(Revista Pergunte e Responderemos, PR 382/1994)
Em síntese: A clonagem ou a reprodução assexual do ser humano mediante avanços da ciência contemporânea ameaça a dignidade do gênero humano, equiparando-o ao gado, e abre perspectivas de futuro sombrio. Requer-se, pois, que a ciência progrida, sem dúvida, mas não se desligue da consciência moral, para que não venham seus produtos a voltar-se contra a própria humanidade.
Alguns organismos legislativos já se têm manifestado contra a biotecnocracia, mas as suas normas ainda são tímidas e correm o perigo de ser solapadas pela ambição, do homem, de ser como um deus, dominando e manipulando o próprio homem ou fazendo do uso e abuso de embriões humanos uma fonte de lucro financeiro.
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As experiências em torno da genética humana vêm-se desenvolvendo em ritmo acelerado: fecundação artificial homóloga e heteróloga, fecundação em proveta, mãe de aluguel, escolha do sexo do nascituro… até chegar à mais recente modalidade de reprodução humana, que é a clonagem. Esta foi divulgada pela imprensa em 1993, suscitando alarmes e rebuliços, mas também provocando aplausos de numerosos observadores.
Examinaremos os fatos e, a seguir, lhes proporemos alguns comentários.
1. AS RECENTES EXPERIÊNCIAS
A palavra clone vem do grego klon, broto, gérmen. Em linguagem técnica, designa o indivíduo originário de outro por multiplicação assexual – o que pode ocorrer de duas maneiras:
a) por divisão de um embrião em duas ou três partes, dando um conjunto de seres iguais entre si por terem o mesmo patrimônio genético. Mais precisamente: realiza-se a fecundação do óvulo pelo espermatozóide fora do organismo materno; o embrião assim obtido começa a se desenvolver; quando atinge o estágio de oito a dezesseis células, é dividido em dois ou três segmentos. Estes são implantados no útero materno, onde se desenvolvem dando dois ou três indivíduos bigêmeos ou trigêmeos. Isto é possível porque as células do embrião, na primeira fase de seu desenvolvimento, conservam todo o seu potencial e, por conseguinte, quando separadas, cada qual produz um indivíduo. – Esta técnica tem sido praticada com animais domésticos, ou seja, para a multiplicação de cavalos de raça e de gado leiteiro.
b) a clonagem pode efetuar-se também por transferência, para dentro de uma célula devidamente preparada, de um núcleo de embrião; este imediatamente dá origem a outro embrião, dotado do mesmo patrimônio genético, autêntica “cópia carbono” do doador.
A clonagem praticada no reino vegetal e nos animais irracionais nunca suscitou oposição. Mas ultimamente foi realizada também no setor humano, como era de esperar e como já previam muitos cientistas. Com efeito; dois pesquisadores norte-americanos, o Prof. Jerry Hall, da George Washington University, e seu mestre, o Prof. Robert Stillman dividiram um embrião humano em três partes, que se foram desenvolvendo a ponto de formar três gêmeos… Acontece, porém, que, diante do fenômeno inédito, os dois cientistas houveram por bem extinguir a vida dos três indivíduos: Todavia, o horror causado na opinião pública pela experimentação de Hall e Stillmann não é suficiente para conter a têmpera conquistadora da ciência e da tecnologia; há quem veja vantagens na clonagem
– ou porque se implantaria um dos indivíduos em útero materno (talvez alugado), ao passo que o(s) outro(s) seria(m) congelado(s) para ser implantado(s) em útero materno anos mais tarde. Assim, o segundo e o terceiro indivíduos serviriam ao primeiro como doadores de órgãos e tecidos para restaurar a vitalidade do mais velho;
– ou porque uma das partes do embrião dividido seria examinada, a fim de se descobrir o respectivo sexo mediante o estudo dos cromossomos XY; caso tal sexo fosse do agrado dos experimentadores e das pessoas interessadas, a outra parte seria implantada em útero materno para tornar-se uma criança do sexo desejado. Caso o sexo não fosse do agrado, jogar-se-iam fora os segmentos do embrião e procurar-se-ia fazer outra experiência.
2. AS REAÇÕES
A clonagem praticada em animais infra-humanos suscitou a suspeita de que alguns pesquisadores tentariam realizá-la no próprio homem. Por isto, diversos organismos nacionais e internacionais baixaram normas a respeito. Assim, em 1986 o Conselho da Europa estudou uma proposta que proibia
“a criação de seres humanos idênticos mediante clonagem e outros métodos”.
A Resolução correspondente foi adotada pelo Parlamento Europeu em 1989.
Em 1990 o Parlamento Alemão aprovou uma lei que tornava ilícita a clonagem como crime sujeito à pena de cinco anos de reclusão.
Na Itália a Câmara dos Deputados aprovou em 1989 uma Resolução que impunha a suspensão de todas as experiências feitas em embriões. Em junho de 1993 foi aprovada outra Resolução, tendo à frente o deputado Gianni Mattioli, que obriga a Câmara a legislar vetando qualquer intervenção no embrião que não seja para fins terapêuticos em favor do próprio embrião. O presidente da Comissão Nacional de Bioética, Dr. Adriano Ossicini, definiu a clonagem como “um delírio de onipotência da ciência”.
