libertar de todo o passado e dar-me aquela força que havia tanto tempo eu esperava. A Missa de Primeira Eucaristia e a Confirmação na manhã seguinte, domin­go, foram-me luminosas. Tudo aconteceu como a coisa mais simples do mundo, ao lado de meus padrinhos, os Fumet.”

Aliás, a respeito da Confissão sacramental observa Jacques em página anterior:

“Desconhecia tudo da religião católica, mas, dela, uma coisa eu real­mente admirava e parecia-me profundamente invejável: a confissão. Poder procurar um homem preparado para isso, embora mesmo sem a qualidade de pastor, mas apto e disposto a ouvir nossas misérias, a compreendê-las! Se­quer pensava: a perdoá-las! Um homem cujo papel era ser atento, secreta­mente disposto a nos acolher, apesar das torpezas que lhe podíamos confiar. Muitas vezes pensei nesta realidade como coisa linda e grandiosa”.

Eis a história da conversão de Jacques. – É de notar que não foram tanto os livros que o ajudaram a encontrar Deus e seu caminho definitivo, mas dois fatores parecem ter influído decisivamente na sua conversão: 1) o testemunho dos monges cartuxos, cuja vida muito o impressionou, e 2) a ob­servação da natureza: o livro tem longas considerações sobre os flocos de ne­ve (p. 24), sobre a papoula (pp. 53-65), sobre o “saber olhar a natureza- (as pp. 40-42 têm por título “A escola do olhar”).

2. Comunhão dos Santos

Jacques Loew sabe que a sua conversão não foi a simples descoberta de valores novos por parte de um hábil pesquisador. Ele tem consciência de que foi obra da graça, que irmãos conhecidos e desconhecidos impetraram do Senhor Deus. Por isto refere-se ele à comunhão dos santos, na qual uns ajudam os outros, sem que o saibam:

“O menor ato nosso… Mas, quando este ato é uma oração, quão imensa é sua repercussão!

‘Meu Deus, se existes, faze-me conhecer-te’. Lancei esta súplica ‘na noite’, como o Padre Foucauld e tantos outros. Não sabíamos que já estáva­mos envolvidos pela oração de uma multidão. Orações de nossos amigos, de nossos pais, orações de santa Mônica por seu filho Agostinho, de Madame de Bondy por seu primo Carlos, Visconde de Foucauld.

E também o imenso, o anônimo reservatório de oração sempre em vi­gília dos conventos. E, mais vasto ainda, tal como o oceano, a oração inume­rável dos doentes, dos velhos, os terços e peregrinações, as orações das noi­tes insones.

Todas assinalam estradas, como as lâmpadas azuladas, à noite, indicam as pistas de aterrissagem dos aeroportos.

O homem que lança um apelo a Deus, pensa que sua oração é solitária. Nunca o é. Acontece mesmo, por vezes, descobrimos-lhe a fonte. Esta feli­cidade foi-me dada; tinha eu mais de quarenta anos. Padre-operário, devia ir a Roma. Minha mãe pediu-me que fosse fazer uma visita e cumprimentar, em seu nome, uma velha amiga: quando crianças, freqüentaram o mesmo co­légio. Depois, essa amiga entrou no convento e fez-se Irmãzinha da Assun­ção. Residia em Roma.

Encontrei uma Religiosa que, embora já de idade, mostrava-se cheia de vida. Alegre, recebeu-me com um cerimonioso ‘Reverendo Padre’. Sua espontaneidade, porém, depressa sobrepujou a etiqueta e ela exclamou: ‘Meu Jacquinho!’ Depois, revivendo sua juventude, contou-me: ‘Quando você nas­ceu, eu era noviça, no convento das Irmãzinhas da Assunção. Tinha certeza de que sua mãe o educaria com grande amor, mas, certamente, sem uma pie­dade equivalente. Então no meu fervor de jovem religiosa, rezei por este Jac­quinho como nunca o fiz por ninguém!’

Coincidência? Acaso? Cada um dirá o que quiser. Lenta germinação, frutificando vinte e quatro anos depois? Realidade da oração?

Para mim, não há a menor dúvida. E esta certeza tem um nome: Co­munhão dos Santos”.

3. A Igreja

A respeito da Igreja, cuja face visível lhe causara dificuldades quando hesitava em Leysin, Jacques Loew tem belas páginas no seu livro:

“Instituição e comunhão, tais são as duas faces através das quais abor­dei a Igreja. Deter-me aí seria omitir a palavra que hoje me parece a mais es­sencial para defini-la, a palavra que une, numa única realidade, estes dois as­pectos – face visível e vida secreta – da Igreja única, palavra que, de modo especial, é a mais antiga tradição dos séculos cristãos.

Sei que muitos a pronunciam com dificuldade e eu mesmo levei tem­po para dizê-la. Sem dúvida, porque ela se apresentava diluída nos anúncios estereotipados de falecimentos: ‘confortado com os sacramentos da Santa

Madre Igreja…’

Sim, a palavra de que me aposso hoje, após cinqüenta anos de vida na Igreja, é a de mãe. Compreendida como convém, conduz ao próprio coração do mistério e exprime a razão de ser da Igreja…

A célebre frase de São Cipriano: ‘A esposa de Cristo gera espiritual­mente filhos para Deus. . . Para que alguém possa ter Deus como Pai, pro­cure ter antes a Igreja como mãe!’ não é um isolado brado de entusiasmo, mas o condensado de séculos precedentes. ,

De São Paulo, que fala da ‘Jerusalém do Alto, nossa mãe’, que faz de nós homens livres, de São João que fala ‘à Senhora eleita e a seus filhos’, às testemunhas dos primeiros séculos, Irineu, Orígenes, Basílio, Agostinho,es­se mesmo pensamento predomina, expresso em termos semelhantes.

