Sentido da vida: em busca do sentido. Um psicólogo no campo de concentração

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 401/1995)

por Viktor E. Frankl

Em síntese: O livro de Viktor E. Frankl relata episódios da vida em campos de concentração, nos quais o autor esteve internado na quali­dade de judeu. O prisioneiro era mais maltratado do que pode ser um animal irracional – o que tendia a despersonalizar o ser humano, susci­tando nele apatia e irritabilidade em relação a tudo e a todos. A leitura de tais episódios é de grande proveito como informativo da realidade do século XX. A experiência serviu a Viktor Frankl para consolidar a sua Logoterapia: esta afirma que a necessidade mais premente do ser hu­mano é a de descobrir o sentido (logos) da vida ou o por que e o para quê viver. No campo de concentração aqueles que tinham um lastro de interioridade ou uma cosmovisão que lhes indicasse por que viver e so­frer, aturaram heroicamente a tormenta e conseguiram escapar da mor­te e da degradação psíquica; tal foi o caso de Viktor Frankl mesmo e de outros companheiros, que o autor deixa no anonimato (entre eles

deve­ria estar o Pe. Maximiliano Kolbe). 0 presente artigo reproduz segmen­tos do livro que contribuem para pôr em relevo os traços típicos da Logoterapia.

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Viktor E. Frankl é psiquiatra judeu de Viena, que fundou, após Freud e Adler, uma escola de psicoterapia chamada “Logoterapia”. Julga que o motivo principal pelo qual alguém vive, é o sentido (logos) da vida; é saber que a vida tem significado ou tem uma razão de ser, mesmo quan­do sofredora. Como psiquiatra, Frankl não aprofunda as modalidades do sentido; cada indivíduo deve propor para si as razões que julgar adequadas; por certo, a motivação religiosa, derivada da fé, é de todas a mais forte e decisiva.

Viktor Frankl foi elaborando suas idéias em campos de concentração, nos quais viveu durante a segunda guerra mundial (1939-45). Em cada grupo de 28 prisioneiros, 27 sucumbiam aos maus tratos e morriam; Viktor Frankl, porém, conseguiu sobreviver e saiu de Auschwitz com a mente lúcida, capaz de prosseguir sua tarefa de psiquiatra e escrever livros a respeito de sua experiência e suas diretrizes logoterapêuticas.

Redigiu cerca de trinta livros, já traduzidos para mais de vinte línguas, incluindo o chinês e o japonês.

A obra Trotzdem Ja zum Leben sagen (= apesar de tudo, dizer Sim à Vida.) já conheceu mais de setenta e três edições em inglês e foi publicada em dezenove línguas. Em inglês já se venderam quase dois milhões de exemplares. Apresentaremos, a seguir, a primeira Parte desse livro traduzido para o português com o título “Em Busca de Sentido. Um Psicólogo no Campo de Concentração”[1] ; são páginas que referem a vida em campo de concentração descrita do ponto de vista do psicólogo; as narrações são extremamente vivazes, pondo o leitor diante de quadros de crueldade e também de coragem quase incríveis. A leitura desses textos fala profundamente ao estudioso e merece ser recomendada a quem queira conhecer a realidade da história dos homens do século XX.

O autor distingue três fases em seu relato :1) a recepção no campo de concentração; 2) a vida no campo de concentração; 3) após a libertação.

1. PRIMEIRA FASE:

RECEPÇÃO NO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO

A primeira fase se caracterizava pelo “choque de recepção”. Os prisioneiros eram transportados durante dias e noites em vagões ferroviários; que levavam um total de 1500 pessoas aproximadamente, acumuladas umas sobre as outras, a ponto de não se poderem sentar todas.

Quando o comboio de Viktor Frankl chegou em Auschwitz, o seu vagão foi invadido por um bando de prisioneiros trajando a roupa listrada típica dos reclusos, cabeça raspada, mas muito bem alimentados; falavam todas as línguas européias e irradiavam jovialidade grotesca.

