Aprender a perdoar

Olá a todos!
Eis a ideia para vocês refletirem ao longo da semana: “o valor do perdão”.

Como estamos no Ano da Misericórdia, estabelecido pelo papa Francisco desde o dia 8 de dezembro do ano passado, gostaria de falar de uma das manifestações mais importantes da misericórdia: o perdão.

Um tempo atrás, li em espanhol um dos textos mais profundos que achei sobre o perdão. Gostei tanto que fiz a tradução. Segue abaixo o início dele e um anexo com o texto completo. Vale muito a pena lê-lo na íntegra.

* * *

Aprender a perdoar

A única dor que destrói mais do que o ferro é a da injustiça que procede dos nossos familiares.

Por: Jutta Burggraf

Se alguém nos pisar no ônibus cheio, mas pedir desculpas com amabilidade, normalmente não teremos muita dificuldade em esboçar um sorriso, mesmo que o nosso pé esteja doendo. Somos conscientes de que o outro não nos causou o incômodo propositadamente, mas por descuido ou empurrado pela força da gravidade. Não é responsável por sua ação. Nesse caso não será necessário exercitar o perdão, pois este se refere a um mal que alguém nos ocasionou voluntariamente.

Uma reflexão prévia

Quando falamos do autêntico perdão, movemo-nos num terreno muito mais profundo. Um pé pisado por descuido não tem importância, mas sim a tem uma ferida no coração humano causada pela livre atuação de outra pessoa. Todos sofremos, de vez em quando, injustiças, humilhações e rejeições; alguns têm de suportar diariamente torturas, não só na cadeia mas também no trabalho ou na própria família. É verdade que ninguém pode nos fazer tanto dano como quem deveria nos amar. A única dor que destrói mais do que o ferro é a da injustiça que procede dos nossos familiares, dizem os árabes.

Não é só pela injustiça que nosso coração pode sofrer. Pode sofrer também pela infidelidade, pela corrupção, pelo desgaste. O amor pode esfriar-se pelo desgaste diário, pela desatenção e pelo  estresse, pode ir desaparecendo oculta e silenciosamente. Casais aparentemente muito unidos podem sofrer “divórcios interiores”, podem viver externamente juntos sem estar, porém, unidos interiormente, na mente e no coração. Podem conviver, suportando-se.

Diante das feridas provenientes do trato com os outros, é possível reagir de formas diferentes. Podemos bater naqueles que nos bateram, ou falar mal dos que falaram mal de nós. Mas não vale a pena gastar energia com aborrecimentos, receios, rancores ou desespero; e menos ainda fechar-se para não sofrer mais. Só o perdão é que liberta.

O perdão consiste em renunciar à vingança e querer, apesar de tudo, o melhor para quem nos ofendeu. A tradição cristã oferece testemunhos impressionantes dessa atitude. Não só temos o exemplo famoso de Santo Estêvão, o primeiro mártir, que morreu rezando por aqueles que o apedrejavam. Em nossos dias há também muitos exemplos. Em 1994, um monge trapista chamado Christian foi morto na Argélia devido a uma perseguição religiosa junto com outros monges que tinham permanecido no seu mosteiro. Christian deixou uma carta à sua família para que a lessem depois da sua morte. Nela dava graças a todos os que tinha conhecido e dizia: “Neste agradecimento evidentemente incluo vocês, amigos de ontem e de hoje… E também a vós, amigos de última hora, que não tendes ideia do que fareis. Sim, também a vós, meus perseguidores, digo este “obrigado” e este “a Deus”. Que Deus, nosso Pai, nos conceda voltar a ver-nos no paraíso, se for do seu agrado”.

Talvez pensemos que estes são casos-limite, reservados a alguns heróis; que são ideais belos, mas mais admiráveis do que imitáveis, e que se encontram muito longe de nossas experiências pessoais.

Pode uma mãe perdoar o assassino do seu filho? Podemos perdoar uma pessoa que nos deixou numa situação completamente ridícula diante dos demais, que nos tirou a liberdade ou a dignidade, que nos enganou, difamou ou destruiu algo que para nós era muito importante? Essas são algumas das situações existenciais nas quais convém perguntar-nos.

CONTINUE LENDO O TEXTO COMPLETO QUE SE ENCONTRA ABAIXO…

Uma santa semana a todos!

