(Revista Pergunte e Responderemos, PR 474/2001)
Em síntese: A história mostra que a religião foi um elemento propulsor de muitos empreendimentos do homem: a casa, as estradas, a agricultura, a indústria… muito se beneficiaram da inspiração religiosa. A Escola de Etnologia de Viena, após minucioso estudo dos povos primitivos, afirma que a religião era inicialmente monoteísta; com o progresso da civilização foi declinando para o politeísmo com seus mitos, o endeusamento da natureza (da qual o homem depende)… até o culto do Imperador.
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Dado que os povos primitivos manifestavam evidente senso religioso, pergunta-se: não seria a religião a expressão do medo, da ignorância e da simploriedade do homem? Não estaria ultrapassada em nossos tempos, incapaz de resistir ao crivo da inteligência?
Abordemos a temática.
1. Religião – elemento propulsor
Longe de se prender à ignorância e à covardia, a Religião tem sido poderoso estímulo da cultura: verifica-se que as grandes conquistas da civilização no decorrer dos séculos foram empreendidas primeiramente por interesses religiosos. Para ilustrar isto, os geógrafos apontam longa série de instituições culturais que a Religião inspirou ou, ao menos, fomentou pujantemente:
a) A casa. O domicílio do homem difere do ninho ou do antro do animal irracional não só por sua complexidade, mas principalmente por ser em seus primórdios um santuário religioso. Com efeito, o tipo característico da casa entre os romanos, por exemplo, se deve ao culto do fogo sagrado, fogo junto ao qual residiam os deuses Lares e Penates; para defender dos profanos o fogo santo, os homens construíram em torno dele um enquadramento, no qual aos poucos conceberam a idéia de estabelecer sua própria residência. Algo de semelhante se deu entre os gregos, os quais diziam que o fogo havia ensinado os homens a construir seu domicílio. O fogo parece ter entrado nas casas em geral primeiramente a título religioso; só posteriormente foi dentro de casa utilizado para fins domésticos (aquecer, cozinhar…); ainda há tribos antigas que deixam a cozinha com o fogo fora de casa, só introduzindo no domicílio o fogo de caráter religioso. – Numerosos são os vestígios de crenças religiosas na arquitetura e na localização das casas, na disposição de portas, janelas e poços, entre os diversos povos.
b) As cidades. Também a formação e a configuração das cidades foram fortemente inspiradas por motivos religiosos. Era em torno de um templo ou de um recinto de culto que se ia aglomerando a população de uma região, dando assim origem a uma aldeia ou cidade; Enéias, por exemplo, fundou a cidade de Lavinium, levando para o santuário do mesmo nome os deuses de Tróia; na Idade Média era em torno de uma igreja situada no alto de uma colina, ou em torno de um mosteiro, que freqüentemente se fundavam as cidades (tenham-se em vista os nomes compostos com moutier, mosteiro: Romainmoutier, Moyenmoutier, Noirmoutier...; em alemão Münster…).
Observe-se também que desde cedo se foram constituindo cidades entre os egípcios, os mesopotâmicos, os cretenses, porque a religião lhes favorecia; julgavam que os deuses queriam cidades; as grandes cidades gregas nasceram em período de efervescência religiosa. Ao contrário, os germanos, os celtas, os albaneses só tardiamente conheceram cidades, porque a sua sabedoria religiosa não as fomentava; foram não raro estrangeiros que entre eles fundaram as cidades.
c) A agricultura. Foi também muito estimulada por concepções religiosas, que atribuíam a certas plantas um valor sagrado ou uma função qualquer no culto. Tal foi o caso da figueira, que na Índia traz o nome de ficus religiosa; os gregos diziam que o figo era símbolo de iniciação a melhor vida, A oliveira gozou de semelhante estima. – O ópio, ao contrário, sendo proibido pelo budismo e o islamismo, é cultivado com estranha irregularidade no Oriente.
d) Os animais. Também não poucos animais têm recebido veneração religiosa. Em vários casos a passagem do animal selvagem para o estado de animal doméstico se fez mediante o estado de animal sagrado. O elefante, por exemplo, antes de ser animal doméstico, era animal sagrado na Índia. No antigo Egito, os gatos sagrados eram numerosíssimos (descobriram-se milhares de múmias desse felino); julga-se com probabilidade que foram domesticados por constituírem objeto de culto religioso. Outros animais entraram no convívio do homem, a fim de honrarem a Divindade pela sua beleza; assim a íbis, no Egito; o pavão, na Índia; o gamo, no Japão.
e) A indústria. Não menos profunda é a influência benéfica da Religião no desenvolvimento da indústria. A fabricação de laticínios, por exemplo, está em grande parte a serviço do culto no Oriente; nos templos do Tibete centenas de lamparinas ardem dia e noite, alimentadas por manteiga; os “lamas” têm o rosto, as pernas e as mãos untadas com manteiga. A fabricação do papel e do livro têm dependido muito das necessidades do culto e da piedade; o mesmo se dá com os têxteis e a metalurgia.
