Vida Humana: quando começa a vida humana?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 402/1995)

Em síntese: A existência do ser humano começa não no décimo quinto dia após a conceição nem a partir da nidação apenas, mas desde que haja a fecundação do óvulo pelo espermatozóide. Esta afirmação decorre da observação rigorosamente científica do processo genético. Entre outras características deste processo apontam-se as três seguin­tes, cuja importância é decisiva: 1) coordenação: o novo ser implica e exige estrita unidade; cada célula que se multiplica, se integra num con­junto, que é uno e harmonioso; 2) continuidade: o processo de desen­volvimento do zigoto ou do produto dos dois gametas ocorre sem interrupção; há um mesmo e idêntico ser humano que se vai formando se­gundo um plano bem definido e unitário; 3) gradual idade: o desenvolvi­mento do embrião passa por sucessivas etapas, desde as menos perfei­tas até as mais perfeitas, segundo uma orientação constante em de­manda da sua forma final e definitiva. Em conseqüência, qualquer elimi­nação do zigoto ou do embrião vem a ser homicídio, pois ao novo ser, desde a fecundação no seio materno, toca a dignidade de um sujeito humano.

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O Papa João Paulo II publicou a encíclica Evangelium Vitae (O Evangelho da Vida), destinando-a não somente a católicos, mas tam­bém a todos os homens e mulheres (cf. n° 101). Entre outros tópicos, condena o aborto como sendo “o morticínio deliberado e direto… de um ser humano na fase inicial da sua existência, compreendida entre a con­ceição e o nascimento” (n° 58). Ora na imprensa internacional leram-se comentários que acusam o Papa de “fundamentalismo cego e desinformado”. Eis por que a revista Vita Pastorale entrevistou o jesu­íta Pe. Angelo Serra, renomado biólogo, geneticista e professor, a res­peito do momento exato em que começa a vida humana; cf. n° de julho de 1995, pp.36-39.

A seguir, publicamos em tradução brasileira os principais trechos desse colóquio, notável por sua seriedade científica e filosófica.

A ENTREVISTA

Vita Pastorale: “Que é que se entende por conceição? Quando tem início a existência de um ser humano?”

Angelo Serra: “Conceição é um vocábulo que, na linguagem cor­rente e no entendimento dos homens, significa um momento bem preci­so na vida de um novo sujeito humano, a saber: o momento em que ele inicia a sua existência. Tal momento foi estabelecido definitivamente quan­do R. G. Edwards e os seus colaboradores começaram a produzir embri­ões humanos em proveta no Laboratório de Fisiologia da Reprodução em Cambridge…

Desde então, 1975, o momento da conceição passou para as mãos e o poder do homem.

“Cremos que a fecundação humana em proveta veio para ficar, apesar dos debates éticos, morais e jurídicos suscita­dos”, afirmou com ufania e auto-suficiência R. G. Edwards, o pioneiro de tal pesquisa. A partir daquela data, têm-se registrado densa nuvem e confusão a respeito do momento em que se dá a conceição do ser hu­mano; alguns puseram-se a professar com ênfase particular a posição condenada pela encíclica: ‘Alguns tentam justificar o aborto sustentando que o fruto da conceição, ao menos durante certo número de dias, não pode ser considerado como vida humana pessoal’ (n° 60)”.

V P.: “Tal posição tornaria legítima toda intervenção no embrião humano… visando a impedir o nascimento de indivíduos afetados por sintomas patológicos; poderiam ser eliminados ao menos nos primeiros dias após a conceição .

A.S.: “Sem dúvida, estas conseqüências decorreriam da menciona­da teoria. Todavia tal posição não resiste a uma análise séria realizada sem preconceitos. Antes do mais…, a análise em nível biológico… Os grandes progressos da embriologia e da genética ofereceram, e estão continuamente oferecendo, novos dados, que tornam sempre mais clara e convincente a conclusão seguinte: cada um de nós começa a existir como sujeito humano no momento em que se constitui o zigoto, isto é, a célula que resulta da assim dita ‘fusão’ dos dois gametas – o materno e o paterno. Os estudos efetuados sobre esta célula nos níveis genético, citogenético, bioquímico e molecular indicam que o zigoto é uma nova célula humana, nova célula dotada de nova e exclusiva estrutura de in­formação – dita ‘genoma’ -, que lhe confere identidade específica e indi­vidual humana e uma clara orientação para o desenvolvimento; o genoma começa a operar como unidade, isto é, como um ser ontologicamente uno.