Padre Paulo

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Aprender a perdoar
A única dor que destrói mais que o ferro é a injustiça que procede dos nossos familiares.

Por: Jutta Burggraf

Se alguém nos pisar no ônibus cheio, mas pedir desculpas com amabilidade, normalmente não teremos muita dificuldade em esboçar um sorriso, mesmo que o nosso pé esteja doendo. Somos conscientes de que o outro não nos causou o incômodo propositadamente, mas por descuido ou empurrado pela força da gravidade. Não é responsável da sua ação. Neste caso não será necessário exercitar o perdão, pois este se refere a um mal que alguém nos ocasionou voluntariamente.

Uma reflexão prévia

Quando falamos do autêntico perdão movemo-nos num terreno muito mais profundo. Um pé pisado por descuido não tem importância, mas sim a tem uma ferida no coração humano causada pela livre atuação de outra pessoa. Todos sofremos, de vez em quando, injustiças, humilhações e rejeições; alguns têm de suportar diariamente torturas, não só na cadeia, mas também no trabalho ou na própria família. É verdade que ninguém pode fazer-nos tanto dano como quem deveria nos amar. A única dor que destrói mais do que o ferro é a da injustiça que procede dos nossos familiares, dizem os árabes.

Não é só pela injustiça que nosso coração pode sofrer. Pode sofrer também pela infidelidade e pela corrupção, pelo desgaste. O amor pode esfriar-se pelo desgaste diário, pela desatenção e estresse, pode ir desaparecendo oculta e silenciosamente. Casais aparentemente muito unidos podem sofrer “divórcios interiores”, podem viver externamente juntos, sem estarem, porém unidos interiormente, na mente e no coração. Podem conviver, suportando-se.

Diante das feridas provenientes pelo trato com os outros é possível reagir de formas diferentes. Podemos bater naqueles que nos bateram, ou falar mal dos que falaram mal de nós. Mas não vale a pena gastar energias em aborrecimentos, receios, rancores ou desespero; e menos ainda em fechar-se para não sofrer mais. Só o perdão é que liberta.

O perdão consiste em renunciar à vingança e querer, apesar de tudo, o melhor para quem nos ofendeu. A tradição cristã oferece testemunhos impressionantes desta atitude. Não só temos o exemplo famoso de Santo Estevão, o primeiro mártir, que morreu rezando por aqueles que o apedrejavam. Em nossos dias há também muitos exemplos. Em 1994 um monge trapista chamado Christian foi morto na Argélia devido a uma perseguição religiosa junto com outros monges que tinham permanecido no seu mosteiro. Christian deixou uma carta à sua família para que a lessem depois da sua morte. Nela dava graças a todos os que tinha conhecido e dizia: “Neste agradecimento evidentemente incluo a vocês, amigos de ontem e de hoje… E também a vós, amigos de última hora, que não tendes ideia do que fareis. Sim, também a vós, meus perseguidores, digo este “obrigado” e este “a Deus”. Que Deus, nosso Pai, nos conceda voltar a ver-nos no paraíso, se for do seu agrado.”

Talvez pensemos que estes são casos limites, reservados a alguns heróis; que são ideais belos, mas mais admiráveis do que imitáveis, e que se encontram muito longe de nossas experiências pessoais.

Pode uma mãe perdoar o assassino do seu filho? Podemos perdoar a uma pessoa que nos deixou numa situação completamente ridícula diante dos demais, que nos tirou a liberdade ou a dignidade, que nos enganou, difamou ou destruiu algo que para nós era muito importante? Estas são algumas das situações existenciais nas que convém perguntar-nos.

I. Que quer dizer “perdoar”?

O que é o perdão? Que faço quando digo a uma pessoa “eu te perdoo”?

Perdoar é rejeitar a vingança e os rancores, e dispor-se a ver o agressor como uma pessoa digna de compaixão. Não é esquecer a injustiça. Pressupõe um mal que alguém nos ocasiona, realizado com toda liberdade. Vamos considerar estes elementos com mais atenção.

