(Revista Pergunte e Responderemos, PR 375/1993)
Em síntese: Vai, a seguir, publicada uma Catequese de João Paulo II proferida na quarta-feira 16/12/92 sobre o exercício do primado de Pedro na Igreja nascente. São passados em revista atenta os textos dos Atos dos Apóstolos e das epístolas que evidenciam a função primacial de Pedro desde os primeiros dias da Igreja. Essa função, que tem a promessa da assistência do Espírito Santo (cf. Jo 14,15-17. 26; 16,12s), é fator de unidade da Igreja.
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O primado do Apóstolo Pedro e de seus sucessores é sempre um ponto nevrálgico nas relações entre os católicos e os demais cristãos. É difícil a estes aceitar uma chefia visível para a Igreja, pois as tradições nacionais tendem a dilacerar a unidade da Igreja, unidade que uma chefia visível tem o papel de garantir. – É importante mostrar que está nos próprios desígnios do Senhor e nos documentos do Novo Testamento o fundamento do primado do Apóstolo Pedro, Pastor universal do rebanho, destinado a tutelar a unidade da fé e da Moral dos cristãos sob a assistência do Espírito Santo.
O S. Padre João Paulo II dedicou três de suas Catequeses semanais à explanação dos textos do Novo Testamento relativos às funções de Pedro: aos 2 e 9/12/92, deteve-se sobre os Evangelhos, onde Jesus aparece prometendo e conferindo o primado a Pedro; ver Mt 16,16-19; Lc 22, 31s e Jo 21, 15-17. Aos 16/12 percorreu os textos dos Atos dos Apóstolos e das epístolas que mostram o exercício de autoridade singular por parte de Pedro logo nos primeiros anos da Igreja. É esta terceira Catequese que vai abaixo transcrita em tradução portuguesa. Toma-se muito interessante perceber, numa leitura atenta, como de fato Pedro presidia ao Colégio dos Apóstolos desde os inícios do Cristianismo, ficando assim afastada a hipótese de uma instauração tardia e usurpativa do primado de Pedro e seus sucessores.
A palavra do Papa seguir-se-á o depoimento do teólogo protestante Oscar Cullmann sobre o mesmo assunto.
1. A PALAVRA DO PAPA
1. Os textos que expus e expliquei nas catequeses passadas dizem respeito diretamente à missão, de Pedro, de confirmar na fé os irmãos e de apascentar o rebanho dos seguidores de Cristo. São os textos fundamentais sobre o ministério petrino. Contudo, eles devem ser considerados no quadro mais completo de todo o discurso neotestamentário sobre Pedro, a começar pelo inserimento da sua missão no conjunto do Novo Testamento. Nas Epístolas de Paulo, ele é recordado como a primeira testemunha da ressurreição (cf. 1Cor. 15, 3ss), e Paulo disse que foi a Jerusalém “para ver Cefas” (cf. Gál. 1, 18). A tradição joanina registra uma grande presença de Pedro, e também são numerosas nos Sinóticos as referências a ele.
O texto neotestamentário diz respeito também à posição de Pedro no grupo dos Doze. Nele sobressai o trio Pedro, Tiago e João: basta pensar, por exemplo, nos episódios da transfiguração, da ressurreição da filha de Jairo, do Getsêmani. Pedro está sempre no primeiro lugar em todas as listas dos Apóstolos (em Mt. 10,2 até com a qualificação de “primeiro”). É lhe dado por Jesus um novo nome, Kefa, que é traduzido em grego (era portanto considerado significativo), para designar a tarefa e o lugar que Simão terá na Igreja de Cristo.
São elementos que nos servem para compreender melhor o significado histórico e eclesiológico da promessa de Jesus, contida no texto de Mateus (16,18-19), e o conferimento da missão pastoral narrado por João (21,15-19): o primado de autoridade no colégio apostólico e na Igreja.
2. Trata-se de um dado de fato, narrado pelos evangelistas como anotadores da vida e da doutrina de Cristo, mas também como testemunhas da crença e da praxe da primeira comunidade cristã. Nos textos deles resulta que, nos primeiros tempos da Igreja, Pedro exercia a autoridade de modo decisivo ao nível mais elevado. Este exercício, aceito e reconhecido pela comunidade, está em correspondência histórica com as palavras pronunciadas por Cristo acerca da missão e do poder de Pedro.