Uma vez desembarcados, os prisioneiros eram selecionados: os que tivessem aparência sadia eram poupados, ao passo que os mais fracos ou doentes eram logo enviados para um forno crematório. Eis o que escreve a respeito V. Frankl:

“Mandaram-nos deixar toda a bagagem no vagão, desembarcar e formar uma fila de homens e outra de mulheres para desfilar perante um oficial superior da SS[2]… Ei-lo agora à minha frente: alto, esbelto, elegante, num uniforme perfeito e reluzente… Apóia o cotovelo direito na mão esquerda, e com a mão direita erguida executa um leve aceno com o indicador, ora para a direita, ora para a esquerda,… com freqüência muito maior para a direita” (pp.22s).

O sinal para a direita indicava sobrevivência no trabalho árduo do campo de concentração… Para a esquerda,… Forno crematório.

A seguir, os prisioneiros eram levados para um galpão, onde os oficiais da SS mandavam que jogassem todos os seus pertences (relógios, alimentos enlatados, anéis…) dentro de cobertores. Daí passavam para a ante-sala do banho de “desinfecção”: eram obrigados a se despir em dois minutos; em outra sala eram-lhes raspados todos os pelos da cabeça aos pés e, por último, empurrados para dentro do recinto dos chuveiros, donde saia a água “desinfetante”. Cada prisioneiro verificava assim que só lhe restava “a existência nua e crua”.

“Os sapatos, com os quais em princípio podíamos ficar, foram um capítulo à parte. Calçados de relativa qualidade acabavam sendo tirados da gente, recebendo-se em troca um par que não servia” (p.25).

“Quem entrasse em suspeita de ter cortado o cano da sua bota, era obrigado a entrar num pequeno quarto contíguo. Pouco depois se ouviam os estalos do açoite e os berros dos torturados” (pp.25).

Começava então a vida diária, que V. Frankl descreve em quadros emocionantes, dos quais alguns vão apresentados a seguir.

2. SEGUNDA FASE:

A VIDA NO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO

1. Uma das primeiras conseqüências da internação era a apatia, que ia tomando conta do prisioneiro:

“Como a maioria dos seus companheiros, o prisioneiro está ‘vestido’ em farrapos tais que a seu lado um espantalho teria ares de elegância. Entre as barracas, no campo de concentração, há somente um lodaçal. E quanto mais se trabalha em sua eliminação, tanto mais se entra em contato com a lama. É justamente o recém-internado que costuma ser destacado para grupos de trabalho nos quais terá que se ocupar com a limpeza de latrinas, eliminação de excrementos, etc. Quando estes são transportados sobre terreno acidentado, geralmente não escapamos de levar uns respingos do líquido abjeto; qualquer gesto que revele uma tentativa de limpar o rosto, com certeza provocará uma bordoada do capo, que se irrita com a excessiva sensibilidade do trabalhador. A mortificação dos sentimentos normais continua avançando. No começo o prisioneiro desvia o olhar ao ser convocado, por exemplo, para assistir aos exercícios impostos a algum grupo como punição. Por enquanto ele não con­segue suportar a cena de pessoas sendo sadicamente torturadas, vendo com­panheiros subindo e baixando horas a fio na sujeira, ao ritmo ditado a porrete. Passados alguns dias ou semanas, contudo, ele já reage de forma diferente. De manhã cedo, ainda no escuro, está com o grupo de trabalho, pronto para sair marchando numa das ruas do campo, frente ao portão de entrada; ouve gritos, olha e observa como um companheiro seu é esmurrado até cair no chão, e isto várias vezes. É levantado e sempre de novo derrubado a socos. O recluso observador, em pleno segundo estágio de suas reações psíquicas, não mais tenta ignorar a cena. Indiferente e já insensível, pode ficar observan­do sem se perturbar” (pp.29s).