1. Reagir perante um mal

Em primeiro lugar, deve tratar-se realmente de um mal realizado contra nós. Se um cirurgião me extirpar um braço extremamente infeccionado, posso sentir dor e tristeza, até posso ficar furioso com o médico, mas não preciso perdoar-lhe nada, pois fez-me um grande bem: salvou a minha vida. Situações semelhantes podem ocorrer na educação. Os bons pais não concedem aos filhos todos os caprichos que eles pedem; formam-nos na fortaleza. Uma professora me disse numa ocasião: “Não me importa o que os meus alunos pensem hoje sobre mim. O que importa é o que pensem dentro de trinta anos”. O perdão só tem sentido, quando alguém recebeu um dano objetivo da parte de outra pessoa.

Por outro lado, perdoar não consiste, de modo algum, em não querer ver este dano, em colori-lo ou suavizá-lo. Alguns passam pela vida sem dar importância às injúrias com que são tratados por seus colegas ou cônjuges, porque pretendem escapar de qualquer conflito buscando a paz a qualquer preço, ou porque desejam viver num ambiente harmonioso, ou porque tudo lhes dá na mesma. Não dão importância, se os outros não lhes dizem a verdade; não dão importância se os outros os utilizam como meros objetos para conseguir fins egoístas. Não dão importância à fraude nem ao adultério. Esta atitude é perigosa porque pode levar a uma completa cegueira perante os valores. A indignação e a ira são reações normais e até necessárias em algumas ocasiões. Quem perdoa, não fecha os olhos ante o mal; não nega que existe objetivamente uma injustiça. Se o negasse, não teria nada que perdoar.

Se alguém se acostumasse a calar sempre, talvez pudesse por algum tempo gozar de uma aparente paz, mas no fim pagará um preço muito alto por renunciar à liberdade de ser ele mesmo. Esconderá e sepultará suas frustrações no mais profundo de seu coração, por trás de um grosso muro que ele próprio irá levantar para se proteger. E nem sequer reparará na sua falta de autenticidade, pois é normal que uma injustiça doa e deixe uma ferida. Se não se olha a ferida de frente, não se pode curá-la. Portanto, estaremos fugindo permanentemente da própria intimidade (isto é, de nós mesmos) e a dor corroerá lenta e irremediavelmente a nossa pessoa. As pessoas podem fazer uma viagem ao redor do mundo ou até mudar de cidade, mas ninguém pode fugir do sofrimento.

Toda dor ignorada retorna pela porta dos fundos. Permanece por longo tempo como experiência traumática e pode ser a causa de feridas perpétuas. Uma dor oculta pode levar, em alguns casos, a que uma pessoa se torne azeda, obsessiva, medrosa, nervosa ou insensível; que rejeite uma amizade, ou que tenha pesadelos. Mesmo sem querer, mais cedo ou mais tarde, reaparecerão as lembranças. Afinal das contas, muitos reparam que talvez tivesse sido melhor encarar direta e conscientemente a experiência da dor. Encarar um sofrimento de maneira adequada é a chave para conseguir a paz interior.

2. Atuar com liberdade

O ato de perdoar é livre. É a única ação que não dá rédeas necessariamente ao conhecido princípio “olho por olho e dente por dente”. O ódio provoca violência e a violência justifica o ódio. Quando perdoo, ponho um ponto final a este círculo vicioso; impeço que esta reação em cadeia siga seu curso. Quando perdoo, liberto o outro, que deixa de estar sujeito ao processo iniciado. Mas, em primeiro lugar, liberto-me a mim mesmo. Começo a desligar-me dos aborrecimentos e rancores. Não estou “reagindo” de modo automático, mas inicio um novo processo também em mim mesmo.

Superar as ofensas é uma tarefa muito importante, porque o ódio e a vingança envenenam a alma.

O filósofo Max Scheler afirma que uma pessoa ressentida se intoxica.  O outro o feriu, e não consegue deixar de lado essa consciência. Nela se encerra, se instala e se fecha. Fica aprisionada ao passado. Dá vazão a seu rancor com repetições e mais repetições do mesmo sentimento. Desse modo acaba arruinando a sua vida.

Os ressentimentos fazem com que as feridas ocasionadas pela injustiça se infeccionem no nosso interior e exerçam seu pesado e devastador influxo, criando uma espécie de mal-estar e de insatisfação gerais. Consequentemente, quem se deixa levar por eles não se sentirá feliz consigo mesmo e nem se encontrará contente em nenhum lugar. As lembranças amargas podem acender sempre de novo a ira e a tristeza, podem levar a depressões. Um ditado chinês diz: “Aquele que procura vingança cava duas fossas”.

