Sacerdócio: sobre a ordenção de mulheres

(Revista Pergunte e Responderemos PR 388/1994)

Em síntese: Em vista dos recentes debates sobre a ordenação sacerdo­tal de mulheres, o S. Padre João Paulo I1 houve por bem escrever uma Car­ta aos Bispos do mundo inteiro assinada aos 22/05/94, em que declara, de modo definitivo e peremptório, a posição da Igreja: a esta não foi concedi­da a faculdade de ordenar mulheres. João Paulo II, assim falando, não faz senão retomar a posição assumida por Paulo VI e por anteriores documen­tos da Igreja. Os fundamentos da Declaração são: 1) o exemplo de Cristo, que só chamou homens para constituir o colégio apostólico; 2) a praxe da Tradição de quase vinte séculos; 3) os pronunciamentos do magistério da Igreja. A posição do Catolicismo, diversa da do Anglicanismo contempo­râneo, não implica menosprezo da dignidade da mulher, é de lembrar que Maria SS., mais digna do que os Apóstolos, não foi chamada para fazer parte do colégio apostólico; além do quê, a Igreja reconhece o papel im­portante e insubstituível da mulher na história da humanidade e do Cris­tianismo. Mais: a Igreja afirma que o valor de uma pessoa não depende das funções que exerce, mas das suas prendas morais e da sua santidade.

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Aos 22 de maio pp., João Paulo II assinou uma Carta dirigida aos Bis­pos do mundo inteiro, em que aborda a questão da ordenação sacerdotal de mulheres na Igreja Católica. Passamos à consideração do problema em foco e do texto de Sua Santidade, que vem a ser um dos mais importantes do pontificado de João Paulo II.

1. O PROBLEMA

É notório que o tema da ordenação sacerdotal de mulheres tem sido discutido nos últimos anos por mais de uma razão:

1) a promoção e a projeção da mulher em diversos setores da vida pública levam a perguntar por que não também no exercício do ministério sacerdotal;

2) a escassez de clero em várias partes do mundo sugere a vários cris­tãos a tendência a chamar mulheres para integrarem o clero da Igreja Católica;

3) o procedimento da Comunhão Anglicana, que em 1994 resolveu solenemente ordenar mulheres, tem influído fortemente na abordagem do tema entre católicos, embora as ordenações anglicanas não sejam reconhe­cidas como válidas pela Igreja Católica.[1]

4) um certo feminismo passional tem contribuído para acirrar os de­bates em torno da questão.

Têm-se multiplicado colóquios e estudos sobre o assunto fora e den­tro da Igreja Católica. A Comunhão Anglicana vem-se ressentindo viva­mente da decisão de seus hierarcas, sancionada pela rainha Elizabeth II em 1994; muitos clérigos (Bispos, ministros ou pastores) e leigos têm abandonado o Anglicanismo, pedindo admissão na Igreja Católica, pois julgam que a medida fere os princípios básicos do Cristianismo; nem Jesus Cristo nem os Apóstolos nem a Tradição posterior conferiram as ordens sacras às mulheres; fazer isto no século XX parece a muitos uma derroga­ção às disposições do Senhor e uma adaptação inoportuna ao pensamento e aos procedimentos da modernidade.

Visto que dentro da própria Igreja Católica as opiniões têm estado divididas, havendo mesmo certa pressão sobre a Santa Sé para ceder à onda inovadora, o S. Padre resolveu escrever uma Carta breve, mas muito clara e enérgica, pela qual intenciona pôr termo final às hesitações e dis­cussões, como se verá a seguir.

2. A CARTA DE JOÃO PAULO II

2.1 Nítida Posição

Após a exposição de motivos, os incisos finais (§ 4) da Carta expri­mem o que há de essencial no documento:

“4. Embora a doutrina sobre a ordenação sacerdotal, que se deve re­servar somente aos homens, se mantenha na Tradição constante e univer­sal da Igreja e seja firmemente ensinada pelo Magistério nos documentos mais recentes, todavia atualmente, em diversos lados, continua-se a consi­derá-la como discutível, ou então atribui-se um valor meramente disci­plinar à decisão, da Igreja, de não admitir as mulheres à ordenação sacer­dotal.