2. É muito significativo o trecho relativo à fome:

“Face ao estado de extrema subnutrição em que se encontravam os prisioneiros, é compreensível que, entre os instintos primitivos que representam a ‘regressão’ da vida psicológica no campo, o instinto de alimentação ocupasse o lugar principal. Observemos os prisioneiros de um modo geral quando estão juntos no lugar de trabalho, num momento em que não estão sendo tão rigorosamente vigiados. A primeira coisa de que começam a falar é comida. Imediatamente alguém começará por perguntar ao colega que trabalha a seu lado no valo qual o seu prato favorito. Começam a trocar receitas e compor menus para o dia em que pretendem convidar-se mutuamente para um reencontro, futuramente, depois de libertos e de volta em casa. Este assunto os fascina tanto que não conseguem largá-lo antes do convencionado sinal de aviso, geralmente dissimulado pela menção de um número, por exemplo, alertando os que estão no valo, da chegada do guarda…

Nos últimos tempos, a alimentação diária consistia numa sopa bastante aguada, distribuída uma vez durante o dia, e na minúscula ração de pão já mencionada. Além disso, havia o assim chamado extra, que podiam ser vinte gramas de margarina, ou uma rodela de lingüiça de má qualidade, ou um pedacinho de queijo, ou mel artificial, ou uma colher de geléia, etc., alternando a cada dia. Em termos das calorias, esta alimentação era absolutamente insu­ficiente, ainda mais considerando o pesado trabalho físico, a exposição a temperaturas abaixo de zero, com agasalho extremamente precário.

Pior ainda era a situação dos doentes que estavam sendo ‘poupados’, que podiam ficar deitados na barraca e não precisavam deixar o campo para o trabalho externo. Uma vez consumidos os últimos vestígios de gordura no tecido subcutâneo, ficávamos parecendo esqueletos vestidos de pele dos quais pendiam alguns trapos. Dali para frente podíamos observar como o corpo pas­sava a devorar-se a si mesmo. O organismo consumia sua própria proteína, a musculatura ia definhando. Agora o corpo também não apresentava mais re­sistência. Morria um atrás do outro na comunidade formada por nosso barracão. Cada qual podia calcular com bastante precisão quem seria o próximo e quando seria sua própria vez. Afinal, o grande número de casos observados já permitia conhecer bem os sintomas, baseados nos quais se podia prever com boa margem de segurança o tempo de vida que ainda restava para alguém. ‘Este não vai muito longe’, ou ‘esse vai ser o próximo’ – era o que segredávamos um ao outro. À noite, quando matávamos os piolhos antes de nos deitar, víamos o nosso corpo nu, e cada qual ficava pensando consigo mesmo: Na realidade esse corpo aí, o meu corpo, já não passa de um cadáver. O que éramos ainda? Uma partícula de uma grande massa de carne humana; uma massa cercada de arame farpado, comprimida em algumas cabanas de chão batido; uma massa da qual diariamente apodrecia um certo percentual por ter ficado sem vida…

Quem não passou por isto dificilmente poderá imaginar o desgaste interior causado pelos conflitos da força de vontade que se desenrolam na pessoa do faminto. Não é fácil imaginar o que significa estar no valo, empunhando a picareta, e ficar sempre atento, à espera da sirene indicar nove e meia ou dez horas, ou da pausa de meia-hora, ao meio-dia, com a distribuição da “merenda” (na época em que ainda havia merenda). Ficávamos perguntando repetidamente as horas ao capataz, caso não fosse pessoa intratável, ou mesmo a passantes civis. Apalpávamos carinhosamente um pequeno pedaço de pão no bolso da capa, com os dedos desprovidos de luvas e entorpecidos de frio, quebrávamos um pedacinho que levávamos à boca para então, num último esforço da vontade, fazê-lo voltar ao bolso. É que nesta manhã havíamos jurado agüentar até ao meio-dia ” (pp.36-38).

3. Quando um condenado era destinado a seguir num transporte para um forno crematório ou uma câmara de gás, era chamado “muçulmano” pelos colegas, que ainda o olhavam com curiosidade para ver se podiam aproveitar algum dos seus pertences.

No campo de concentração ninguém possuía documentos; todos eram conhecidos unicamente pelo seu número, de modo que não se sabia quem era médico, quem era jornalista, quem era operário; em conseqüência cada qual podia alegar a identidade que quisesse:

“Há muito já não possuíam seus documentos, e cada um se dava por feliz quando podia considerar propriamente seu nada mais que este seu orga­nismo ainda a respirar, apesar de tudo. O resto, o que ainda pendia sobre a esquálida pele desses semi-esqueletos em farrapos, só interessava aos que ficavam para trás. Com olho clínico e indisfarçada curiosidade, eram vistoria­dos os ‘muçulmanos’ destacados para o transporte, a fim de verificar se seus sapatos e suas capas não estavam ainda em estado um pouco melhor que os próprios. Afinal de contas, o seu destino estava selado. Entretanto, para aque­les que podiam ficar e tinham relativas condições de trabalhar, valia tudo que servisse para aumentar a sua chance de sobrevivência. Sentimentais é que não eram…”(p.56)”…