No seu livro, “Minha primeira amiga branca”, uma jornalista norte americana, de cor, descreve como a opressão que seu povo sofrera nos Estados Unidos a levou na sua juventude a odiar os brancos, “porque lincharam e mentiram, nos fizeram prisioneiros, envenenando-nos e eliminando-nos”.

A autora confessa que, depois de algum tempo, chegou a reconhecer que seu ódio, por muito compreensível que fosse, estava destruindo a sua identidade e a sua dignidade. Ficava cega, por completo, diante dos gestos de amizade que uma moça branca lhe mostrava no colégio. Aos poucos descobriu que, em vez de esperar que os brancos pedissem perdão pelas suas injustiças, ela tinha que pedir perdão pelo seu próprio ódio e pela sua incapacidade de ver nos brancos uma pessoa, e deixar de pensar que fosse um membro de uma raça de opressores. Encontrou o inimigo no seu próprio íntimo, formado pelos prejuízos e rancores que lhe impediam ser feliz.

As feridas não curadas podem reduzir enormemente a nossa liberdade. Podem dar origem a reações desproporcionadas e violentas que nos surpreendam a nós mesmos. Uma pessoa ferida, fere os outros. Muitas vezes esconde seu coração por traz de uma couraça. Pode parecer dura, inacessível e intratável. Na realidade, não é assim. Só precisa defender-se. Parece dura, mas é insegura; vive atormentada pelas más experiências.

Faz-se necessário descobrir as chagas para poder limpá-las e curá-las. Pôr ordem no próprio interior pode ser um passo para tornar possível o perdão. Mas este passo é sumamente difícil e por vezes não se consegue dar. Pode-se renunciar à vingança, mas não à dor. Aqui se vê claramente que o perdão, embora estreitamente unido a vivências afetivas, não consiste num sentimento. É um ato da vontade que não se reduz ao nosso estado psíquico. Pode-se perdoar chorando.

Quando uma pessoa realizou o ato de perdoar com completa liberdade, o sofrimento perde com frequência sua amargura, e pode acontecer que, com o passar do tempo, desapareça. “As feridas transformam-se em pérolas”, diz Santa Hildegarda de Bingen.

3. Lembrar o passado

É lei natural que o tempo “cure” algumas chagas. Não as fecha totalmente, mas as faz esquecer. Alguns falam da “caducidade das emoções”. Chegará um momento em que uma pessoa não poderá chorar mais, nem se sentirá ferida. Não é um sinal de ter perdoado o seu agressor, mas sim de ter “vontade de viver”. Um determinado estado psíquico, por mais intenso que for, não se pode tornar permanente. A esse estado segue-se um lento processo de desprendimento, pois a vida continua. Não podemos ficar sempre ai, colados ao passado, perpetuando em nós a dor sofrida. Se permanecermos na dor, bloqueamos o ritmo da natureza.

A memória pode se transformar num cultivo de frustrações. A capacidade de se desligar e de esquecer é, portanto, importante para o ser humano, mas não tem nada a ver com a atitude de perdoar. Esta atitude não consiste em esquecer tudo como se nada tivesse acontecido. Exige recuperar a verdade da ofensa e da justiça, que muitas vezes pretendemos camuflar ou distorcer. O mal feito deve ser reconhecido e, na medida do possível, reparado. Faz falta “purificar a memória”. Uma memória sadia pode converter-se em mestra da vida. Viver em paz com o passado ensina a aprender muito com os acontecimentos vividos. Devem-se lembrar as injustiças passadas só para que não se repitam, e devemos lembrá-las como perdoadas.

4. Renunciar à vingança

Uma vez que o perdão exprime a nossa liberdade, é possível também negarmos a alguém este dom. Durante a segunda Guerra Mundial o judeu Simon Wiesenthal conta num de seus livros suas experiências quando esteve preso nos campos de concentração. Um dia, uma enfermeira se aproximou dele e lhe pediu para segui-la. O levou a um quarto onde se encontrava um jovem oficial das SS que estava morrendo. Este oficial contou a sua vida ao preso judeu Simon Wiesenthal. Falou-lhe de sua família, da sua formação, e como chegou a ser colaborador de Hitler. Pesava-lhe especialmente um crime em que tinha participado: os soldados a seu mando, em certa ocasião, prenderam numa casa 300 judeus e depois os queimaram. Todos morreram.