É fácil admitir que as qualidades pessoais de Pedro não teriam sido por si sós suficientes para obter o reconhecimento de uma autoridade suprema na Igreja. Mesmo se tinha um comportamento de chefe, já demonstrado naquela espécie de associação para a pesca no lago, feita por ele com os “companheiros” João e André (cf. Lc. 5, 10), não teria podido impor se sozinho, dado que tinha limites e defeitos de igual modo conhecidos. E, por outro lado, sabe-se que, durante a vida terrena de Jesus, os Apóstolos tinham discutido sobre quem, de entre eles, teria obtido o primeiro lugar no reino. Portanto, o fato de que a autoridade de Pedro fosse depois reconhecida pacificamente na Igreja, é devido exclusivamente à vontade de Cristo, e demonstra que as palavras com as quais Jesus tinha atribuído ao Apóstolo a sua particular autoridade pastoral, tinham sido escutadas e recebidas sem dificuldade na comunidade cristã.
3. Façamos uma breve exposição dos fatos. Logo depois da Ascensão, refere o Livro dos Atos, os Apóstolos reuniram-se: na sua lista, Pedro é o primeiro a ser nomeado (cf. At 1,13), como também nas listas dos Doze, que nos são fornecidas pelos Evangelhos e na enumeração dos três privilegiados (cf. Mc 5, 37; 9,2; 13,3; 14, 33 e par.).
É ele, Pedro, que por sua iniciativa toma a palavra: “Naqueles dias, levantando-se Pedro no meio dos irmãos” (At. 1,15). Não é a autoridade que o designa. Ele comporta-se como quem possui a autoridade. Naquela reunião Pedro expõe o problema que surgiu da traição e da morte de Judas, que reduz o número dos Apóstolos a onze. Por fidelidade à vontade de Jesus, cheia de simbolismo sobre a passagem do Antigo Israel ao Novo (doze tribos constitutivas – doze Apóstolos), Pedro indica a solução que se impõe: designar um substituto que seja, com os onze, “testemunha… da ressurreição” de Cristo (cf. At. 1,21-22). A assembléia aceita e põe em prática esta solução, tirando à sorte, a fim de que a designação viesse do alto: e “a sorte caiu em Matias, o qual foi associado aos onze Apóstolos” (At. 1, 26).
Convém ressaltar que entre as testemunhas da ressurreição, em virtude da vontade de Cristo, Pedro tinha o primeiro lugar. O anjo que anunciara às mulheres a ressurreição de Jesus dissera: “Ide, dizei aos seus discípulos e a Pedro…” (Mc. 16, 7). João deixa que seja Pedro o primeiro a entrar no sepulcro (cf. Jo. 20,1-10). Aos discípulos que retornaram de Emaús os outros dizem: “Na verdade o Senhor ressuscitou e apareceu a Simão” (Lc. 24,34). É uma tradição primitiva, recolhida pela Igreja e referida por São Paulo, que Cristo ressuscitado apareceu primeiro a Pedro: “foi visto por Cefas e depois pelos onze” (1Cor 15, 5).
Esta prioridade corresponde à missão, conferida a Pedro, de confirmar na fé os seus irmãos, como primeira testemunha da ressurreição.
4. No dia de Pentecostes Pedro age como chefe das testemunhas da ressurreição. É ele quem toma a palavra, com um impulso espontâneo: “Pedro, apresentando-se com os onze, levantou a voz e disse…” (At 2,14). Ao comentar o que tinha acontecido, ele declara: “A este Jesus ressuscitou Deus, do que todos nós somos testemunhas” (At 2,32). Os Doze são testemunhas deste fato: Pedro proclama isto em nome de todos. Podemos dizer que ele é o porta-voz institucional da primeira comunidade e do grupo dos
Apóstolos. É ele que indica a quem o escuta o que devem fazer: “Fazei penitência e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo…” (At 2, 38).
É ainda Pedro que realiza o primeiro milagre, causando o entusiasmo da multidão. Segundo a narração dos Atos, ele encontra-se em companhia de João quando se dirige ao coxo que pede esmola. É ele que fala. “Pedro, pondo nele os olhos juntamente com João, disse: olha para nós!”. Ele (o coxo) olhava para eles com atenção, esperando receber alguma coisa. Mas Pedro disse: “Não tenho prata nem ouro, mas, o que tenho, isto te dou: em nome de Jesus Cristo de Nazaré, levanta-te e anda!”. E, tomando-o pela mão direita, levantou-o, e imediatamente se lhe consolidaram os pés e os tornozelos. Dando um salto, pôs-se em pé, e andava…” (At. 3, 3-8). Portanto Pedro, com as suas palavras e os seus gestos, faz-se instrumento do milagre, convencido de dispor do poder que Jesus lhe tinha conferido também neste campo.
