(Revista Pergunte e Responderemos, PR 428/1998)
Em síntese: A clonagem ou reprodução sem o concurso do elemento masculino é lícita quando se trata de animais infra-humanos e vegetais. Merece séria reprovação na medida em que pretende atingir a pessoa humana; esta se reproduz em função do amor, de um ideal de vida e uma doação comprometida de homem e mulher. Tal é a lei da natureza, que é lei do Criador, e não pode ser violada sem graves conseqüências para a própria humanidade. Nem mesmo a alegação de que a clonagem poderá ser útil à medicina, coonesta tal processo, pois o fim não justifica os meios; não se pode manipular a genitalidade humana (o que é um mal) para obter alguma finalidade boa.
O ser clonado, se tiver autênticas características de ser humano, terá alma humana, pois não há homem verdadeiro sem alma intelectiva
O Dr. Silvio VaIle, médico veterinário, chama a atenção para os aspectos de marketing que acompanham o alarido acerca da clonagem.
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Está na ordem do dia o tema “clonagem” com suas implicações de ordem biológica e ética. As páginas subseqüentes abordarão o assunto, levando em conta as questões que o público geralmente levanta.
Antes do mais, impõe-se sumária explanação do que seja a clonagem.
1. Clonagem: de que se trata?
Distingamos a clonagem simplesmente dita e a clonagem transgênica.
1.1 Clonagem simplesmente dita: a ovelha Dolly
Este tipo de experiência consiste em reprodução de um vivente sem o concurso de elemento masculino ou unicamente a partir do feminino. Sumariamente pode ser assim descrita:
O cientista serve-se de uma ovelha A, da qual extrai uma célula da glândula mamaria.
De outra ovelha, B, são retirados óvulos não fecundados.
A célula da glândula mamaria é cultivada em laboratório e o seu núcleo é extraído.
Do óvulo da ovelha B se retira o núcleo ou genoma, que contém a informação genética.
Faz-se a fusão entre o núcleo da glândula mamaria da ovelha A e o óvulo (sem núcleo) da ovelha B.
Tratado quimicamente, o óvulo desenvolve-se até o estágio de embrião. Através de descarga elétrica, o processo de divisão celular é iniciado.
Uma terceira ovelha, C, recebe o embrião desenvolvido.
Após o período normal de gestação, a ovelha C dá à luz uma ovelha Dolly, geneticamente idêntica à ovelha A.
Em teoria o processo é claro. Na prática é difícil e dispendioso. A muito custo, o Prof. Ian Wilmut, escocês, funcionário da empresa inglesa de Biotecnologia PPL Therapeutics, conseguiu êxito na realização da experiência. O próprio Dr. Ian Wilmut explicou que só foi bem sucedido na 227ª tentativa; diz-se porém, que tentou mais de oitocentas vezes para chegar ao resultado almejado.
1.2 Clonagem transgênica: a ovelha Polly
A ovelha Polly foi produzida segundo o processo que gerou a Dolly, com a diferença de que foi enxertado no material genético um gene humano. A ovelha daí resultante é transgênica; produz leite com proteína humana, de valor terapêutico. Esta experiência é muito mais ousada do que a anterior e, como dizem os pesquisadores, tem mais importância porque suas aplicações terapêuticas serão de grande alcance.
A imprensa tem acenado à possibilidade de, em futuro próximo, aplicar-se a clonagem ao ser humano, de modo que poderia haver pessoas produzidas em série, portadoras dos mesmos caracteres genéticos. Como se compreende, tais notícias tem suscitado polêmica e temores desde o dia 24 de fevereiro, quando os pesquisadores apresentaram à imprensa internacional a ovelha Dolly. Os próprios escoceses que produziram Dolly, afirmam dominar a tecnologia para clonar seres humanos, mas garantiram que não fariam a experiência. Como quer que seja, os legisladores de vários países têm-se movido no intuito de ditar limites à manipulação de seres humanos por parte de cientistas.
Pergunta-se agora:
2. Que dizer no plano ético?
A Moral católica não pode deixar de refletir sobre o assunto e propor as seguintes ponderações:
2.1. Em seres infra-humanos
Na discussão que se trava, impõe-se a distinção entre clonagem em animais irracionais e clonagem em seres humanos. A primeira é lícita, pois o animal não tem personalidade, não tem amor comprometido, não constitui família, É movido pelo instinto em suas funções reprodutoras. Donde se segue que, se ao homem é lícito matar um animal para consumir a sua carne, será lícito também clonar o irracional (inclusive o vegetal), atendendo a finalidades de abastecimento e terapêutica.
Assim à produção da ovelha Dolly não há objeção a fazer, contanto que se limite estritamente ao plano do irracional, sem envolver genes humanos (como aconteceu no caso da ovelha Polly transgênica). A produção de ovelhas transgênicas viola as leis da natureza, pois recorre á hibridação, mesclando elementos humanos com os do animal infra-humano – o que derroga à dignidade do ser humano.
