Bíblia: convém ler a Escritura Sagrada?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 4/1958)

“Afinal de contas, convém ou não ler e mandar ler a Sagrada Escritura? Certas páginas do Antigo Testamento não se poderiam tornar nocivas?”

“Afinal de contas, convém ou não ler e mandar ler a Sagrada Escritura? Certas páginas do Antigo Testamento não se poderiam tornar nocivas?”

Não há dúvida, a leitura das Sagradas Letras merece ser amplamente fomentada. E por quê?

1) A Sagrada Escritura é, por definição, o Livro ins­pirado por Deus (isto não quer dizer que Deus tenha revela­do aos autores bíblicos verdades novas, mas, sim, que ilumi­nou a mente dos mesmos a fim de que, aludindo aos ele­mentos deste mundo segundo o modo de pensar e falar dos orientais antigos, transmitissem fielmente verdades reli­giosas).

A Sagrada Escritura é, por conseguinte, a palavra de Deus tornada palavra do homem, fazendo eco ao mistério da Encarnação, pelo qual Deus se uniu à natureza humana. Tal prerrogativa compete somente à Bíblia, ficando to­dos os demais escritos, os mais piedosos e eruditos, aquém dessa dignidade; os santos e doutores escreveram bem por­que se nutriram copiosamente da Sagrada Escritura.

A mencionada prerrogativa faz que a Bíblia seja um sa­cramental, isto é, objeto sagrado que comunica a graça a quem o usa com fé e amor a Deus. Disto se segue importan­te conclusão: a leitura do livro sagrado é frutuosa, não exa­tamente na medida em que o entendemos com nossa capa­cidade natural, mas na medida da fé e das disposições sobre­naturais com que lemos. Há inegavelmente trechos obs­curos na Bíblia: torna-se então oportuno perscrutar o seu significado mediante o uso de comentários e estudos, mas, mesmo que não se possa fazer isto ou não se che­gue à plena compreensão, não fica vã a leitura da Bíblia, pois tais passagens santificarão sempre o cristão que as ler com espírito de fé e piedade, procurando entrar em comu­nhão com a Palavra e a Vida de Deus. É São João Crisós­tomo († 407) quem ensina:

“Quem se entrega a uma leitura atenta (dos santos Evangelhos) é como que introduzido num templo sagrado, é iniciado nas coisas de Deus; purificado, torna-se melhor, pois Deus lhe fala por aqueles escritos.

Que acontecerá, dizem, se não entendemos o que os livros (sa­grados) contêm? Mesmo que não compreendas o que neles está de­positado, lucras grande santificação pela leitura mesma. . .

Se nem pela assiduidade da leitura chegares a compreender o que está escrito, procura alguém mais sábio, vai ter com um mestre… manifesta teu grande desejo. Quando Deus te vir movido por tão ardente anelo, não desprezará tua vigilância e solicitude; e, ainda que não haja homem capaz de te explicar o que procuras, Ele mesmo certamente o revelará a ti. Lembra-te do eunuco da rainha da Etió­pia (cf. At 8, 30s) …

É impossível, é impossível, digo, que alguém fique sem fruto se se dá zelosamente à leitura atenta e freqüente das Escrituras” (De Lázaro, serm. 3,2s) .

2) A autoridade dos Sumos Pontífices, corroborando es­tas idéias, tem mais e mais recomendado a leitura da Bíblia. Eis como se exprimia S. S. o Papa Pio XII na encíclica “Di­vino Afflante Spiritu”:

“Surge espontânea a convicção de que os fiéis e particularmente os sacerdotes têm o grave dever de aproveitar larga e santamente aquele tesouro (da exegese católica) acumulado durante tantos sé­culos pelos maiores talentos. Deus não deu aos homens os Livros Santos para satisfazer a sua curiosidade ou para lhes fornecer ma­téria de estudo e investigação, mas… para que estes divinos orá­culos nos pudesse ‘instruir para a salvação pela fé em Jesus Cristo’ (cf. 2 Tim 3,15) . Portanto os sacerdotes que por ofício devem procurar a eterna salvação dos fiéis, depois de terem estudado dili­gentemente as sagradas páginas e as terem assimilado com a oração e meditação, distribuam com o devido zelo nos sermões, homilias e práticas as celestes riquezas da Divina Palavra; confirmem a doutri­na cristã com sentenças dos Livros Santos, ilustrem-na com os preclaros exemplos da História sagrada, nomeadamente do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo; e tudo isto — evitando diligente e escrupulosamente as acomodações arbitrárias e estiradas, verdadeiro abuso e não uso da Divina Palavra; exponham-na com tal facúndia e clareza, que os fiéis não só se movam e afervorem a melhorar a pró­pria vida, mas concebam suma veneração para com a Sagrada Escri­tura”.