É precisamente neste sentido que ele explica ao povo o milagre, mostrando que a cura manifesta a potência de Cristo ressuscitado: “Deus ressuscitou-O dos mortos, do que nós somos testemunhas” (At. 3,15). Por conseqüência, ele exorta quem o escuta: “Arrependei-vos, pois, e convertei-vos!” (At. 3,19).
No interrogatório do Sinédrio é Pedro, “cheio do Espírito Santo”, que fala, para proclamar a salvação trazida por Jesus Cristo (cf. At. 4, 8s), crucificado e ressuscitado (cf. At. 7, 10).
Sucessivamente é Pedro que, “juntamente com os Apóstolos”, responde à proibição de ensinar em nome de Jesus: “Deve-se obedecer antes a Deus que aos homens…” (At. 5, 29).
5. Também no caso penoso de Ananias e Safira, Pedro manifesta a sua autoridade como responsável da comunidade. Ao repreender aquele casal cristão pela mentira do lucro da venda de um campo, ele acusa os dois culpados de terem mentido ao Espírito Santo (cf. At. 5, 1-11).
De igual modo o próprio Pedro responde a Simão mago, que tinha oferecido dinheiro aos Apóstolos para obter o Espírito Santo com a imposição das mãos: “O teu dinheiro pereça contigo, visto que julgaste que o dom de Deus se pode adquirir com dinheiro… Faze, pois, penitência desta tua maldade, e roga a Deus que, se é possível, te seja perdoado este pensamento” (At 8, 20.22).
Os Atos, além disso, dizem-nos que Pedro é considerado pela multidão como aquele que, ainda mais do que os outros Apóstolos, opera maravilhas. Certamente não é o único a realizar milagres: “Entretanto eram feitos pelas mãos dos Apóstolos muitos milagres e prodígios entre o povo” (At 5,12). Mas é principalmente d’Ele que esperam as curas: “traziam os doentes para as ruas e punham-nos em leitos e enxergões, a fim de que, ao passar Pedro, cobrisse ao menos a sua sombra algum deles” (At. 5, 15).
Portanto, nestes primeiros momentos do início da Igreja, sobressai claramente um aspecto: sob a força do Espírito e em coerência com o mandamento de Jesus, Pedro age em comunhão com os Apóstolos, mas toma a iniciativa e decide pessoalmente como Chefe.
6. Explica-se deste modo também o fato de que, no momento da prisão de Pedro por parte de Herodes, se tenha elevado na Igreja uma oração mais ardente por ele: “Pedro, pois, estava assim guardado no cárcere. Entretanto a Igreja fazia sem cessar oração a Deus por ele” (At 12,5). Também esta oração deriva da convicção comum da importância única de Pedro: com ela tem início a cadeia ininterrupta de súplicas que se elevarão na Igreja em todos os tempos pelos sucessores de Pedro.
A intervenção do Anjo e a libertação milagrosa (cf. At 12, 6-17), além disso, manifestam a proteção que lhe permite realizar toda a missão pastoral que lhe foi confiada. Os fiéis pedirão esta proteção e assistência para os Sucessores de Pedro, nas penas e perseguições que encontrarão sempre no seu ministério de “servos dos servos de Deus”.
7. Podemos concluir reconhecendo que, verdadeiramente, nos primeiros tempos da Igreja, Pedro age como aquele que possui a primeira autoridade do âmbito do colégio dos Apóstolos, e por este motivo fala em nome dos Doze como testemunha da ressurreição.
Por isso faz milagres que se assemelham aos de Cristo e realiza-os em Seu nome. Por isso assume a responsabilidade do comportamento moral dos membros da primeira comunidade e do seu futuro desenvolvimento. Por isso está no centro do interesse do povo de Deus e da oração dirigida ao Céu a fim de lhe obter a proteção e a libertação.
2. A PALAVRA DE UM PROTESTANTE
O teólogo protestante Oscar Cullmann distingue-se por sua erudição e sua abertura de espírito. Foi observador do Concílio do Vaticano II, a convite do Papa Paulo VI e é bom amigo do Cardeal Joseph Ratzinger; foi agraciado com o prêmio Paulo VI do Instituto do mesmo nome, dada a sua contribuição para o profícuo diálogo católico-protestante.
Autor de vários livros, foi entrevistado por Lúcio Brunelli e Alfred Labhart em nome da revista 30 DIAS, à qual fez significativas declarações sobre o primado de Pedro. Transcrevemo-las a partir do número de março 1993, p. 12, da citada revista (edição brasileira):
R: O senhor atribui a Roma toda a responsabilidade pela ruptura com Lutero?