“Sei que é horrível – diz o oficial-. Durante as longas noites que estou esperando a minha morte, sinto a grande urgência de falar com um judeu sobre isto e pedir-lhe perdão de todo coração”. Wiesenthal conclui seu relato dizendo: “De repente compreendi, e sem dizer uma única palavra, sai do quarto”. Outro judeu, que também estava por ali, disse: “Não, não vou perdoar nenhum dos culpados, não estou disposto agora nem nunca a perdoar nenhum deles”. Perdoar significa renunciar à vingança e ao ódio.

Existem, por outro lado, pessoas que renunciam à vingança porque nunca se consideram feridas. Não porque não queiram ver o mal e reprimam a dor, mas ao contrário: percebem as injustiças com objetividade, com toda a clareza, mas não deixam que elas as incomodem. “Mesmo que eles nos matem, eles não podem fazer-nos nenhum dano”, é um de seus lemas. Conseguiram um férreo domínio de si mesmos. A sua insensibilidade é a sua ironia. Sentem-se superiores aos outros e mantém interiormente uma distancia tão grande para com eles que ninguém pode mexer em seu coração. Como nada lhes afeta, não recriminam nada de seus opressores.

Que lhe importa à lua o latir de um cachorro? É a atitude dos estoicos e talvez também de alguns “gurus” asiáticos que vivem solitários na sua “magnanimidade”. Não se dignam olhar àqueles que, sem nenhum esforço, os absolvem. Não percebem a existência do “parasita”. O problema consiste em que, neste caso, não existe nenhuma relação interpessoal. Não se quer sofrer e, portanto, renuncia-se ao amor. Uma pessoa que ama faz-se sempre pequena e vulnerável. Encontra-se perto dos outros. É mais humano amar e sofrer muito ao longo da vida do que adotar uma atitude distante e superior aos outros. Quando a alguém nunca lhe dói a atuação do outro, é supérfluo o perdão. Não existe a ofensa e o ofendido.

5. Olhar ao agressor na sua dignidade pessoal

O perdão começa quando, graças a uma força nova, uma pessoa rejeita todo tipo de vingança. Não fala dos outros a partir de suas experiências dolorosas. Evita julgá-los e desvalorizá-los, e está disposta a escutá-los com o coração aberto.

O segredo consiste em não identificar o agressor e a sua obra. Todo ser humano é maior que a sua culpa. Um exemplo eloquente nos dá Albert Camus quando se dirige numa carta pública aos nazistas e fala dos crimes cometidos na França: “E apesar de tudo, continuarei a chamá-los de seres humanos… Esforçamo-nos em respeitar em vocês o que vocês não souberam respeitar nos outros”. Quem perdoa percebe que cada pessoa está acima dos seus piores erros.

Interessante é aquela história que se conta de um general do século XIX. Quando se encontrava no leito de morte, um sacerdote lhe perguntou se perdoava a seus inimigos. “Não é possível, respondeu o general. Mandei executar todos”.

O perdão de que se fala nestas linhas não consiste em saldar um castigo, mas antes de mais nada, numa atitude interior. Significa viver em paz com as recordações e não perder o apreço por ninguém. É possível também considerar um defunto tendo em conta a sua dignidade pessoal. Ninguém está completamente corrompido; em todos brilha uma luz.

Ao perdoar, dizemos a alguém: “Não, você não é assim. Sei quem é você! Na realidade você é muito melhor”. Queremos todo o bem possível para o outro, seu pleno desenvolvimento, sua alegria mais profunda e no esforçamos por amá-lo do fundo do coração, com grande sinceridade.

II. Que atitudes nos dispõem a perdoar?

Depois de esclarecer, a grandes traços, em que consiste o perdão, consideremos algumas atitudes que nos dispõem a realizar este ato de perdoar, que nos liberta também dos outros.

1. Amor

Perdoar é amar intensamente. O verbo latino “per-donare” o exprime com muita clareza: o prefixo “per” intensifica o verbo que acompanha: “donare”. É dar abundantemente, entregar-se até o extremo. O poeta Werner Bergengruen diz que o amor se prova na fidelidade e se completa no perdão. Porém, é muito difícil amar quando nos ofendem com gravidade. É necessário, num primeiro passo, separar de algum modo o agressor, ainda que seja só interiormente. Enquanto a faca estiver na ferida, ela nunca se cicatrizará. É preciso retirar a faca, adquirir distância, só então poderemos ver seu rosto. Certo desprendimento é condição prévia para poder perdoar com todo o coração, e dar ao outro o amor que precisa.

