Religião: o que é religião?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 283/1985)

por Rubem Alves

Em síntese: O autor, pastor protestante, considera o pensamento de autores antigos e modernos (estes… materialistas e ateus), para mostrar que é inadequado o discurso anti-religioso ou que não corresponde à verdade. Termina afirmando o valor da Religião como atitude espontânea, incoercível e profundamente positiva do coração humano (infelizmente o autor é, de certo modo anti-intelectual, de modo que mais valoriza as razões do coração do que as da razão em favor da Religião). A leitura do livro não é fácil, pois, ao expor o pensamento dos ateus, o autor parece identificar-se com eles (as­sim a leitura de páginas isoladas do livro pode comunicar noção errada da mensagem respectiva). Além disto, R. Alves usa de expressões figuradas ao abordar positivamente a Religião – o que se presta a mal-entendidos. Por último, notamos que o autor se define em prol da Religião como tal sem en­trar em questões de Credo – o que poderia sugerir certo relativismo. Na ver­dade, a Religião não é uma atitude cega ou meramente sentimental do ser humano, mas resulta de uma opção inteligente da pessoa; por conseguinte, ela tem relação com a verdade; ela professa artigos de fé, que são verídicos e que não podem ser trocados por quaisquer outras proposições de fé.

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Rubem Alves é pastor protestante que se tem dedicado ao estudo, ha­vendo feito seu doutoramento em Princeton (New Jersey, U.S.A.). É autor de várias obras de caráter filosófico-religioso, que têm repercutido nos am­bientes intelectuais e estudantis do Brasil e do estrangeiro.

O livro “O que é Religião” foi publicado pela primeira vez em 1981; em 1984, achava-se na 5ª edição – o que bem mostra como tem impressio­nado.[1] Na verdade, é obra destinada a um público de certa cultura, redigida em linguagem semi-poética (o que quer dizer: por vezes obscura, sujeita a mal-entendidos) e não raro descuidada ou quase irreverente. O autor percor­re algumas das modernas escolas de Filosofia e suas atitudes perante a Reli­gião; em cada capítulo fala como se fosse um apologista da respectiva escola (o que pode sugerir que Rubem Alves é discípulo de Durkheim, de Freud, de Feuerbach, de Marx…). Todavia após expor muito vivamente o pensa­mento de cada corrente moderna atéia, conclui no capítulo final em favor da Religião como tal, sem se pronunciar por algum Credo. Poder-se-ia dese­jar, sem dúvida, uma linguagem mais decidida e comprometida com a verdade da parte de R. Alves; este muitas vezes não vai ao âmago do problema reli­gioso. Como quer que seja, para bom entendedor, o livro é uma apologia da Religião, que pode interessar especialmente aos que estão longe de Deus e não acompanhariam um linguajar mais técnico e preciso.

Nas páginas subseqüentes, apresentaremos breve síntese do livro, pon­do em relevo seus tópicos principais:

1. O conteúdo do livro

1.1. “Perspectivas” (pp. 7-13)

O autor começa olhando ao redor de si no mundo contemporâneo (pp. 7-13). A ciência e a técnica parecem ter removido a Religião: “uma das marcas do saber científico é o seu ateísmo metodológico: um biólogo não invoca maus espíritos para explicar epidemias, nem um economista os poderes do inferno para dar contas da inflação…” (p. 8) – A propósito no­tamos que tal modo de proceder dos cientistas é legítimo e foi reconhecido pelo Concílio do Vaticano II:

“O Sagrado Concílio, retomando o ensinamento do Concílio Vatica­no I, declara que há duas ordens de conhecimento distintas, a saber, a da fé e a da razão. Portanto, a Igreja não pode absolutamente impedir que as artes e disciplinas humanas usem de princípios e métodos próprios, cada uma em seu campo. Por isto, reconhecendo a justa liberdade, afirma a legítima auto­nomia da cultura humana e particularmente das ciências” (Constituição Gaudium et Spes n° 59; ver também n° 36).

Pergunta então R. Alves: “Desapareceu a religião?” E responde: “De forma alguma. Ela permanece e freqüentemente exibe uma vitalidade que se julgava extinta” (p.9).