Portanto, para que seja excluída qualquer dúvida em assunto da má­xima importância, que pertence à própria constituição divina da Igreja, em virtude do meu ministério de confirmar os irmãos (cf. Lc 22,32), declaro que a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a or­denação sacerdotal às mulheres, e que esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da- Igreja.”

Neste parágrafo chamam-nos a atenção os seguintes tópicos:

1) O S. Padre não fala apenas como um Bispo ou um teólogo, nem fa­la como Papa que sugere, recomenda ou preceitua, mas pronuncia-se “em virtude de seu ministério de confirmar os irmãos na fé (Lc 22,32)”… Isto quer dizer que João Paulo II afirma tratar-se de uma questão ligada à fé católica e, de modo particular, ao conceito de Igreja que decorre do Novo Testamento e da Tradição; a temática “pertence (diz respeito) à própria constituição divina da Igreja” e a afeta; isto é, mexe em algo que poderia mudar a noção e a estrutura da Igreja tal como foram a nós lega­das por Cristo Jesus. É, pois, o conceito dogmático da Igreja que está em jogo.

2) Dada a gravidade do assunto, o S. Padre faz uso do máximo grau de autoridade que lhe compete. Com efeito; segundo as palavras de Jesus, cabe-lhe confirmar os irmãos na fé e discernir peremptoriamente verdade e erro em matéria de fé, desde que corra perigo o patrimônio das verda­des entregues por Cristo à sua Igreja (cf. Lc 22, 31s).

3) Assim fundamentado, o S. Padre declara que foge às faculdades concedidas por Cristo à sua Igreja a de ordenar mulheres. E acrescenta que “esta sentença deve ser considerada definitiva por todos os fiéis da Igre­ja”. – Isto quer dizer que não pode haver hesitação legítima a respeito, nem se pode mais dizer que o assunto é discutível ou que um dia a Igreja poderá ordenar mulheres. O S. Padre fecha a questão com firmeza e nitidez.

A atitude de João Paulo II, corajosa como é, inspira-se no zelo de conservar íntegro o depósito da fé, entregue por Cristo à Igreja e, parti­cularmente, ao ministério de Pedro, o Apóstolo-primaz e Pastor Supremo do rebanho de (cf. Jo 21,15-17). Com outras palavras: é a inten­ção de ser fiel a Cristo que norteia o S. Padre, ainda que isto desagrade aos homens. Em nossos dias turbulentos mais do que nunca, é necessário que haja declarações nítidas que orientem os fiéis e os clérigos, pois estes são sacudidos por vendavais de idéias que desnorteiam muitas cabeças. Se o assunto fosse de ordem meramente humana ou política, não teria cabi­mento uma intervenção peremptória da autoridade respectiva, mas, visto tratar-se de questão de fé, impõe-se uma definição autoritativa, pois a fé não depende de pareceres, opiniões e argumentos de bom senso ou de fi­losofia, mas é a adesão à Palavra de Deus, que se faz ouvir por seus ór­gãos autênticos, assistidos por Cristo e pelo Espírito Santo. Eis por que os fiéis católicos – homens e mulheres – hão de acatar respeitosamen­te a Palavra do Papa, que não falou na base de pesquisas pessoais apenas, mas se pronunciou no exercício do seu ministério carismático, a ele con­fiado por Jesus Cristo.

Vejamos as razões aduzidas por João Paulo II para firmar a posição as­sumida.

2.2. As razões aduzidas

Logo no § 1 da Carta, João Paulo II transcreve palavras do seu ante­cessor Paulo VI dirigidas ao arcebispo anglicano de Cantuária, Dr. F.D. Coggan, em 30/11/1975:

“A Igreja Católica defende que não é admissível ordenar mulheres pa­ra o sacerdócio, por razões verdadeiramente fundamentais. Estas razões compreendem: o exemplo – registrado na Sagrada Escritura – de Cristo, que escolheu os seus Apóstolos só de entre os homens; a prática constante da Igreja, que imitou Cristo ao escolher só homens; e o seu magistério vi­vo, o qual coerentemente estabeleceu que a exclusão, das mulheres, do sacerdócio está em harmonia com o plano de Deus para a sua Igreja”.[2]

Como se vê, o S. Padre se baseia 1) no exemplo de Cristo, que só es­colheu Apóstolos masculinos, 2) na prática constante da Igreja, 3) no ma­gistério da mesma Igreja.