f) O comércio. Está claro que as aglomerações vultosas de fiéis motivadas pela religião acarretaram intensificação benéfica do comércio; as primeiras moedas eram objetos estimados por seu caráter ritual ou seu valor religioso. A contabilidade dos Bancos e escritórios tem suas origens nos templos da Mesopotâmia, onde os sacerdotes, movidos por respeito sagrado, faziam o inventário de tudo que dizia respeito ao culto e ao sustento do templo,
g) Os transportes, as vias e as pontes devem grande parte do seu incremento ao fervor religioso de peregrinos e missionários. Não raro a afluência a determinado santuário provocou a abertura de estradas, assim como a multiplicação e o aperfeiçoamento de veículos. – Em particular, as pontes têm sido obras de sacerdotes ou de pessoas dedicadas a Deus. Com efeito, os romanos pagãos, por exemplo, julgando que os rios tinham algo de sagrado, reservavam a construção de pontes a um grupo especial de sacerdotes. Entre os cristãos da Idade Média, era a caridade que levava os fiéis a formar confrarias construtoras de pontes: havia os “irmãos Pontífices”, aos quais se devem as pontes de Avinhão e do Espírito Santo, sobre o Ródano (França).
h) Por fim, note-se outrossim que no surto das artes está em geral a inspiração religiosa; as primeiras peças literárias das antigas e modernas civilizações são documentos religiosos; costumam estar redigidos em poesia, que é a forma literária mais correspondente ao entusiasmo sagrado (tenham-se em vista, por exemplo, as obras de Homero e dos “teólogos” gregos). A pintura e a escultura não são menos tributárias à Religião.
Em suma, registra-se o seguinte: sempre que nos é dado observar as origens ou as fases iniciais de determinada cultura, verificamos que as suas diversas manifestações estão todas indistintamente fundidas com a Religião; é no seio materno da Religião que elas nascem e por muito tempo são nutridas.
Donde se vê que considerar a Religião como algo de pré-lógico ou como produto da covardia do homem significa, de certo modo, lançar uma nota de desprezo sobre a própria cultura humana, que nasceu no seio da Religião.
Vêm a propósito aqui as observações de famoso geógrafo do século XX:
“A maioria dos homens atesta sobre a Terra a existência do sobrenatural; a espécie humana, em graus diversos, mas de maneira geral, é religiosa; esta, aliás, vem a ser uma de suas características; o ‘homo faber et sapiens’ é também primordialmente um homo religiosus. Por obra dele, a terra está impregnada de religiosidade. A pujante tarefa cultural dos homens não foi efetuada somente em vista da instalação da espécie humana sobre o globo, mas parte muitas vezes grandiosa desses esforços foi empreendida mais ou menos diretamente a fim de proclamar ou exaltar a existência de seres sobrenaturais ou sagrados…
A religião nos aparece como um dos grandes fatores que transformam a face da Terra e, em qualquer caso, como o motivo de atividades caracteristicamente humanas… À semelhança do homem, o animal (irracional) lutou contra os elementos da natureza; mas o que somente o homem fez, foi dar vulto à idéia da Divindade sobre a face do globo. A Geografia religiosa vem a ser a Geografia mais especificamente humana…” (P. Deffontaines, Géographie et Religions. Paris 1948, 8. 12).
2. Progresso material e decadência religiosa
Contrariamente às teorias do século XIX, verifica-se que os povos primitivos professam a crença num só Deus bom, Autor de tudo e todos, a quem os homens devem obediência e prestação de contas dos seus atos. Esta afirmação está hoje assentada sobre denso material colhido pelos exploradores. Foi com o progresso da civilização que o homem começou a deturpar o seu monoteísmo inicial, caindo nos tipos de religião grosseiros que certos autores julgavam ser anteriores à crença num só Deus.
Entende-se bem tal roteiro da história das religiões. À medida que se desenvolve a civilização, o homem entra em contato com a natureza e seus mistérios; percebe a sua dependência frente aos grandes fatores da prosperidade e da desgraça: o sol, a lua, a terra fecunda, a chuva, o trovão, etc. Daí surge-lhe a tentação de transferir para estas criaturas o conceito de Deus, o qual é então esfacelado.
Mais ainda: para explicar a diversificação da religião inicial, levar-se-á em conta o seguinte. Todo homem traz em si duas aspirações espontâneas: a de saber e a de poder ou dominar. Ora a religião primitiva era muito simples, ensinando ao homem apenas o essencial a respeito de Deus e da vida moral; em conseqüência, o desejo de saber ou de explicar os mistérios levou muitos dos antigos a tentar suprir, com o bom senso ou com a fantasia, as lacunas deixadas pela sua crença religiosa; assim tiveram origem os mitos, histórias fantasistas concernentes à Divindade e aos homens, nas quais o conceito de Deus é geralmente rebaixado. – Outros indivíduos, impelidos pela ambição ou pelo desejo inato de dominar, começaram a explorar a Religião (fator certamente poderoso) para obter prestígio junto aos seus semelhantes, apresentaram-se como detentores de segredos (fórmulas e artes) capazes de forçar a Divindade a intervir em favor dos homens. Tais são os magos, que, como se vê, também derrogam aos conceitos de Deus e Religião, pois pretendem colocar a Divindade a serviço do homem.