Além do mais, todas as pesquisas feitas a respeito do que se segue à formação do zigoto e a reflexão rigorosamente científica sobre os fe­nômenos observados durante os nove meses consecutivos levam a afir­mar que o zigoto ê o ponto, no tempo e no espaço, em que tem início O ciclo vital de um novo indivíduo humano bem definido. Com efeito; as pesquisas evidenciam que, se as condições do ambiente são adequa­das – ou seja, são tais que satisfaçam às necessidades que todo ser vivo experimenta para exercer as suas funções -, e a nova célula huma­na dita zigoto começa e continua a se multiplicar, e as novas células assim oriundas logo se vão diversificando de acordo com as linhas estabelecidas pelo programa inscrito no seu genoma.

É a partir de uma dessas linhas, dita linha embrioblástica, que se forma o chamado disco embrional, que é bem visível no décimo quarto dia da fecundação aproximadamente; representa uma etapa fundamen­tal no decurso do desenvolvimento; forma-se também a estrutura na qual prosseguirá o processo morfogenético. Este curso cessaria imediata­mente e por completo se o disco embrional fosse separado do que lhe está anexo, ou seja, do amnios e do chorion, derivados da segunda linha, dita trofoblástica; esta conexão demonstra indiscutivelmente a estrita unidade, dentro da totalidade, de duas funções bem distintas”.

V P.: “Em que consiste o processo morfogenético?”

A. S.: “Se o processo diferenciado continua, há um breve período no qual se estabelece o plano principal da forma que se deverá cons­truir; logo depois tem início a estruturação dos órgãos. Recordemos que, na quinta semana da gestação, aproximadamente, quando o embrião tem comprimento inferior a 1 cm, já estão presentes as primeiras estrutu­ras do cérebro, o esboço bem definido do coração, o do aparelho respi­ratório e o do gastroentérico, assim como o do genito-urinário, onde tem início a diferenciação das gônadas. Na sexta semana são bem visíveis os membros e já está adiantada a formação do sistema nervoso central. Na sétima semana, a forma do corpo está completa e inconfundível. Na oitava semana, o organismo está totalmente definido nas suas estrutu­ras fundamentais.

Tudo isto acontece com uma ordem no espaço e uma regularidade no tempo comprovadas por ulteriores pesquisas. Atenta e minuciosa ob­servação e experiências precisas no campo da bioquímica e da genética mostram que o novo genoma controla a ordem e a regularidade do pro­cesso de desenvolvimento. A atividade coordenada de milhares de genes – isto é, de porções do ADN de que se constitui o genoma – é que asse­gura a harmonia e a unidade na totalidade do organismo que está cres­cendo; esta atividade de milhares de genes também sustenta e mantém a unidade morfológica e principalmente a unidade funcional do embrião em dese

V. P.: “Que é que nos leva a afirmar que o zigoto é o ponto, no tempo e no espaço, no qual tem início o ciclo vital de um novo indivíduo humano bem definido?”

A. S.: “É a reflexão fundada sobre uma lógica indutiva própria das ciências empíricas. Com outras palavras: é a reflexão sobre os dados atrás apontados concernentes ao processo mediante o qual toma forma um novo ser humano. Essa reflexão verifica três características de gran­de importância para definir o estado ontológico do embrião: coordena­ção, continuidade e gradualidade.