Uma pessoa só pode viver e desenvolver-se de forma sadia quando é aceita tal como é, quando alguém a quer de verdade e lhe diz: “É bom que você exista”. Faz falta não só você “estar aqui”, na terra, mas também ser afirmada no ser para se sentir feliz no mundo, para que seja possível adquirir certa estima própria e ser capaz de relacionar-se com os outros através da amizade. Neste sentido tem-se dito que o amor continua e aperfeiçoa a obra da criação. Amar uma pessoa significa torná-la consciente de seu próprio valor, de sua própria beleza.

Uma pessoa amada é uma pessoa que você diz: “que bom que você existe”! e, ao mesmo tempo ela nos diz: “preciso de você, do teu amor, para ser eu mesmo!”.

Deste modo, se não perdoo o próximo, se não mostro o meu amor por ele, de alguma maneira lhe tiro o espaço para viver e desenvolver-se sadiamente. Encontrará dificuldades para alcançar seus ideais e conseguir sua autorrealização. Por outras palavras, e falando num sentido espiritual, de alguma maneira, conduzo-o à morte espiritual. Pode-se matar, realmente, uma pessoa com palavras injustas e duras, com pensamentos maus ou, simplesmente, negando-lhe o perdão. Certamente cairá na tristeza e na amargura. Kierkegaard fala da “desesperação daquele que, desesperadamente, quer ser ele mesmo”, mas não chega a sê-lo porque os outros lhe impedem.

Se, por outro lado, concedemos o perdão, ajudamos o próximo a voltar à própria identidade, a viver com uma nova liberdade e com uma felicidade mais profunda.

2. Compreensão

É preciso compreender que cada pessoa precisa de mais amor do que “merece”. Cada pessoa é mais frágil do que parece. Todos somos frágeis e podemos afundar-nos. Perdoar é ter a firme convicção de que, por trás de qualquer mal, em cada pessoa existe um ser humano frágil, mas capaz de mudar. Perdoar significa crer na possibilidade de transformação e de evolução dos outros.

Se uma pessoa não perdoa é possível que seja por levar os outros demasiado a sério ou por exigir muito deles. Porém, “tomar perfeitamente a sério um homem, significa destrui-lo” adverte o filósofo Robert Spaemann. Todos somos frágeis e frequentemente falhamos. E muitas vezes não somos conscientes das consequências dos próprios atos: “Não sabemos o que fazemos”. Quando, por exemplo, uma pessoa está aborrecida, fala coisas que, no fundo, não pensa nem quer dizer. Se a levar completamente à sério em cada minuto do dia e começar a “analisar” o que ela diz quando está com raiva, poderei causar conflitos sem fim. Se levarmos em conta todas as falhas dessa pessoa, acabaríamos transformado-a num monstro, mesmo sendo uma pessoa encantadora.

Temos que acreditar nas capacidades dos outros e fazê-los perceber que acreditamos. Às vezes impressiona ver como se pode transformar uma pessoa. Como muda uma pessoa quando é tratada com confiança e segundo o melhor conceito que dela tenhamos.  Há muitas pessoas que sabem animar os outros a serem melhores. Comunicam-lhes a segurança de que há dentro delas muito de bom e belo, apesar de todos os seus erros e quedas. Atuam segundo o que diz a sabedoria popular: “se quiseres que os outros sejam bons, trata-os como se já o fossem”.

3. Generosidade

Perdoar exige um coração misericordioso e generoso. Significa ir além da justiça. Há situações tão complexas nas quais a simples justiça se torna impossível. Quando algo foi roubado, devolve-se e pronto. Quando algo foi quebrado, conserta-se ou substitui-se o quebrado. Mas, e se alguém perde algo mais serio: um membro, um familiar ou um bom amigo? É impossível restitui-lo com justiça. Justamente aí, onde a restituição é incapaz de saldar a perda, é onde tem espaço o perdão.