CULLMANN: Não, a responsabilidade é de ambas as partes, também de Lutero. Ele disse coisas sem propósito sobre o papado (“fundado pelo diabo”) e sobre a Eucaristia. Havia reformadores como Martin Butzer, de Estrasburgo, que não queriam a ruptura mas uma reforma interna. Eu também nasci em Estrasburgo e considero isso um fato providencial para toda a minha vida e a reflexão que fiz. 0 cristianismo alsaciano sempre viveu a unidade na diversidade.
R: Lutero disse também: “Se obtivermos o reconhecimento do fato de que Deus justifica unicamente por pura graça, nós não só levaremos o Papa na palma da mão, mas também beijaremos os seus pés”. Que espaço existe para o ministério de Pedro na sua proposta?
CULLMANN: Eu considero o serviço de Pedro um carisma da Igreja católica, com a qual nós, protestantes, também temos que aprender. Eu o vejo à luz dos problemas que a secularização traz para as denominações protestantes. Não concordo com tudo o que o Papa diz, mas pelo menos existem diretrizes. No mundo protestante elas não existem. Nós também precisaríamos de uma forma de magistério. 0 Papa é o bispo de Roma e, enquanto tal, ele poderia ter a presidência da “comunidade das Igrejas” de que falei. Pessoalmente, vejo o papel dele como de quem garante a unidade. Ele poderia ser aceito, se não tivesse jurisdição sobre todos os cristãos, mas um primado de honra. 0 serviço de Pedro seria necessário, em uma forma nova, inclusive como reação contra possíveis erros coletivos. Nem sempre a maioria traz a verdade. Por isso, sou contra a mistura de Igreja com democracia. Na Idade Média, havia elementos do baixo clero que pediam que os judeus fossem queimados, e os Papas reagiram contra esses métodos.
Este texto sugere alguns comentários:
1) Oscar Cullmann reconhece a necessidade de uma autoridade na igreja, que promulgue diretrizes e exerça o magistério. Tal necessidade lhe parece tanto mais evidente quanto mais se verifica que o protestantismo se vai esfacelando diante dos problemas que a secularização (ou o apagamento da fé) lhe tem suscitado: “Considero o serviço de Pedro um carisma da Igreja Católica, do qual nós, protestantes, temos que aprender… (No catolicismo) existem diretrizes; no mundo protestante elas não existem. Nós também precisaríamos de uma forma de magistério… O papel do Papa garante a unidade”.
2) Cullmann parece incoerente quando, logo a seguir, concebe o Papa como dotado apenas de “um primado de honra”. – O primado de honra ocorre entre os ortodoxos orientais, que o atribuem ao Patriarca de Constantinopla (Istambul); tal função honorífica não é suficiente para garantir a unidade de doutrina e a comunhão dos membros da Igreja; os ortodoxos orientais se distribuem por “igrejas autocéfalas”, cada qual governada por um Sínodo local.
3) Cullmann mesmo torna a dizer, no fim do seu depoimento, que ele quer uma instância que “reaja contra eventuais erros coletivos”. Ora esta função só é possível se tal instância possui autoridade e é respeitada como árbitro em questões controvertidas, … árbitro que tem a palavra final porque goza da infalível assistência prometida por Jesus a Pedro (cf. Mt 16, 16-19; Lc 22,31s; Jo 21, 15-17; Jo 14,16s. 26; 16,13-15). Cullmann julga que a Igreja não pode ser estruturada como uma democracia, em que as grandes questões são resolvidas pelo voto da maioria; deve haver uma autoridade carismática, assistida por Deus, para preservar a multidão de incorrer nos erros que a fragilidade humana pode ocasionar. – Em última análise, portanto, Cullmann reconhece a validade do ministério do Papa como indispensável fator e penhor da unidade de doutrina e de comunhão da Igreja Para a melhor experiência de casino online em Portugal, não deixe de tirar partido dos bónus únicos oferecidos pelos nossos parceiros em casinos-portugal-online.pt.
4) As declarações de Cullmann levam espontaneamente o leitor a pensar no contraste existente entre o protestantismo culto e a protestantismo de pouca profundidade do nosso Brasil. Enquanto aquele tende a reler o passado com olhar objetivo, destituído de paixões e preconceitos, o protestantismo no Brasil se fecha em preconceitos e se exprime em atitudes agressivas, fanáticas, freqüentemente caluniosas. Quanto mais estudo há, tanto mais os cristãos podem derrubar os obstáculos da unidade, ao passo que a pouca cultura religiosa alimenta suspeitas infundadas e divisões.
O Espírito de Deus, que hoje em dia impele os cristãos à procura da unidade, leve a termo a obra iniciada!