A primeira característica é a coordenação. Esta é evidente a partir de quanto foi dito atrás; ela implica e exige uma rigorosa unidade do ser que está em desenvolvimento. Por conseguinte, o embrião humano, como qualquer outro embrião, mesmo nas suas fases mais remotas, não é um simples agregado de células ontologicamente distintas, como alguns quiseram sustentar; é, sim, um indivíduo no qual cada célula que se vai multiplicando, está estritamente integrada (não menos, mas, ao contrá­rio, mais integrada do que num adulto) em um processo mediante o qual esse indivíduo, através de etapas diferenciais e morfogenéticas, traduz autonomamente o seu próprio ‘espaço genético’ no seu próprio ‘espaço organísmico’.

A segunda característica é a continuidade. O ciclo vital de um novo ser humano, iniciado pela fusão dos dois gametas, e considerado em seu perfil dinâmico, procede sem interrupções se há interrupção ­coisa que pode acontecer imediatamente após a fusão dos gametas ­há doenças ou morte.

Esta continuidade implica e estabelece a unicidade do novo ser posto em desenvolvimento; é ininterruptamente o mesmo e idêntico ser que se vai formando segundo um plano bem definido, ainda que passe por fa­ses qualitativamente sempre mais complexas.

A terceira característica é a gradualidade. É esta lei finalista intrín­seca da gradual construção da forma final que mantém o desenvolvi­mento permanentemente orientado na direção dessa forma final, embo­ra deva atravessar uma série mais ou menos longa de formas mais sim­ples. É por causa desta lei ontogenética que cada embrião – e, por con­seguinte, também o embrião humano – mantém constantemente a sua própria identidade, individualidade e unicidade, permanecendo, sem in­terrupção, o mesmo idêntico indivíduo durante todo o processo que tem início com a fusão dos gametas…

É esta reflexão indutiva sobre os dados empíricos que leva à con­clusão de que, com a fusão dos dois gametas, um novo indivíduo inicia a sua existência ou o seu ciclo vital, durante o qual ele realizará autono­mamente todas as potencialidades de que é dotado, embora isto acon­teça somente dentro dos limites a que se reduz todo ser vivo… Por con­seguinte, o embrião, desde a fusão dos gametas, não é um mero poten­cial, mas é sujeito humano bem real”.

V P : “Se a ciência pode afirmar com precisão que já no zigoto há um sujeito humano que inicia o seu ciclo vital, que dignidade deve ser atribuída a essa célula e, por conseguinte, ao embrião nos seus primei­ros tempos de desenvolvimento?”

A. S.: “A pergunta já era considerada outrora por teólogos e filóso­fos, como S. Tomás de Aquino, quando ainda nada se sabia sobre os processos reprodutivos e o desenvolvimento do embrião. Ela continuou presente em diversas escolas teológicas e volta a ser abordada quando se consideram os problemas éticos suscitados pelas novas experimen­tações.

Segundo alguns contemporâneos, é impossível que a um em­brião se possa atribuir a dignidade de sujeito humano, visto que nele não parece estar presente aquele princípio imanente ou alma que cons­titui a pessoa humana.

A mesma pergunta referente à dignidade do embrião humano se coloca a cientistas e pesquisadores quando o embrião se torna material de laboratório, à semelhança de embriões de animais. Há quem diga que o embrião até o décimo quinto dia após a fecundação ou, ao menos, até a nidação não pode ser considerado… um indivíduo humano; por isto foi forjado o termo pré-embrião (A. McLaren) para designar aquele conjunto de células individuais distintas que ‘não é ainda um vivente definido multicelular heterogêneo, membro de uma determinada espécie de mamífero (humano ou não)’ (N. Ford)…

A resposta à questão, porém, só pode provir de uma reflexão inte­grada e completa entre dois campos do saber: as ciências experimentais e as ciências especulativas. A análise científica e a análise filosófica se completam e evidenciam a inconsistência de preconceitos e sofismas. Aparece então clara a resposta: o zigoto e o embrião humano incipiente são um sujeito humano, e, como tais, têm todo o valor e a dignidade do sujeito humano”.

São estas considerações do estudioso que observa, como cientis­ta, e reflete, como filósofo, sobre os dados experimentais que permitem dizer: o ser humano começa a sua existência no momento da fecunda­ção do óvulo pelo espermatozóide, de modo que qualquer intervenção abortiva vem a ser um homicídio.

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