“A religião não se liquida com a abstinência dos atos sacramentais e a ausência dos lugares sagrados, da mesma forma como o desejo sexual rijo se elimina com os votos de castidade. E é quando a dor bate à porta e se esgo­tam os recursos da técnica que nas pessoas acorda… aquele que reza e supli­ca, sem saber direito a quem… E surgem então as perguntas sobre o sentido da vida e o sentido da morte, perguntas das horas de insônia e diante do es­pelho… O que ocorre com freqüência é que as mesmas perguntas religiosas do passado se articulam agora travestídas por meio de símbolos seculariza­dos. Metamorfoseiam-se os nomes. Persiste a mesma função religiosa… A religião está mais próxima da nossa experiência pessoal do que desejamos admitir” (pp. 11s).

1.2 “Os símbolos da ausência…” (pp. 14-35)

À diferença dos animais irracionais, que repetem sempre os mesmos comportamentos mediante os seus dentes, as suas garras, os seus venenos e odores, os seus cascos duros…, o homem cria produtos sempre novos, que ele inventa. . . e que constituem a sua cultura. Esta consta de símbolos diver­sos, que exprimem os anseios mais profundos do homem. Entre estes símbo­los, estão os símbolos religiosos, que exprimem o senso do sagrado presente em todo homem; altares, santuários, templos, livros, perfumes, canções, nor­mas, procissões, peregrinações, celebrações…, são sinais visíveis de realida­des invisíveis, que os olhos não vêem, mas que a fé é capaz de contemplar. Para ilustrar estas afirmações, R. Alves cita um trecho do “Pequeno Prínci­pe” de Antoine de Saint-Exupéry:

“O príncipe encontrou-se com um bichinho que nunca havia visto an­tes: uma raposa. E a raposa lhe disse:

‘Você quer-me cativar?’

Que é isto?’, perguntou o menino.

‘Cativar é assim: eu me assento aqui, você se assenta lá, bem longe. Amanhã a gente se assenta mais perto. Assim, aos poucos, cada vez mais perto… ‘

E o tempo passou, o principezinho cativou a raposa e chegou a hora da partida.

‘Eu vou chorar’, disse a raposa.

Não é minha culpa, desculpou-se a criança. ‘Eu lhe disse: eu não que­ria cativá-la. . . Não valeu a pena. Você percebe? Agora você vai chorar!’

‘Valeu a pena, sim’, respondeu a raposa. ‘Quer saber por quê?! Sou uma raposa. Não como trigo. Só como galinhas. O trigo não significa absolu­tamente nada para mim. Mas você me cativou. Seu cabelo é louro. E agora, na sua ausência, quando o vento fizer balançar o campo de trigo, eu ficarei feliz pensando em você…’

E o trigo, dantes sem sentido, passou a carregar em si uma ausência, que fazia a raposa sorrir. Parece-me que esta parábola apresenta, de forma pa­radigmática, aquilo que o discurso religioso pretende fazer com as coisas: transformá-las de entidades brutas e vazias em portadoras de sentido” (pp. 27s).

Com palavras aproximativas, ainda que pálidas, Saint-Exupéry insinua
o que seja a percepção do transcendental que se exprime mediante símbolos.
Está claro que a produção de símbolos religiosos e o cultivo da cons­ciência do transcendental não servem “para arar solo ou mover máquinas. Os símbolos não possuem tal tipo de eficácia. Mas eles respondem a um outro tipo de necessidade, tão poderoso quanto o sexo e a fome: a necessidade de viver num mundo que faça sentido” (pp. 34s). Na verdade, são os valores re­ligiosos ou é o mundo transcendental que dá sentido a esta vida e ajuda o homem a desempenhar-se dignamente da sua missão terrestre.

1.3 “O exílio do sagrado” (pp. 36-51)

A Idade Média viveu intensamente da consciência do sagrado e dos va­lores invisíveis. Sobreveio, porém, o século XVI, em que começaram a des­pertar nos homens interesses novos e utilitários: “produzir, comerciar, ra­cionalizar o trabalho, viajar para descobrir novos mercados, obter lucros, criar riquezas” (pp. 43s). A atitude contemplativa e reverente do homem medieval foi cedendo ao espírito pragmático do homem moderno, o que prejudicou grandemente a religião, levando os homens ao materialismo: “Si­lenciosamente a burguesia triunfante escreve o epitáfio da ordem sacral ago­nizante: ‘Os religiosos, até agora, procuraram entender a natureza, mas o que importa, não é entender, mas transformar’ ” (p. 45).[2]

No afã de conquistar o mundo, a matemática tornou-se o instrumento por excelência, de tal modo que David Hume ( 1776) podia escrever:

“Quando percorremos nossas bibliotecas, convencidos destes princí­pios, que destruição temos de fazer! Se tomarmos em nossas mãos qualquer volume, seja de teologia, seja de metafísica, escolástica, por exemplo, per­guntemo-nos: Será que ele contém qualquer raciocínio abstrato relativo à quantidade e ao número? Não. Será que ele contém raciocínios experimen­tais que digam respeito a matérias de fato e à existência? Não. Então, lan­çai-o às chamas, pois ele não pode conter coisa alguma a não ser sofismas e ilusões” (citado à p. 36).