“A pessoa no campo de concentração se sentia somente como partícula de uma massa enorme, e sua existência se reduz ao nível de existência num rebanho. Sem poder pensar nem querer, as pessoas ali ora são tocadas para cá, ora para lá, ora são ajuntadas, ora dispersas, como rebanho de ovelhas. À tua direita e à tua esquerda, à frente e atrás espreita pequena, porém armada, requintada e sádica matilha que não pára de te tocar para frente ou para trás, aos berros, pontapés e coronhadas. Sentíamo-nos feito ovelhas num reba­nho, que somente sabem pensam e querem uma coisa: escapar aos ataques dos cães e, num momento de paz, poder comer um pouco. Como ovelhas que procuram temerosamente enfiar-se para o meio do rebanho amontoado, cada um de nós tentava postar-se no centro da fileira de cinco homens e, se possí­vel, também no meio de todo o grupo, para assim ter as melhores chances de escapar aos golpes dos guardas que marchavam ao lado da coluna, à sua frente e na retaguarda. Essa posição no meio apresentava ainda uma vanta­gem nada desprezível, ou seja, a da proteção contra o vento”(p. 53).

4. O senso religioso era vivo entre os encarcerados:

“O interesse religioso dos prisioneiros, na medida em que surgia, era o mais ardente que se possa imaginar. Não era sem um certo abalo que os prisioneiros recém-chegados se surpreendiam pela vitalidade e profundidade do sentimento religioso. O mais impressionante neste sentido devem ter sido as preces e cultos improvisados, no canto de algum barracão ou num vagão de gado escuro e fechado, no qual éramos trazidos de volta após o trabalho em uma obra mais distante, cansados, famintos e passando frio em nossos trapos molhados” (pp.40s).

5. Além da obsessão por comida e da apatia que, em geral, toma­vam conta de todos, os prisioneiros eram sujeitos a freqüentes explo­sões de irritação:

‘A irritabilidade além da apatia, representa uma das mais eminentes características da psique do prisioneiro. Entre as causas fisiológicas estão em primeiro lugar a fome e a falta de sono. Como qualquer um sabe, mesmo na vida normal ambos os fatores tornam a pessoa apática e irritadiça. No campo de concentração, o sono insuficiente se deve em parte aos insetos parasitas a proliferar livremente na mais inconcebível falta de higiene, e à inimaginável concentração de pessoas nos barracões “(p. 63).

Embora ainda haja muitos quadros importantes a extrair do livro de V. Frankl, passemos à:

3. TERCEIRA FASE: APÓS A LIBERTAÇÃO

Quando foram postos em liberdade, os prisioneiros já não sabiam o que é fazer uso desta prerrogativa. De modo geral, tinham os seus sentimentos aniquilados, tal era a apatia que os havia dominado:

‘À noitinha, quando voltam a se reunir os companheiros em seu velho barracão, um chega para o outro e lhe pergunta às escondidas: ‘Diga-me uma coisa – você chegou a ficar contente hoje?’ O outro responde: ‘Para ser franco, não!’ E fica envergonhado, porque não sabe que com todos é assim. Literal­mente, desaprendemos o sentimento de alegria. Será necessário aprender de novo a alegrar-se.

Sob o ponto de vista psicológico, pode-se chamar de verdadeira despersonalização aquilo que os companheiros libertos experimentaram. Tudo parece irreal e improvável. Tudo parece apenas um sonho. Ainda não se con­segue acreditá-lo. Foram demais, muito demais as vezes em que o sonho nos iludiu nesses últimos anos. Quantas vezes sonhamos que viria este dia em que nos poderíamos movimentar livremente? Quantas vezes sonhamos estar chegando em casa para abraçar a esposa, saudar os amigos, sentar com eles à mesa e começar a contar tudo aquilo que se passou durante estes anos? Quantas vezes antecipamos em sonhos esse dia de reencontros – e agora, realmente teria chegado este momento? Sempre havia três silvos estridentes ferindo o ouvido, dando o comando de ‘levantar’, arrancando a gente do sonho, da liberdade, e como mero sonho se revelava pela enésima vez. E agora deve­ríamos acreditar, de uma hora para a outra? Agora essa liberdade seria reali­dade verdadeira?” (p. 85).