Além da Carta de Paulo VI, a Congregação para a Doutrina da Fé, so­licitada pelo mesmo Pontífice, escreveu a Declaração Inter Insigniores, datada de 15/10/1976, retomando a mesma posição na base dos mesmos argumentos, acrescidos de considerações de ordem antropológica. Cf. P R 209/1977, pp. 202-213.

O S. Padre João Paulo II, repetindo o que já fora dito na Igreja, faz questão de observar que a decisão tomada não implica, em absoluto, me­nosprezo da dignidade da mulher; Jesus Cristo mesmo era livre frente aos preconceitos da sociedade de seu tempo, tomando atitudes que dignifica­vam a mulher, à revelia dos costumes da época; apesar de tudo, não cha­mou Maria SS. para compor o colégio dos Apóstolos. – Com efeito, o Se­nhor fazia-se acompanhar em suas viagens não só pelos doze, mas também por um grupo de mulheres (cf. Lc 8, 2s). Quis que as mulheres fossem, pa­ra os Apóstolos, as mensageiras da sua ressurreição (cf. Mt 28,7-10; Lc 24, 9s; Jo 20,11-18), embora o Direito judaico pouco valor reconhecesse a pa­lavra das mulheres. Perdoando à mulher adúltera, Jesus quis mostrar que não se deve ser mais severo para com a mulher do que para com o ho­mem (cf. Jo 8,11).

Estes e outros dados evangélicos não são, por si mesmos, argumentos decisivos. Hão de ser considerados à luz de toda a Tradição da Igreja, que viu na atitude de Jesus uma orientação decisiva para determinar o sujeito do sacramento da Ordem. Essa Tradição foi a mesma tanto no Ocidente como no Oriente; tal unanimidade é digna de nota especial, visto que em outros pontos não se verificou; até hoje, aliás, tanto os cristãos orientais como os ocidentais recusam o sacerdócio às mulheres, tencionando assim ser fiéis ao modelo de ministério intencionado pelo Senhor e fielmente mantido pelos Apóstolos. Se a Igreja Católica em nossos dias rompesse essa Tradição, abriria novo fosso entre ocidentais e orientais.

De resto, é de se notar que, embora Maria SS. tenha sido intimamen­te associada ao mistério de Cristo, desempenhando função sem par, não foi investida do ministério sacerdotal. Este fato foi tido como altamente significativo na teologia católica. Assim, por exemplo, escrevia o Papa 1nocêncio III (+1216):

“Ainda que a bem-aventurada Virgem Maria ultrapassasse em dignida­de a excelência todos os Apóstolos, não foi a ela, mas a estes que o Senhor confiou as chaves do Reino dos Céus”. (Epístola de 11/XII/1210 aos bis­pos de Palência e Burgos).

Aliás, desde o século II os escritores da Igreja lembram o fato de que Maria, tão exaltada como foi pelo Senhor Deus, não recebeu a ordenação sacerdotal. O lugar de Maria, no plano de Deus, é único; Ela não deve ser comparada aos Apóstolos, pois está acima deles. Isto bem mostra que na Igreja há funções diferentes: se, de um lado, não há acepção de pessoas diante de Deus, de outro lado existe complementação de tarefas; o minis­tério sacerdotal não é a única forma de dignidade, mas é uma maneira de servir entre outras. Maria SS. não precisa do “acréscimo de dignidade” que certos autores de espiritualidade lhe quiseram atribuir, chamando-a “Vir­gem Sacerdotisa”.