Os cientistas foram penetrando os segredos da natureza e dessacralizando-a ou reduzindo-a ao funcionamento de leis físicas e químicas. As ciên­cias trouxeram notável bem-estar para o homem, de modo que a religião pas­sou a ser menosprezada, “identificada com o passado, o atraso, a ignorância de um período negro da história, Idade das Trevas, . . . ilusão, ópio, neuro­se, ideologia” (pp. 49s).

Se a religião não foi por completo banida, “ela foi aquinhoada com a administração do mundo invisível, o cuidado da salvação, a cura das almas aflitas” (p. 50).

Observa, porém, R. Alves:

“Curioso que ainda tivesse sobrado tal espaço para a religião… Pare­ce entretanto que há certas realidades antropológicas que permanecem a des­peito de tudo. As pessoas continuam a ter noites de insônia e a pensar sobre a vida e sobre a morte… E os negociantes e banqueiros também têm alma, não lhes bastando a posse da riqueza, sendo-lhes necessário plantar sobre ela também as bandeiras do sagrado… Não é por acidente que a mais poderosa das moedas se apresente também como a mais piedosa, trazendo gravada em si mesma a afirmação ‘In God we trust’ (nós confiamos em Deus).

E também os operários e camponeses possuem almas e necessitam ou­vir as canções dos céus a fim de suportar as tristezas da terra” (pp. 50s).

1.4 “A coisa que nunca mente” (pp. 52-67)

O fenômeno religioso é um fato, e um fato universal, ocorrente em to­dos os povos e em todas as épocas. “A universalidade e a persistência da reli­gião nos sugerem que ela nos revela um aspecto essencial e permanente da humanidade” (p. 59); não é um fenômeno passageiro, em vias de desapareci­mento. Embora as correntes religiosas da humanidade apresentem imensa va­riedade de crenças e ritos, elas manifestam algo de real ou exprimem a verda­de: a dimensão religiosa é própria de todos os homens e tem certas expres­sões que procedem da natureza do homem como tal; não são produtos de ficções ou culturas, mas revelam a realidade nativa do ser humano.

O mundo religioso ou sagrado difere do não religioso ou do profano (secular) pelo fato de que este é utilitário ou pragmático, ao passo que aque­le escapa a esta qualificação; no mundo profano utilitário, o homem é se­nhor dos valores, serve-se do que lhe parece interessante, e joga fora o mes­mo objeto logo que outro lhe apresente maior utilidade ou rentabilidade (assim se faz com a esferográfica BIC, com os medicamentos cujo prazo de validez esteja esgotado, com o coador de café, etc.). Ao contrário, no mun­do do sagrado ou religioso, o homem já não é “o centro do mundo nem a origem das decisões. . . Ele se sente envolvido por algo… que lhe impõe normas de comportamento que ele não pode transgredir mesmo que não apresentem utilidade” (p. 61): o jejum, o perdão, a renúncia… são práticas que não se definem por sua utilidade, mas sim pela densidade sagrada que a religião lhes atribui.

“A vida social, tal como a conhecemos, não se enquadra no jogo se­cular e utilitário. As coisas mais sérias que fazemos, nada têm a ver com a utilidade. Resultam de nossa reverência por normas que não criamos, que nos coagem, que nos põem de joelhos… Do ponto de vista estritamente uti­litário, seria mais econômico matar os velhos, castrar os portadores de defei­tos genéticos, matar as crianças defeituosas, abortar as gravidezes acidentais e indesejadas, fazer desaparecer os adversários políticos, fuzilar os crimino­sos e possíveis criminosos. . . Mas alguma coisa nos diz que tais coisas não devem ser feitas. Por quê? Porque não. Por razões morais, sem justificativas utilitárias. E, mesmo quando as fazemos sem sermos apanhados, há urna voz, um sentimento de culpa, a consciência, que nos diz que algo sagrado foi vio­lentado” (pp. 62s).