Todavia, os protestos de autoridades governamentais são ameaçados de ineficácia não só por causa do frenesi de onipotência que tenta o homem, mas também em vista das vantagens financeiras e pragmáticas que a clonagem acarreta. Com efeito, esta permite ao médico e cientista dispor de maior número de embriões para implantação no útero feminino (da doadora do óvulo ou da mãe de aluguel); aumentam-se assim as possibilidades de sucesso da inseminação artificial. Ora esta, nos Estados Unidos, é praticada por muitas clínicas, que consideram a fecundação artificial como um grande negócio (business)!
3. E A ÉTICA?
Não somente a Moral católica, mas também a Ética filosófica levantam decidida recusa à clonagem e a todas as práticas ligadas à inseminação artificial. E isto por diversas razões:
1) Não se pode esquecer que o embrião já é autêntico ser humano, dotado dos direitos de verdadeira pessoa; a fecundação do óvulo pelo espermatozóide dá origem a um terceiro ser, que não é parte da mãe ou do pai. Embora o novo indivíduo não se possa manifestar plenamente em sua identidade, ele merece o respeito devido a qualquer pessoa. Por conseguinte, não se pode tratar o embrião humano como se trata o do gado; este é irracional, guiado pelo instinto, carece de um ideal de vida, ao passo que o ser humano tem a singular dignidade da inteligência e do amor.
2) A corrida das experiências científicas desenfreadas ameaça cada vez mais o gênero humano. Um legislador ditatorial ou um Estado totalitário, de posse dos recursos da ciência sem consciência ética, poderá conculcar a sociedade nacional e o consórcio das nações, pois chegará a definir sexo dos que terão direito de nascer, a cor de sua pele, de seus olhos, de seus cabelos, as dimensões de sua estatura, etc.
A Ética não é contrária ao progresso da ciência, mas ela ajuda o cientista a escalonar os valores. O progresso científico empolga o homem e desperta nele o senso da conquista sedutora; todavia, a satisfação deste anseio deve estar a serviço do homem; há de procurar tornar a vida dos homens e das nações mais nobre e digna, em vez de sacrificar o ser humano à ambição de alguns poucos, que desta maneira são endeusados. – A propósito, sejam citadas as palavras do Papa João Paulo na sua encíclica Veritatis Splendor:
“É preciso situar a raiz do totalitarismo moderno na negação da transcendente dignidade da pessoa humana, imagem visível de Deus invisível e, precisamente por isto, pela sua própria natureza, sujeito de direitos que ninguém pode violar” (nº 99).
3) Estamos diante de um novo tipo de … cracia, domínio e poder[1] da biotecnocracia. Esta pode recobrir-se da capa da eugenia ou da produção de indivíduos sadios e de boa estirpe. Uma nova forma de racismo pode assim dominar a sociedade humana.– Muito a propósito vem a advertência da Instrução Donum Vitae, da Congregação para a Doutrina da Fé (1987):
“As técnicas de fecundação in vitro podem abrir possibilidade a outras formas de manipulação biológica ou genética dos embriões humanos, tais como as tentativas ou projetos de fecundação entre gametas humanos e gametas animais e de gestação de embriões humanos em úteros de animais bem como a hipótese ou o projeto de construção de úteros artificiais para o embrião humano. Tais processos são contrários à dignidade de ser humano própria do embrião e, ao mesmo tempo, lesam o direito, de cada pessoa, de ser concebida e nascer no matrimônio pelo matrimônio. As tentativas ou hipóteses destinadas a obter um ser humano sem conexão alguma com a sexualidade, mediante fissão geme/ar, clonagem ou partenogênese, devem geralmente ser consideradas contrárias à Moral por se oporem à dignidade tanto da procriação humana como da união conjugal” (l Parte, n9 6).
4) A produção de seres humanos destinados a servir de doadores de órgãos e tecidos de reserva para outros seres humanos é iníqua e vil. Todos os homens têm os mesmos direitos; ninguém nasce para ser a caixa de reserva de outro homem.
5) Não toca ao homem decidir qual dos seus semelhantes (pequenos e indefesos) viverá ou não viverá. Nenhum ser humano, por mais poderoso que pareça, é dono da vida de outrem.
É, pois, para desejar que a legislação dos diversos países dê atenção aos fenômenos inéditos da biotecnocracia que, sorrateiramente, tende a se impor, movida por interesses de prepotência e de lucro financeiro. Verifica-se que, de modo geral, a vida do nascituro está desprotegida; o aborto é, quase em todos os países do mundo, autorizado; além do que, nada impede, no plano jurídico, os avanços do eugenismo e da biotecnocracia. Donde a observação da Instrução Donum Vitae:
“A autoridade civil é obrigada a assegurar à instituição familiar, sobre a qual se baseia a sociedade, a proteção jurídica a que ela tem direito. Pelo fato mesmo de estar a serviço das pessoas, a autoridade política há de estar também a serviço da família. A lei civil não poderá conceder a sua garantia àquelas técnicas de procriação artificial que, em benefício de terceiros (médicos, biólogos, poderes econômicos ou governamentais), subtraem o que constitui um direito inerente à relação entre os esposos e, por isto, não poderá legalizar a doação de gametes entre pessoas que não estejam legitimamente unidas em matrimônio.
Além disto, a legislação deverá proibir, em razão do apoio devido à família, os bancos de embriões, a inseminação post mortem e a maternidade substitutiva” (Parte III).
Os clamores da Ética, em nossos tempos, são bem justificadas por fatos recentes, como também por prognósticos sombrios, que justificam, mais do que nunca, a necessidade da restauração da consciência ética na humanidade contemporânea.
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NOTA:
[1] Kratos, em grego, significa poder.