2.2. No ser humano
A qualificação ética da aventada clonagem humana é negativa. Trata-se de intervenção no processo generativo do homem que viola radicalmente as leis da natureza, que são as leis do Criador. Mais precisamente:
1) A reprodução humana está ligada ao amor, a um ideal de vida, à doação mútua de homem e mulher, que se concretiza na prole. A genitalidade humana tem grandeza e nobreza singulares, de tal modo que não se pode tratar a semente vital humana como se tratam produtos de laboratório.
A Congregação para a Doutrina da Fé publicou a Instrução Donum Vitae (O Dom da Vida) datada de 22/2/1987, em que aborda os processos de fecundação artificial de maneira global. Lembra, em seus n° 3 e 4, que a pessoa humana, embora conste de um corpo constituído por tecidos e órgãos, como o dos demais animais, não pode ser tratada como estes. De modo especial, a procriação humana está ligada a valores que não se encontram em nenhum outro vivente criado. A corporeidade no homem está integrada num conjunto que também é espiritual; em conseqüência, quem toca o corpo, toca a pessoa com seus aspectos espirituais e transcendentais; criado à imagem e semelhança de Deus, o homem é chamado a se realizar plenamente em Deus. Isto quer dizer que nenhum biólogo ou médico pode, em nome da ciência, decidir sobre a origem e o destino dos homens. É lícito, sim, ao cientista instituir suas pesquisas genéticas desde que guarde sempre o respeito à pessoa humana (n° 3).
– Os critérios morais para se julgarem as novas experiências são dois:
a) a vida do ser humano não é apenas o resultado de reações físico-químicas, mas é o patrimônio de alguém chamado à eternidade;
b) a transmissão da vida humana foi, pela natureza, associada ao amor conjugal, que é sempre pessoal e consciente; por conseguinte, não deve ser realizada fora do contexto conjugal (n° 4).
2) Com outras palavras ainda: toda derrogação às leis da natureza humana provoca a réplica da própria natureza. Tenha-se em vista, entre outros casos, o da pílula anticoncepcional, que sofre contra-indicações reconhecidas pela medicina. Para viver sadiamente, o ser humano não pode deixar de observar as leis do seu organismo relativas ao regime de alimentação, de respiração, de repouso…; ora entre essas leis está também a que rege a genitalidade humana; não pode ser violada sem que graves conseqüências, cedo ou tarde, daí decorram.
3) Estas considerações são reforçadas pela prospectiva do que poderá acontecer se a ciência não for orientada pela consciência ética. A volúpia da conquista pode obcecar o cientista e empolgá-lo, a ponto tal que a ciência se volte contra o homem, em vez de servir ao homem. Na verdade, a ciência e a técnica não são valores absolutos, mas estão a serviço da pessoa humana, subordinadas à Ética e aos direitos inalienáveis do ser humano. Daí as cautelas e medidas preventivas que o Governo de certos países está tomando a fim de garantir o autêntico papel da ciência na construção da sociedade humana.
4) Há quem queira defender as novas experiências em nome da terapêutica de certas doenças. – Em resposta, é preciso observar que o fim não justifica os meios; a manipulação genética chega a pensar em produzir embriões (autênticos seres humanos em formação) ou até fetos e bebês para deles extrair tecidos ou órgãos necessários para curar moléstias de adultos. Reduz-se assim o ser humano a mero produto bioquímico, que se produz, se utiliza e também se destrói de acordo com o pragmatismo da sociedade de consumo.
5) Colocam-se perguntas de ordem filosófica e religiosa:
a) O ser humano clonado será um homem genuíno, dotado de alma imortal, com seus sentimentos e sua consciência? Ou será um “humanóide”?
– Deve-se responder que, se o ser clonado tiver todas as características físicas do ser humano, terá alma humana imortal, com as suas potencialidades normais. Não existe verdadeiro homem sem alma humana. Esta será criada por Deus e infundida no ser resultante da combinação do núcleo com o óvulo; desde que haja autêntico embrião humano, há alma humana. O Criador se dignará dar alma a tal ser, como a dá aos fetos produzidos artificialmente em proveta.
b) A clonagem produzirá cópia carbono do ser clonado?
– Distinguimos no ser humano corpo e alma ou princípio vital. O corpo é produzido por via genética. A alma é criada por Deus para tal corpo singular, dotada de livre arbítrio. O corpo, sim, terá as características do ser clonado; a alma criada para esse corpo terá traços correspondentes à índole desse corpo; tudo no homem é psicossomático; corpo e alma se condicionam mutuamente; por isto se fala de temperamento sangüíneo, bilioso, melancólico, segundo uma terminologia antiga. Mas o livre arbítrio de tal alma poderá moldar a personalidade respectiva, configurando-a ao ideal de vida escolhido pelo indivíduo clonado; daí não se poder falar de “cópia carbono”. Até os gêmeos podem diferir entre si.