Já Bento XV recomendava em 1920:

“Quanto a Nós, conforme o exemplo de São Jerônimo, nunca dei­xaremos de exortar todos os fiéis cristãos a que, em leitura diária, re­volvam principalmente os sacrossantos Evangelhos de Nosso Senhor, os Atos dos Apóstolos e as Epístolas, e a que os procurem assimilar ao seu próprio sangue” (ene. “Spiritus Paraclitus”).

Vê-se neste trecho como o Sumo Pontífice insinua um paralelo entre a comunhão eucarística e a comunhão com a Palavra de Deus; assimilando as verdades contidas na Bí­blia, o cristão fiel assimila, sim, a Vida Eterna.

A leitura da Bíblia foi mesmo enriquecida de indul­gências:

“Aos fiéis que, ao menos durante um quarto de hora, lerem como leitura espiritual os livros da Sagrada Escritura com a suma venera­ção que se deve à Palavra de Deus, é concedida a indulgência de 300 dias” (S. Penitenciaria Apost., 22 de março de 1932).

Mas dir-se-á: a Bíblia contém narrativas que obviamente são pouco edificantes, podendo tornar-se mesmo nocivas a pessoas simples.

— Não se afirmará que a Bíblia só contém histórias de homens virtuosos, à semelhança de certas “Vidas de Santos” modernas; nem foi para nos dar um repertório de casos edi­ficantes que o Espírito Santo se dignou inspirá-la. Não se­rá, pois, com a preocupação de ler exemplos de virtude hu­mana que abordaremos o texto sagrado. Outra deverá ser a nossa atitude, a qual decorrerá das seguintes considerações:

A Bíblia quer narrar a história das relações dos homens com Deus, fazendo tudo convergir para a idéia do Messias ou Redentor. Ora os homens com os quais o Senhor quis entrar em intercâmbio mais íntimo (isto é, o povo de Israel, desti­nado a guardar fé monoteísta em meio ao politeísmo), se comportaram sempre como homens, filhos de Adão ou do pe­cador, inclinados ao mal, à infidelidade mais ou menos gros­seira. Deus não quis corrigir instantaneamente essa nature­za desregrada dos homens, por mais elevadas que fossem as tarefas a eles (Abrão, Isaque, Jacó, Davi, Salomão…) con­fiadas; permitiu simplesmente que o homem “reagisse” aos dons de Deus como podia, isto é, sem evitar as falhas e os es­cândalos decorrentes da miséria humana. Contudo, permitin­do isto, Deus quis sempre mostrar-se “maior do que o mesqui­nho coração humano” (cf. 1 Jo 3, 20); onde a miséria abun­dava, a misericórdia superabundava (cf. Rom 5,20); assim a Bíblia nos apresenta a história do homem que destrói e de Deus que reconstrói pacientemente a sua obra. Não é, pois, no aspecto sinistro, humano, das narrativas bíbli­cas que devemos fixar a nossa atenção; tal aspecto consti­tui apenas o fundo sobre o qual mais deve sobressair a Bon­dade magnânima do Criador; e é a esta que o cristão deve considerar e admirar em qualquer das páginas “escandalo­sas” do Antigo Testamento. — O Espírito Santo, não enco­brindo tais episódios, tinha unicamente em mira mostrar-nos mais o contraste entre a grandeza de Deus e a peque­nez do homem que o Redentor veio salvar. A indignidade da parte das criaturas (mesmo das que são chamadas às mais elevadas funções no Reino de Deus) não nos deve sur­preender, mas o que surpreende é, sem dúvida, a condescen­dência, a caridade inesgotável do Senhor para com a sua criatura. Estendidas desta forma (que é a única autêntica), também as passagens aparentemente mais escabrosas da Es­critura dão seus frutos de edificação e união com Deus. Sai­ba, pois, o cristão colocar-se nesta perspectiva e já não hesi­tará em ler o Livro sagrado; olhe para Deus e a obra da mi­sericórdia mais do que para o homem e o seu pecado. E es­teja sempre lembrado de que não terá sido por pouca coisa que Deus se quis “abalar”, inspirando as páginas da Bíblia.

Do que foi dito se depreende que não seria consentâneo com o Espírito de Deus querer restringir a leitura da Sagrada Escritura ao Novo Testamento apenas; também as páginas do Antigo Testamento foram inspiradas para proveito e consolo dos cristãos que as leiam à luz das idéias acima in­dicadas (cf. Rom 15,4). De resto, não há quem leia com en­tendimento os Evangelhos ou São Paulo e não se sinta impe­lido a procurar conhecer no Antigo Testamento o fundo dou­trinário e histórico do qual depende qualquer página do Cristianismo.

Esclarecimentos mais pormenorizados sobre textos difí­ceis do Antigo Testamento, podem-se encontrar no livro de E. Bettencourt, Para entender o Antigo Testamento. Edi­tora AGIR 1956.