O perdão não anula o direito, mas o excede infinitamente. Às vezes não existe solução justa no mundo exterior. Mas, pode-se mitigar, pelo menos, o dano interior, acompanhando-o de carinho, de ânimo ou de consolo. “Persuadi-vos de que unicamente com a justiça nunca resolvereis os grandes problemas da humanidade – afirma São Josemaría Escrivá -. A caridade tem que ir dentro e ao lado porque adoça tudo”. E São Tomás resume: “A justiça sem misericórdia é crueldade”.

O perdão trata de vencer o mal com abundância de bem. É por natureza incondicional, pois é dom gratuito que provém do amor sempre imerecido. Isto significa que quem perdoa não exige nada de seu agressor, nem sequer que sinta dor pelo que fez. Antes, muito antes do agressor buscar a reconciliação, quem ama já perdoa.

O arrependimento do outro não é condição necessária para o perdão, embora seja conveniente. É, com certeza, muito mais fácil perdoar quando o outro pede perdão. Mas às vezes é necessário compreender que naqueles que fazem o mal podem existir bloqueios que lhes impedem admitir sua culpabilidade.

Há um modo “impuro” de perdoar: quando se fazem cálculos, especulações e se colocam metas. ”Eu perdoo você para que tome consciência da barbaridade que fez. Perdoo-o, a fim de que melhore”. Pode-se pensar até que se busquem fins educativos ou louváveis, mas neste caso não se trataria do verdadeiro perdão, pois o perdão deve ser concedido sem nenhuma condição, da mesma forma que o amor autêntico. “Perdoo-te porque, apesar de tudo, te amo.

Posso perdoar o próximo inclusive sem que o saiba, quando o outro não irá entender o perdão.  Seria um presente que lhe faria, mesmo que não se enteirasse ou não soubesse o porquê.

4. Humildade

É necessária prudência e delicadeza para descobrir como mostrar ao próximo o perdão. Às vezes não é aconselhável fazê-lo logo, se a outra pessoa ainda estiver sensível. Poderia parecer-lhe uma vingança oculta, talvez se sinta mais humilhada e aborrecida. De fato, oferecer a reconciliação pode ter um caráter de acusação. É possível que por trás do perdão se esconda uma atitude farisaica: demonstrar que tenho razão e sou generoso. O que impede, nesse caso, de haver harmonia, não é a de perdão, mas a própria arrogância.

Por outro lado, oferecer o perdão é sempre arriscar, pois este gesto não garante a boa recepção e pode incomodar o agressor em qualquer momento. “Quando alguém perdoa, se entrega ao outro, ao seu poder, e se expõe ao que o outro imprevisivelmente possa fazer e dá-se-lhe a liberdade de ofender e de ferir no futuro”. Aqui se vê que é necessária a humildade para buscar a reconciliação.

Quando for oportuno, talvez depois de um longo período de tempo, convém ter uma conversa com quem se sentiu ofendido. Nela se pode dar a conhecer os próprios motivos e razões, o próprio ponto de vista; e se devem escutar atentamente os seus argumentos. É importante escutar até o fim e esforçar-se por captar também as palavras não ditas. De vez em quando é necessário “trocar de posição”, pelo menos mentalmente, e tratar de ver o mundo desde a perspectiva dos outros.

O perdão é um ato nobreza e não de vontade inflexível. É um ato humilde e respeitoso para com o próximo e não de domínio e humilhação. Para que seja verdadeiro e “puro”, quem perdoa deve evitar até o menor sinal de uma “superioridade moral” que, em principio, não existe. Não somos capazes de julgar o que se esconde no coração dos outros. Nas conversas deve-se evitar acusar o agressor. Aquele que demonstra a própria indefectibilidade, não oferece realmente o perdão. Enfurecer-se pela culpa do outro pode conduzir com facilidade ao obscurecimento da própria culpa, se houver. Devemos perdoar como pecadores que somos, não como justos, já que o perdão é mais para compartilhar (estando no mesmo nível) do que para conceder (estando num nível superior).

Todos precisamos do perdão, porque todos fazemos mal aos demais, mesmo que por vezes não reparemos nisso. Precisamos do perdão para desfazer os nós do passado e recomeçar. É importante que cada pessoa reconheça a própria fraqueza, as próprias falhas, que, talvez, levaram os outros a um comportamento ruim. Não duvide em pedir sempre o perdão aos demais.