Recolhendo-se os dados propostos na presente explanação, pode-se reconstituir a evolução da cultura humana e dos fenômenos religiosos conforme o quadro seguinte, proposto pela Escola Etnológica de Viena (Schmidt, Gusinde, Schebesta, Köppers):
1) Cultura originária: começou há uns 600.000 anos, com o aparecimento dos primeiros homens, no período paleolítico antigo.
Os homens não sabem cultivar a terra industriosamente nem domesticar os animais; por isto vivem do que colhem dentre os produtos nativos do solo, ou do que conseguem caçar. Daí a designação de coletores e caçadores primitivos que lhes é dada. Os homens dedicam-se à caça (trabalho mais árduo), ao passo que as mulheres colecionam frutas, bulbos e raízes (tarefa mais suave).
• matrimônio é monogâmico, havendo primazia moral do varão e suficiente reconhecimento dos direitos da mulher. A união conjugal é estável; o divórcio, coisa rara, tida como exceção.
É reconhecida a propriedade particular. Não há aristocracia nem se pratica a escravidão.
A religião é monoteísta, cultuando-se um Deus que é Pai e Remunerador dos homens.
2) Cultura média, também dita primária: o segundo grau de cultura é o dos caçadores superiores, cultivadores e pastores, iniciado no período paleolítico recente há uns 100.000 anos atrás.
• homem conseguiu fazer progressos na indústria, fabricando instrumentos (ainda simples) que lhe permitem dirigir verdadeira caça aos animais, de modo sistemático. Do regime dos caçadores superiores se origina posteriormente o tipo de cultura pastoril (dos pastores); há, sem dúvida, uma distância entre caçar industriosamente para consumir incontinente, e criar, domesticar, o animal.
Os instrumentos permitem também cultivar o solo de maneira metódica e eficiente.
O progresso econômico assim obtido é acompanhado de decadência moral e religiosa.
No regime dos caçadores predomina a figura do varão, consciente de seu poder e sua importância. Daí nasce a forma de vida patriarcal, poligâmica, não mais monogâmica; constitui-se o direito da primogenitura. – Em religião, cultuam-se os astros, em particular o Sol, considerado como símbolo do varão e fonte de energias naturais, beleza e vida. A tendência do varão a dominar se exprime na magia, que surge e toma grande incremento, visto o contato freqüente dos caçadores com a natureza e suas forças ocultas. Admitem-se deuses secundários, que são os elementos da natureza personificados e os espíritos superiores ao homem.
No regime dos cultivadores predomina a figura feminina e, por conseguinte, o matriarcado. Em religião, cultuam-se a Terra-Mãe sempre fecunda, deusa inexaurível da vida, e a Lua, que é tida como símbolo da mulher. Os varões se organizam em sociedades secretas, que prestam culto especial aos mortos; donde o animismo, que é derrogação à religião do Ser Supremo.
3) Cultura mista; fundem-se num só gênero de vida o tipo do pastor e o do agricultor, dando origem ao campesinato. Este abre o período mesolítico, entre 5000 e 3000 a.C.
A vida de família se torna mais estável e definida; a distribuição eqüitativa do trabalho entre marido e mulher contribui para equilibrar as relações entre os dois sexos.
A consciência religiosa se vai obscurecendo cada vez mais: o culto dos astros e dos elementos da natureza, o animismo e a magia, desenvolvendo-se; chegam por vezes a submergir o culto do Ser Supremo.
4) Alta cultura: formaram-se por fim as civilizações estritamente documentadas por monumentos históricos, os quais apareceram em toda a sua eflorescência por volta do ano 3000. Constituíram-se os grandes impérios do Egito, da Assíria, da Babilônia, etc., em que as classes sociais se foram diversificando, o despotismo se introduziu junto com o culto ou a divinização do monarca. Numerosos deuses e semideuses foram sendo cultuados, o que acarretou a máxima exuberância do politeísmo e grande decadência da moral; o imoral e o anti-social foram como que legalizados ou divinizados.
Assim passou o homem do monoteísmo primitivo ao politeísmo. No século XIX a.C. o Patriarca Abraão, chamado por Deus, encabeçou em Canaã o ressurgimento do monoteísmo. Há quem julgue que na época de Abraão havia resquícios do monoteísmo, pois aparece então Melquisedeque como Rei e Sacerdote do Deus Altíssimo; cf. Gn 14, 18.