Mãe, a Igreja gerou-me para Cristo. É ela que me dá sua Palavra. Jesus, antes de deixar a terra, não nos legou livro nem código, nem catecismo, mas uma Igreja na qual nasceram os Evangelhos e que, inspirada pelo Espírito de Cristo, selecionou, de uma coleção de documentos, os escritos do futuro Novo Testamento. É ela que hoje me diz: ‘Toma e lê. . .’ E foi em seu seio que o Símbolo dos Apóstolos, o autêntico resumo de minha fé, tomou cor­po. E quem, se não a Igreja Mater et Magistra, mãe e mestra de vida, educou-­me e ensinou-me cada dia a ‘viver segundo a fé’, a discernir o que é confor­me ao Evangelho?

Ainda mais Mãe, a Igreja dá-me vida, através dos sacramentos de Cris­to: os gestos que Jesus realizou durante sua vida terrestre foram confiados a ela através dela chegaram até mim: alimentam-me curam-me, restabele­cem-me na amizade de Deus, unem-me aos outros. Mãe, ela o é, minha Igreja e mãe de filhos incontáveis! Quanto mais aceito e entro em sua maternidade, melhor se realiza o meu nascimento nunca terminado em Cristo, e mais me torno, para mim, e para os outros, a Igreja.

Não se trata de uma teoria – mãe nunca foi teoria! Aquele menino chinês, tão profundamente compromissado com Deus, ninguém ensinara a resposta que daria aos guardas vermelhos que haviam fechado a igreja local e proibido o acesso: ‘Vai embora, a Igreja não existe mais!’ disseram eles. ‘A que igreja o senhor se refere? a Igreja sou eu’. Do pequenino chinês desco­nhecido aos maiores santos, esta convicção nossa de ser a Igreja, é fonte de discernimento, reconhecemos tarefas a cumprir – e fonte de humildade, não nos esgotamos em críticas.

Em Roma, um jornalista interpelou Madre Teresa de Calcutá: ‘Madre, em sua opinião, que anda errado na Igreja?’ E a resposta brotou imediata: ‘O senhor e eu!’

A história da Igreja não dissimula faltas e erros que a toldaram, e mos­tra também que, nestes momentos de trevas mais densas, surge, de seu pró­prio seio, um homem ou uma mulher que, de modo misterioso, traz a luz e remédio para os males.

Em meio às piores libertinagens do Renascimento italiano, à brutali­dade, ao luxo desenfreado e costumes licenciosos de sua corte, Luiz Gonza­ga, ele mesmo príncipe do Sacro Império, renuncia a seu título de Marquês de Mântova; ingressa na Ordem dos Jesuítas, morre aos 33 anos, de peste, ao assistir às inúmeras vítimas daquela calamidade. Saneou também a Igreja de seu tempo e inúmeros contemporâneos seus.

De onde vem esta força secreta? De Jesus Cristo, dizem estes servido­res da Igreja, mas o monge cisterciense Isaac da Estrela lembra-nos as três presenças atuantes de Jesus: em Maria, na Igreja e em nossa alma:

No tabernáculo do seio de Maria, Jesus permaneceu nove meses. No tabernáculo da fé – a Igreja – ele permanece até a consumação do mundo. No conhecimento e no amor da alma fiel, permanecerá nos séculos dos sé­culos (sermão 61, sobre a Assunção, P.L. 194, 1865).

Nestas três moradas do Senhor, nesta proximidade plena de promes­sas, encontra-se o segredo da Igreja e daqueles que crêem.”

4. Conclusão

O livro de Jacques Loew é valioso porque nos apresenta a história do homem de todos os tempos ou do homem que procura o sentido da vida[2] ; considera diversas tentativas de resposta: a atéia cética, a muçulmana, a bu­dista, a cristã, e, dentro do Cristianismo, a protestante e a católica. Finalmen­te, após muito hesitar e haver feito a experiência da procura livre do prazer, opta pelo Cristo em sua Igreja entregue a Pedro e seus sucessores. E torna-se, daí por diante, um frade pregador, um arauto convicto desta mensagem nos meios intelectuais acadêmicos e nos meios operários.

A experiência de Loew pode servir a muitas pessoas que indagam se­quiosamente a respeito da razão de ser da sua existência. Todos nós temos a mesma estrutura básica, de modo que a sorte de uns pode ser referencial pa­ra outros.

Agradecemos, pois, a Jacques Loew por nos ter falado do íntimo da alma neste seu último livro. O leitor encontrará aí um espécimen típico do que é o ser humano na sua realidade mais profunda e autêntica.

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NOTAS:

[1] “Meu Deus em quem confio”, por Jacques Loew. Coleção “Água Viva”

n° 13. Tradução de Maria Cecilia Duprat. – Ed. Paulinas, São Paulo 1986, 160 x 235 mm, 214 pp.

[2] A necessidade de o descobrir é a mais fundamental do ser humano. Ver Viktor Frankl, Psicoterapia e Sentido da Vida, nova edição. Ed. Quadrante, Rua lperoig 604 – 05016 São Paulo (SP).