5. Abrir-se à graça de Deus

Não podemos negar que a exigência do perdão chega em algumas ocasiões ao limite das nossas forças. É possível perdoar alguém que tenha nos prejudicado seriamente e ainda por cima não peça perdão e continue a nos prejudicar? Talvez nunca seja possível perdoar de todo o coração se contamos apenas com as forças humanas.

Mas um cristão nunca esta só. Pode contar em cada momento com a ajuda poderosa de Deus e experimentar a alegria de ser amado por Ele. O próprio Deus nos declara seu grande amor: “Não temas, que eu te chamei pelo teu nome. Tu es meu. Se mergulhas nas águas, eu estou contigo;  se transbordarem os rios, não te inundarão… Você  é precioso aos meus olhos, muito estimado. Eu te amo”.

Um cristão pode experimentar sempre a alegria de ser perdoado por Deus. Os pecados tocam a raiz do nosso ser: afetam a nossa relação com Deus. Se nos estados totalitários as pessoas que – na opinião das autoridades – se “desviaram”, são lançadas nas cadeias ou internadas em clínicas psiquiátricas, no Evangelho de Jesus Cristo, por outro lado, são convidadas a uma grande festa: a festa do perdão. Deus sempre aceita a o nosso arrependimento e nos convida à conversão. Sua graça efetua uma profunda transformação em nós: liberta-nos da corrupção interior e sara as nossas feridas.

Sempre é Deus quem ama primeiro e é Ele quem nos perdoa em primeiro lugar. É Deus quem nos dá as forças para cumprir com este mandamento cristão que é provavelmente o mais difícil de todos: amar os inimigos e perdoar aos que nos fazem o mal. Mas, no fundo, não se trata tanto de uma exigência moral – como Deus te perdoou, você deve perdoar os outros- mas de um imperativo existencial, para encontrar a paz.

Apesar disso, o perdão faz parte da identidade do cristão, de imitar Cristo que sempre perdoa. Por este motivo, todos os seguidores de Cristo não dexem de olhar para seu Mestre e encontrar inspiração. Olhando para Cristo os cristãos souberam ao longo da história transformar as tragédias em vitórias.

Com a graça de Deus, também nós podemos encontrar o sentido de termos sido ofendido e das injustiças que fomos objeto. Nenhuma experiência é em vão. Muito pelo contrário, sempre podemos apreender algo. Também quando nos surpreende uma tempestade ou devemos suportar o frio ou o calor.

Sempre podemos aprender algo que nos ajude a compreender melhor o mundo, os outros ou a nós mesmos. Gertrud von Le Fort diz que “não só o dia claro, mas também a noite escura tem seus milagres”. “Existem certas flores que só se encontram nos desertos. Há estrelas que só podem ser vistas no escuro. Há algumas experiências do amor de Deus que só se vivem quando nos encontramos no mais completo abandono, quase no limite da desesperança”.

Reflexão final

Perdoar é um ato de fortaleza espiritual, um ato libertador. É um mandamento cristão e é muito mais que um grande alívio. Significa optar pela vida e agir com criatividade.

Contudo, não parece adequado sugerir comportamentos às vítimas. É compreensível que uma mãe não possa perdoar imediatamente ao assassino do seu filho. É necessário dar-lhe o tempo que precisar até conseguir que perdoe. Se alguém a acusasse de rancorosa ou vingativa, aumentaria sua ferida. São Tomás de Aquino, o grande teólogo da Idade Média, aconselha àqueles que sofrem, entre outras coisas, que não quebrem a cabeça com argumentos racionais, nem ler ou escrever. Devem antes tomar um banho, dormir e falar com um amigo. Num primeiro momento, geralmente, não somos capazes de aceitar uma grande dor. Necessitamos tranquilizar-nos. Pode ajudar-nos muito seguir o ritmo da natureza. Só uma pessoa pouco inteligente poderia se escandalizar com estes conselhos.

Perdoar pode ser um trabalho interior autêntico e duro. Mas, com a ajuda de bons amigos e, sobretudo, com a ajuda da graça divina, é possível realizá-lo. “Com meu Deus salto os muros”, canta o salmista.

Se conseguirmos criar uma cultura do perdão, poderemos construir juntos um mundo habitável, onde haverá mais vitalidade e fecundidade. Poderemos projetar juntos um futuro realmente novo. Para terminar estas linhas, podem nos ajudar estas sábias palavras:

Quer ser feliz por um momento? Se vingue-se. Quer ser feliz para sempre? Perdoe.

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