Quando a secularização avança, impondo critérios utilitários e elimi­nando o sagrado, “pessoas perdem os seus pontos de orientação. Sobrevém a anarquia. E a sociedade se estilhaça sob a crescente pressão das forças cen­trífugas do individualismo” (p. 63).

1.5. “As flores sobre as correntes” (pp. 68-84)

No século passado, Marx encontrou um mundo muito invadido pelo utilitarismo e desligado do sagrado. Marx reafirmou tal mundo: concebeu o ser humano como um vivente cheio de carências materiais; enquanto estas não são preenchidas, o homem se volta para Deus e para o mundo invisível do sagrado. Todavia, desde que se dê a resposta material às carências mate­riais da pessoa, esta dispensa a religião. Marx dizia que não são as idéias (a religião, o direito, a filosofia…) que movem a matéria (armas, máquinas, Bancos, fábricas…), mas, ao contrário, são as realidades materiais que pro­duzem as idéias (a religião, as leis, a Moral, a metafísica…); a injusta distri­buição dos bens materiais geraria os sentimentos e as práticas religiosas co­mo ópio do povo ou como anestésico que o ajudaria a suportar o jugo das injustiças.

Marx, portanto previa o fim da religião.

1.6. “A voz do desejo” (pp. 85-101)

Rubem Alves expõe, sob este título, o pensamento de Ludwig Feuerbach ( 1872) e o de Sigmund Freud ( 1939).

Para Feuerbach, a religião é um sonho, que exprime aquilo que o ho­mem deseja, mas não existe. De modo semelhante, Freud ensina que “os so­nhos são a voz do desejo. E é aqui que nasce a religião, como mensagem do desejo, expressão de nostalgia, esperança de prazer…” (p. 91). Todavia pa­ra Freud esses desejos íntimos são ilusórios; por isto a própria religião é um grande logro. Ao contrário, para Feuerbach, a religião afirma a Divindade do homem, o caráter sagrado dos seus valores, o absoluto do seu corpo, a bondade de viver, comer, ouvir, cheirar, ver… Portanto Deus não existe em si, como realidade objetiva, mas o homem se auto-afirma como um deus quando ele cultiva a religião.

1.7. “O Deus dos oprimidos” (pp. 102-114)

Outrora floresceu um tipo de religião que vai sendo restaurada: a re­ligião dos profetas de Israel. “Estes entendiam que o sagrado, a que davam o nome de vontade de Deus, tinha a ver fundamentalmente com a justiça e a misericórdia. Em suas bocas tais palavras tinham um sentido político e social que todos entendiam” (p. 103). Eram os porta-vozes dos desgraçados e injustiçados da terra; por causa disto, não raro sofreram perseguição e morte; não obstante, pregaram o Reino de Deus, “em que as armas seriam transfor­madas em arados.. . e a terra seria devolvida, como herança, aos mansos, fracos, pobres e oprimidos” (p. 105).

Os profetas demonstraram que a religião não é necessariamente “ópio do povo”, como dizia K. Marx. Os pequeninos podem conceber suas utopias e os seus sonhos; e, uma vez conscientizados de sua força, podem atrever-se a transformar seus sonhos em realidade e a fazer descer o paraíso dos céus à terra. “Se a Religião fosse apenas ópio, veríamos o Estado e o poder eco­nômico ao seu lado, protegendo-a como aliada; acontece, porém, que os po­derosos têm perseguido arautos da religião, ; como Gandhi, Martin Luther King, Oscar Romero e muitos outros. “Isto não aconteceria se fossem alia­dos do poder. Testemunhos da significação política da religião profética, ex­pressão das dores e das esperanças dos que não têm poder. Ópio do povo? Pode ser, mas não aqui. Em meio a mártires e profetas, Deus é o protesto e o poder dos oprimidos” (p. 114).

1.8. “A Aposta” (PP. 115-129)

Neste capítulo final R. Alves observa que nas páginas anteriores ouviu psicólogos, filósofos, cientistas sociais a falar sobre religião. Uns acusaram-na de “louca, aliada aos poderosos, narcotizadora dos pobres”; outros, ao con­trário, tentaram defendê-la a seu modo, julgando que sem a religião o mun­do humano não pode existir (Durkheim) ou que a religião é a propulsora das esperanças dos pobres. A religião seria um valor, mas um valor meramente subjetivo, sem correspondente objetivo ou sem um Deus existente fora do sujeito religioso.