Ao chegarem à casa, duas decepções podiam ainda afetar os pri­sioneiros libertos:

– a indiferença dos familiares:

“Ao voltar para casa, ele constata que muitos não reagem de outra forma do que simplesmente encolhendo os ombros ou dando de si frases baratas. Em vista disso, não raro, ele é tomado de amargura, surgindo dentro de si a pergunta de para que teria sofrido tudo aquilo. Não ouvindo outra coisa a não ser as costumeiras evasivas: ‘Nós não sabíamos de nada’, ou ‘… nós também sofremos…’, ele fica se perguntando se isto é realmente tudo que os outros lhe conseguem dizer…” (p.87).

– a ausência ou o desaparecimento dos entes queridos:

“Ai daquele para quem não existe mais a razão das suas forças no cam­po de concentração – o ente querido. Ai daquele que experimenta na realidade aquele momento que sonhou mil vezes, e o momento vem diferente, comple­tamente diferente do que fora imaginado. A pessoa pega o bonde, vai até aquela casa que por anos a fio imaginava diante de si e aperta a campainha ­bem assim como tanto desejara em seus mil sonhos… Mas quem abre a porta não é a pessoa que deveria abri-la – ela jamais voltará a lhe abrir a porta… ” (p. 88).

4. REFLEXÃO FINAL

Viktor Frankl analisou as reações psicológicas dos encarcerados em campo de concentração para poder penetrar melhor na realidade do ser humano. Na base das experiências então efetuadas, ele conce­beu a sua Logoterapia, que o próprio Frankl expõe na segunda Parte da obra em foco.

Qual seria a tese básica da Logoterapia?

V. Frankl se distancia dos dois grandes psicólogos vienenses que o precederam: 1) Sigmund Freud (+ 1939), apregoando que o eros é o impulso fundamental do ser humano, impulso que o leva a procurar em tudo o prazer e a fugir do desprazer; 2) Alfred Adler (+ 1937), que julgava ser a ânsia de poder o primeiro propulsor dos sentimentos e da atividade do ser humano. – V. Frankl põe de lado estas duas teses e afirma que a necessidade de descobrir o sentido da vida é a necessida­de básica e primordial de toda pessoa. Cita, por isto, mais de uma vez, a sentença de Frederico Nietzsche: “Quem tem por que viver, suporta quase qualquer como”.

Sim; saber por que vivemos desperta as energias do indivíduo e leva-o a aturar e superar os mais graves desafios, como aliás aconte­ceu com o próprio V. Frankl, que veio a ser uma exceção no campo de concentração, conseguindo escapar com vida e lucidez de mente às terríveis ameaças de morte que sobre ele pesaram.

O autor cita fatos que corroboram tal sentença:

Certa vez um prisioneiro sonhou que em 30/03/1945 seria libertado do campo de concentração. Acreditou no que dizia ter sido inspirado por uma voz do além. Enquanto ainda estava distante da prevista data, era vigoroso, mas, à medida que o tempo passava, a “profecia” parecia ilusória. “Deu-se então o seguinte: em 29/03 aquele companheiro foi atacado de febre alta. Em 30/03… caiu em pleno delírio e finalmente entrou em coma… No dia 31/03 ele estava morto. Falecera de tifo exantemático… A sua profunda decepção pelo não cumprimento da li­bertação pontualmente esperada reduziu drasticamente a capacidade imunológica do seu organismo contra a infecção de tifo exantemático já latente” (pp. 74s).