Seguem-se agora as ponderações de um médico veterinário.
3. Fala o médico
O Dr. Silvio Valle é médico veterinário, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz, onde coordena os Cursos de Biossegurança. Escreveu, com o Prof. Pedro Teixeira, o livro “Biossegurança”. Fez declarações à revista “Diálogo Médico”, ano 12, n° 4, julho/agosto 1997, pp.6-9, publicadas com o título: “Clonagem. Ainda bem longe dos seres humanos. Para especialista brasileiro, debate em torno do caso Dolly foi uma tempestade em copo d’água”. O Dr. Valle considera outro aspecto do caso Dolly, ou seja, a faceta de marketing, que, segundo S. Valle, está presente em todo o alarido que se faz em torno do assunto. Eis o que se lê no artigo citado:
“É melhor esquecer o tom apocalíptico com que boa parte da mídia tratou o caso Dolly, aquela simpática ovelha nascida das experiências do escocês Ian Wilmut, funcionário da empresa inglesa de biotecnologia PPL (cujas ações na Bolsa de Valores de Londres, diga-se de passagem, subiram 58% num espaço de apenas cinco dias após o anuncio da forma como o animal foi concebido, o que na Inglaterra significa uma fábula de dinheiro). Sílvio Valle chega a brincar, dizendo que às vezes tem a impressão de que o caso foi publicado na editoria errada dos jornais: em vez da seção internacional ou de ciências, deveria ter sido publicado na seção de economia.
O Dr. Valle comenta que, enquanto o mundo ficava perplexo diante do fato, as empresas de biotecnologia davam gargalhadas, claro, ao verem suas ações em alta. O próprio anúncio da experiência de Wilmut, diz ele, foi feito seguindo-se uma minuciosa e boa estratégia de marketing: primeiro, a publicação na revista ‘Nature’ e logo o posterior vazamento para os jornais ‘Le Monde’, na França, e ‘New York Times’, nos Estados Unidos. Lembrando que isso só aconteceu sete meses depois do nascimento de Dolly – tempo mais que suficiente para que o próprio Wilmut fosse muito bem instruído sobre o que falar. E, embora se diga que os lucros ficaram só nas mãos da PPL, isto não é verdade. Wilmut está com a agenda cheia até o final do ano e suas conferências estão custando entre 150 mil e 200 mil dólares…
Enfim, os cientistas, hoje, não são mais aqueles românticos de antigamente. Estão ligados a grandes grupos econômicos. Lógico que um pesquisador pode fazer a experiência que bem entender. Mas isso não significa que suas pesquisas vão vingar como um produto tecnológico. Aquela pesquisa só vai frutificar se contar com investimento e se transformar em produto”.
O Dr. Sílvio Valle considera os prognósticos:
“Wilmut diz que, se tentasse fazer o mesmo para a criação de um clone humano, as dificuldades seriam “abismalmente grandes”. Embora revistas de grande circulação tenham dito que a receita da clonagem é “assustadoramente simples”, a coisa não é bem assim.
– As dificuldades a que ele se referiu não incluem só a espécie humana, mas qualquer outra espécie. Os momentos para se fazer a coleta de um óvulo, por exemplo, variam. Os meios são diferentes, as situações também. A receita não é simples assim. O que existe é muito trabalho – comenta o Dr. Valle… Ainda que fosse possível se clonar amanhã uma pessoa com a mesma receita utilizada no caso Dolly, é bom lembrar que nem por isso deveríamos temer que cópias nossas saíssem perambulando por aí. Longe disso. A própria natureza faz clones, lembra o Dr. Valle: são os gêmeos univítelinos. Mas, mesmo aqueles criados na mesma casa, pelas mesmas pessoas, com a mesma alimentação e educação, apresentam temperamentos e inclinações distintos, como qualquer mãe está cansada de saber.
Ora: um bebê nascido de uma célula retirada de um adulto seria como um gêmeo. Mas as diferenças entre eles seriam ainda maiores. As influências do meio ambiente são enormes. E até do ponto de vista biológico, já que durante o desenvolvimento de dois gêmeos idênticos podem ocorrer mutações em um e não em outro. Com Dolly, algumas revistas criaram um ambiente de filme de terror e misturaram afirmações que confundem a cabeça dos leigos”.
As notícias e ponderações emitidas pelo Dr. Silvio Valle merecem atenção, pois se verifica que em nossos dias os interesses comerciais movimentam sub-repticiamente muitas iniciativas aparentemente inócuas ou isentas de comercialização.
Como se vê, a clonagem humana merece ser reprovada da parte não só da fé, mas também da parte dos pensadores que não se deixam levar por inversão de valores, mas reconhecem que a ciência está a serviço do homem e não o homem a serviço da ciência.