Todavia, acrescenta R. Alves, esses cientistas falavam de religião sem ter a experiência da fé. Como cientistas, julgavam-se obrigados a um rigoroso ateísmo metodológico. A ciência os tornava míopes e cegos: “viam as coisas de cabeça para baixo; não por má fé, mas por incapacidade cognitiva” (p. 116).

Esta cegueira dos cientistas é ilustrada por uma parábola:

‘Num lugar não muito longe daqui havia um poço fundo e escuro on­de, desde tempos imemoriais, uma sociedade de rãs se estabelecera. Tão fun­do era o poço que nenhuma delas jamais havia visitado o mundo de fora. Es­tavam convencidas de que o universo era do tamanho do seu buraco. Havia sobejas evidências científicas para corroborar esta teoria e somente um louco, privado dos sentidos e da razão, afirmaria o contrário. Aconteceu, entretan­to, que um pintassilgo que voava por ali viu o poço, ficou curioso, e resolveu investigar suas profundezas. Qual não foi sua surpresa ao descobrir as rãs!

Mais perplexas ficaram estas, pois aquela estranha criatura de penas colocava em questão todas as verdades já secularmente sedimentadas e comprovadas em sua sociedade. O pintassilgo morreu de dó. Como é que as rãs podiam viver presas em tal poço, sem ao menos a esperança de poder sair? Claro que a idéia de sair era absurda para os batráquios, pois, se o seu buraco era o uni­verso, não poderia haver um ‘lá fora’. E o pintassilgo se pôs a cantar furiosa­mente. Trinou a brisa suave, os campos verdes, as árvores copadas, os ria­chos cristalinos, borboletas, flores, nuvens, estrelas… o que pôs em polvo­rosa a sociedade das rãs, que se dividiram. Algumas acreditaram e começa­ram a imaginar como seria lá fora. Ficaram mais alegres e até mesmo mais bonitas. Coaxaram canções novas. As outras fecharam a cara. Afirmações não confirmadas pela experiência não deveriam ser merecedoras de crédito, elas alegavam. O pintassilgo tinha de estar dizendo coisas sem sentido e men­tiras. E se puseram a fazer a crítica filosófica, sociológica e psicológica do seu discurso. A serviço de quem estaria ele? Das classes dominantes? Das classes dominadas? Seu canto seria uma espécie de narcótico? O passarinho seria um louco? Um enganador? Quem sabe ele não passaria de uma alucina­ção coletiva? Dúvidas não havia de que o tal canto havia criado muitos pro­blemas. Tanto as rãs-dominantes quanto as rãs-dominadas (que secretamente preparavam uma revolução) não gostaram das idéias que o canto do pintas­silgo estava colocando na cabeça do povão. Por ocasião de sua próxima visita o pintassilgo foi preso, acusado de enganador do povo, morto, empalhado e as demais rãs proibidas, para sempre, de coaxar as canções que lhes ensinara…

Foi assim que aconteceu: a ciência empalhou a religião, tirando dela verdades muito diferentes daquelas que a própria religião viva cantava. Acontece que as pessoas religiosas, ao dizer os nomes sagrados, realmente crêem num ‘lá fora’ e é deste mundo invisível que suas esperanças se alimen­tam. Tudo tão distante, tão diferente da sabedoria científica…

Se vamos ouvir as pessoas religiosas, é necessário fazer-de-conta que acreditamos. Quem sabe o pintassilgo tem razão? Quem sabe o universo é mais bonito e misterioso que os limites do nosso poço? Sobre o que fala a religião?” (pp. 119-121).

Conclui R. Alves que ao homem vale a pena aceitar o desafio da Reli­gião e acreditar como quem aposta, alimentando a esperança de que não será frustrado ou desiludido. A Religião revela novas facetas do universo e o pró­prio sentido da vida, desde que alguém se queira confiar a ela.

“Como o trapezista que tem de se lançar sobre o abismo, abandonan­do todos os pontos de apoio, a alma religiosa tem de se lançar também sobre o abismo, na direção das evidências do sentimento, da voz do amor, das su­gestões da esperança. Nos caminhos da esperança. Nos caminhos de Pascal e Kierkegaard, trata-se de uma aposta apaixonada… Porque é mais belo o ris­co ao lado da esperança do que a certeza ao lado de um universo frio e sem sentido… ” (pp. 128s).

Assim se encerra o livro, cuja leitura atenta sugere algumas reflexões, que poderíamos sintetizar como abaixo.