“Na semana entre o Natal de 1944 e o Ano Novo de 1945 irrompeu uma mortandade jamais vista anteriormente no nosso campo de concentração… A causa dessa mortandade em massa devia ser procurada exclusivamente no fato de que a maioria dos prisioneiros se entregou à habitual e ingênua espe­rança de estar de volta em casa para o Natal. Como, porém, as notícias dos jornais fossem tudo menos animadoras, ao se aproximar aquela data, os re­clusos foram tomados de desânimo e decepção gerais, cuja perigosa influên­cia sobre a capacidade de resistência dos prisioneiros se manifestou justa­mente naquela mortandade em massa” (p. 75).

Quem perdia toda esperança de libertação, entregava-se simples­mente à morte:

“Quem não consegue mais acreditar no futuro – seu futuro está perdido no campo de concentração. Com o futuro, tal pessoa perde o apoio espiritual, sucumbe interiormente e decai física e psiquicamente. Geralmente isto acon­tece de forma até bastante repentina, numa espécie de crise, cujos sintomas o recluso relativamente experiente conhece muito bem. Cada um de nós temia aquele momento em que se manifestava pela primeira vez essa crise – não em si próprio, pois então já teria sido indiferente, e sim em seus amigos. Geralmente essa crise se configurava da seguinte maneira: a pessoa em ques­tão certo dia ficava simplesmente deitada em seu barracão, e ninguém conse­guia persuadi-la a botar a roupa, ir ao lavatório ou mesmo a se apresentar na formatura de chamada. Nada mais surtia efeito, nada lhe metia medo, nem súplicas, nem ameaças, nem golpes, tudo em vão. O sujeito simplesmente ficava deitado, não se mexia, e quando uma doença provocava essa crise, a pessoa se negava inclusive a ser transportada para o ambulatório ou tomar qualquer medida em prol de si mesma. Ela entrega os pontos! Fica deitada até nas próprias fezes e urina, pois nada mais lhe interessa” (p. 74).

Considerando o terrível achatamento físico e psíquico dos interna­dos em concentração, V. Frankl pergunta: será necessário que toda pessoa, uma vez encarcerada, sucumba às influências negativas do campo? Será que não pode reagir de outro modo às condições de vida reinantes no campo de concentração?

Responde afirmando que mesmo nas piores situações do campo de concentração havia pessoas que reagiam “fora do esquema”. Havia suficientes exemplos, muitos deles heróicos, que demonstraram ser possível superar a apatia e reprimir a irritação. “Quem dos que passa­ram pelo campo de concentração, não saberia falar daquelas figuras humanas que caminhavam pela área de formatura dos prisioneiros ou de barracão em barracão, dando aqui uma palavra de carinho, entre­gando até a última lasca de pão?” (p.66)[3].

O autor explica que essa resistência ao “achatamento” do campo se devia a um lastro de interioridade ou a um cultivo de valores espirituais realizado antes e no decorrer da internação carcerária. V. Frankl é muito sóbrio ao referir-se a esse lastro; chama-o simplesmente “liberda­de”, “decisão interior”… Não quer explicar melhor o que ele assim en­tende para não sair da área da psicologia. Todavia a fé tem algo mais a dizer: a consciência de que Deus é providente e leva em conta a fideli­dade dos seus fiéis, é que fortalece a pessoa sofredora; não bastam sonhos e “profecias” subjetivas para animar alguém; somente o apoio no Transcendental pode consolidar a personalidade ameaçada.

Em conseqüência pode-se dizer que o livro de V. Frankl é excelen­te por informar a respeito do grau de barbaridade a que pode chegar o homem, mesmo no século XX; é valioso também porque mostra que a pressão esmagadora do campo pôde encontrar nobre resistência, como foi a de V. Frankl mesmo e a de Maximiliano Kolbe. Todavia o livro preci­sa de ser complementado por uma análise religiosa dos fatos. A resis­tência dos heróis devia ter um fundamento, um “porquê” e um “para quê”, e este havia de ser, em última análise, o fator religioso, ao qual aliás V. Frankl alude sobriamente (ver pp.40s.85s.88).

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NOTAS:

[1] Tradução de Walter Schlupp e Garfos G. Avelina. Ed. Senoidal (São Leopoldo) e Ed. Vozes (Petrópolis), 1994 (4ª “edição, revista”), 140 x 210mm, 136pp.

[2] SS = Sta atsícherheít, Segurança do Estado.

[3] Entre esses, devia estar o Pe. Maximilíano Kolbe.