A propósito ainda, o S. Padre João Paulo II, no § 3 do documento que analisamos, refere-se à Carta Apostólica Mulieris Dignitatem, de sua autoria, Carta na qual exalta o papel insubstituível e a dignidade própria da mulher na história da humanidade e da Igreja:

“A presença e o papel da mulher na vida e na missão da Igreja, mes­mo não estando ligados ao sacerdócio ministerial, permanecem, no entan­to, absolutamente necessários e insubstituíveis. Como foi sublinhado pela mesma Declaração Inter Insigniores, a Santa Madre Igreja auspicia que as mulheres cristãs tomem plena consciência da grandeza da sua missão: o seu papel será de capital importância nos dias de hoje, tanto para o renova­mento e a humanização da sociedade, quanto para a redescoberta, entre os fiéis, da verdadeira face da Igreja.[3] O Novo Testamento e toda a história da Igreja mostram amplamente a presença, na Igreja, de mulheres, verda­deiras discípulas e testemunhas de Cristo na família e na profissão civil, para além da total consagração ao serviço de Deus e do Evangelho. A Igre­ja, defendendo a dignidade da mulher e a sua vocação, expressou honra e gratidão por aquelas que – fiéis ao Evangelho – em todo o tempo partici­param na missão apostólica de todo o Povo de Deus. Trata-se de santas mártires, de virgens, de mães de família, que corajosamente deram teste­munho da sua fé e, educando os próprios filhos no espírito do Evangelho, transmitiram a mesma fé e a tradição da Igreja.[4]

Por outro lado, é à santidade dos fiéis que está totalmente ordenada a estrutura hierárquica da Igreja. Por isso, lembra a Declaração Inter Insig­niores,’o único carisma superior, a que se pode e deve aspirar, é a caridade (cf. 1Cor 12-13). Os maiores no Reino dos céus não são os ministros, mas os santos’ “.[5]

Estas ponderações evidenciam bem a posição lúcida que o S. Padre assume diante da temática discutida. O respeito às disposições do Senhor Deus ditam a atitude da Igreja; homem e mulher, embora sejam iguais em dignidade, são diferentes em suas peculiaridades masculinas e femininas; estas hão de ser reconhecidas, para que entre elas haja complementação harmoniosa e construtiva, em vez de confusão desordenada.

A Igreja é sábia e “perita em humanidade” (Paulo VI), principalmen­te quando se trata de ensinar as verdades da fé a todos os homens, assistida pelo Espírito de Cristo.

A propósito ver PR 209/1977, pp. 202-213 (síntese da Declaração Inter Insigniores, da Congregação para a Doutrina da Fé, datada de 15/10/ 1976).

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NOTAS:

[1] Não são reconhecidas como válidas, porque a hierarquia católica tradi­cional foi quase totalmente extinta (por morte ou por encarceramento) sob a rainha Elizabeth l (1558-1603). Recomeçou na pessoa de Mateus Parker, antigo capelão da rainha, que foi ordenado bispo em 1559 por William Barlon, bispo deposto pela rainha, mas autêntico sucessor dos Apóstolos. Todavia o ritual utilizado por Barlon excluía qualquer alusão à Missa como perpetuação do sacrifício de Cristo. Em conseqüência, as or­denações anglicanas, após prolongada análise dos fatos e textos, foram por Leão XIII declaradas inválidas em 1896 mediante a Bula Apostolicae Curae.

[2] Cf. Paulo VI, Rescrito à carta de Sua Graça o Rev.mo Dr. F.D. Coggan, Arcebispo de Cantuária, sobre o ministério sacerdotal das mulheres, 30 de Novembro de 1975: AAS 68 (1976), 599-600: “Your Grace is of cour­se well aware of the Catholic Church’s position on this question. She holds that it is not admissible to ordain women to the priesthood, for very fun­damental reasons. These reasons include: the example recorded in the Sa­cred Scriptures of Christ choosing his Apostles only from among men; the constant practice of the Church, which has imitated Christ in choosing only men; and her living teaching authority which has consistently held that the exclusion of women from the priesthood is in accordance with the God’s plan for his Church” (p. 599).

[3] Congregação para a Doutrina da Fé, Declaração Inter Insigniores VI: ASS (1977), 115-116.

[4] João Paulo //, Carta Apostólica Mulieris dignitatem, 27: AAS 80 (1988), 1719.

[5] Congregação para a Doutrina da Fé, Declaração In Ter Insigniores, VI: AAS (1977), 115.