2. Refletindo…

Proporemos três pontos:

1) A leitura do livro em pauta não é fácil, porque o autor parece iden­tificar-se com o pensamento de cada filósofo (materialista ou ateu) que ele menciona: “Em cada capítulo esforcei-me por assumir a identidade daquele em cujo nome falei. Tentei ser positivista, tentei ser Durkheim, falei como se fosse Marx, como se fosse Freud e Fuerbach, procurei as visões e os mundos dos profetas” (p. 117). Em conseqüência, o leitor pode pensar que R. Alves quer destruir a Religião, como o faz Freud ou Marx… Somente na conclu­são percebe ele claramente que tal não é a atitude do autor.

2) Além de parecer identificar-se com pensadores irreligiosos, R.Alves, ao falar positivamente da Religião, usa expressões um tanto chocantes: “A religião entrega aos deuses os seus mortos” (p. 126), “Ah! Se pudéssemos ficar grávidos de deuses…” (p. 118), “Que confissão íntima de amor não está grávida de deuses?” (p. 13), “Os deuses e esperanças religiosas ganharam novos nomes e novos rótulos” (p. 12)… Na verdade, R.Alves não é politeís­ta, mas serve-se de estilo um tanto sarcástico e irreverente, que resulta de sua têmpera poética e tendente à independência. O autor é descomprometido com a realidade objetiva da Religião. É o que pode tornar o seu livro ambí­guo.

3) No final do livro, como também no capítulo primeiro, o autor quer dizer que a Religião vale plenamente, apesar de todas as contestações e rene­gações que tem sofrido por parte dos ateus. Esta conclusão, porém, sugere duas observações:

– o autor propõe o valor da religião recorrendo às necessidades e as­pirações do coração ou dos sentimentos do homem, sem levar em devida conta o rigor do raciocínio e da lógica para fundamentar a atitude e a práti­ca religiosa; a inteligência bem conduzida atinge Deus e justifica solidamen­te a fé e as observâncias religiosas. Rubem Alves se exprime como um anti-intelectual, embora seja um pensador e escritor de projeção nas fileiras protes­tantes. Esse anti-intelectualismo deixa lamentáveis lacunas no livro de R. Alves;

– o autor não se compromete com algum Credo religioso nas páginas do seu livro (sabemos, porém, que é pastor protestante). Quer valorizar a Religião, dando a impressão de que não há propriamente verdades claras e precisas em matéria de religião, mas sentimentos e emoções, para as quais o Credo seria algo de secundário. O leitor poderá, sem dúvida, aceitar a posição pró-Religião de R. Alves, mas, prosseguindo o raciocínio ocasionado pe­la leitura da obra, perceberá que também há verdades no tocante à Religião e que, por conseguinte, a Religião tem o seu Credo definido…

Possa o livro assim apresentado ser útil a quem o souber ler com o devido entendimento!

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NOTAS:

[1] Rubem Alves, O que é Religião. Coleção “Primeiros Passos” n° 31. Ed. Brasiliense, R. General Jardim 160, 01223 São Paulo (SP), 1984 (5ª edição), 114x 160 mm, 132 pp.

[2] As palavras desta frase final são a paráfrase de uma sentença de Karl Marx, que rejeitava a filosofia anterior por dar o primeiro lugar ao Logos, ao pensamento e à verdade, e proclamava a primazia da praxis ou da ação trans­formadora sobre a própria verdade.

A ESCALA DOS VALORES

“TODOS OS CORPOS, O FIRMAMENTO, AS ESTRELAS, A TERRA E OS SEUS REINOS NÃO SE COMPARAM AO MÍNIMO DOS ESPÍRITOS, POIS O ESPIRITO CONHECE ISSO TUDO E CONHECE-SE A SIM MESMO, AO PASSO QUE OS CORPOS NADA CONHECEM. TODOS OS CORPOS JUNTOS E TODOS OS ESPÍRITOS JUNTOS E TODAS AS SUAS OBRAS. NÃO SE COMPARAM COM O MÍNIMO MOVIMENTO DE CARIDADE, POIS ESTE PERTENCE A UM PLANO INFINITA­MENTE MAIS ELEVADO. NÃO É SEGUNDO AS DIMENSÕES ESPACIAIS QUE DEVO AVALIAR A MINHA DIGNIDADE, MAS SEGUNDO A LINHA DO MEU PENSAMENTO. PELO ES­PAÇO O UNIVERSO ME ENVOLVE E ME TRAGA COMO SE FOSSE UM PONTO; PELO PENSAMENTO, EU O ENVOLVO”.