(Revista Pergunte e Responderemos, PR 4/1987)
HAROLDO (Rio de janeiro):
“Como encarar, do ponto de vista religioso e moral, a prática moderna da inseminação artificial?”
Antes do mais, coloquemos o problema dentro do seu quadro histórico. Em 1780 o Professor da Universidade de Pavia, Pe. Spallanzani retirou dum cão algo do respectivo esperma e o injetou na vagina de uma cadela; esta, sessenta e dois dias mais tarde, dava à luz três cãezinhos de todo normais. Estava assim realizada a primeira inseminação artificial, com grande surpresa para uns, com notável escândalo para outros. Entusiasmado pela experiência, o naturalista de Genebra, Carlos Bonnet, sem demora escreveu a Spallanzani para lhe dizer que a descoberta poderia um dia ter aplicações importantes na propagação da espécie humana. Com efeito, em 1799 (ano da morte do cientista italiano), o cirurgião inglês Hunter, tratando pelo mesmo método uma de suas clientes, tornou-a fecunda.
Quase cem anos se deveriam seguir durante os quais se guardou silêncio sobre a prática da inseminação artificial. Em 1887, porém, o veterinário Repiquet lembrou-se de a utilizar para obter melhores raças de animais domésticos; seus trabalhos encontraram continuadores, que tornaram muito comum e explorada a fecundação artificial de animais: na Rússia, por exemplo, sob o impulso dos estudos de Cl. Ivanov obtiveram-se por tal via 150 milhões de cabeças de gado selecionado. Os sucessos alcançados com os irracionais chamaram a atenção dos médicos, desejosos de promover a eugenia e combater os inconvenientes da esterilidade na família humana, principalmente nos Estados Unidos da América. Em 1941 os médicos americanos Kerner e Seymour, pioneiros da nova prática, comunicaram ao mundo os resultados das experiências que haviam feito em 9580 casos humanos; os seus métodos, porém, muito famosos e aceitos na América, somente com reservas foram acolhidos na Europa.
A inseminação artificial difundindo-se, não podia deixar de suscitar numerosos casos de consciência, de perplexidade moral. Foi o que induziu o Santo Padre Pio XII a pronunciar-se sobre o assunto numa alocução dirigida em 29 de Setembro de 1949 ao IV Congresso Internacional dos Médicos Católicos. A palavra do Sumo Pontífice representa a mente da Igreja a respeito do problema:
“Não podemos deixar passar esta ocasião de indicar brevemente em suas grandes linhas o juízo moral que se impõe nesta matéria”.
1) A prática da fecundação artificial, uma vez que se trate do homem, não pode ser considerada nem exclusivamente, nem mesmo principalmente, do ponto de vista biológico e médico, deixando-se de lado o da Moral e do Direito.
2) A fecundação artificial fora do matrimonio é condenada pura e simplesmente como imoral. De fato, segundo a lei natural e a lei divina positiva, a procriação de nova vida não pode ser fruto senão do matrimônio. Só o casamento salvaguarda a dignidade dos esposos (principalmente da mulher no caso presente), dignidade que constitui um direito pessoal. De si, só o matrimônio provê ao bem e à educação da criança. Por conseguinte, divergência alguma de opinião é possível entre católicos sobre a condenação de uma fecundação artificial fora da união conjugal. O filho concebido nessas condições será, pelo fato mesmo, ilegítimo.
3) A fecundação artificial centro do matrimonio, mas produzida pelo elemento ativo de um terceiro, é igualmente imoral e, como tal, deve ser reprovada sem apelo. Só os esposos possuem direito recíproco sobre os corpos em vista da procriação de uma vida nova, direito exclusiva, incedível, inalienável. E isso deve ser assim, também em consideração da criança. A quem quer que dê a vida a um ser, impõe a natureza, exatamente em virtude desse laço, o encargo da sua conservação e educação. Ora entre o esposo legítimo e a criança, fruto do elemento ativo de um terceiro (ainda que com o consentimento do esposo), não existe laço algum de origem, laço algum moral e jurídico de procriação conjugal.
4)Quanto a liceidade da fecundação artificial no casamento, basta-nos por ora lembrar os seguintes princípios de Direito natural: o simples fato de ser atingido por essa via o resultado que se visa, não justifica o emprego do meio em si mesmo; nem o desejo, por si muito legítimo, dos pais de ter filhos é suficiente para provar a legitimidade do recurso à fecundação artificial, que realizaria esse desejo. Seria falso pensar que a possibilidade de recorrer a esse meio tornaria válido o matrimônio entre pessoas ineptas a contraí-lo em virtude do impedimento de impotência (para gerar).
Por outra parte, é supérfluo observar que o elemento ativo jamais pode ser conseguido licitamente por atos contrários a natureza.
Ainda que não se possa excluir de antemão novos métodos (ensinados pela ciência moderna) só pelo fato de serem novos, contudo, no que toca à fecundação artificial, não só se deve usar de extrema reserva, mas é necessário absolutamente reprová-lo. Assim falando, não se rejeita necessáriamente o emprêgo de meios artificiais destinados unicamente a facilitar o ato natural ou a fazer que o ato natural normalmente realizado atinja a sua finalidade.
Que ninguém o esqueça: só a procriação de uma vida nova segundo a vontade e o plano do Criador traz consigo, num grau esplêndido de perfeição, a consecução dos fins a realizar. Essa vontade é, ao mesmo tempo, conforme a natureza corporal e espiritual, à dignidade dos esposos, ao desenvolvimento normal e feliz da criança” (Acta Apostolicae Sedis XXXXI [1949] 559s).
É muito claro o pensamento do Santo Padre. As seguintes considerações poderão ajudar a focalizá-lo devidamente.
A função generativa do homem difere intrinsecamente da do irracional. Este, animado como é por um princípio vital material, não transcende a matéria nem as leis físico-químicas e biológicas que a regem (cf. “Pergunte e Responderemos” n° 3/1957, qu. 1). Por conseguinte, no tocante à multiplicação da espécie, pode ser tratado exclusivamente à luz dos critérios de seleção ou aperfeiçoamento das raças, rendimento econômico, correção da esterilidade, etc. A fecundação artificial dos irracionais vem a ser uma das atuações do domínio que Deus confiou ao homem sobre as criaturas inferiores; pode considerar-se uma das autênticas conquistas da ciência moderna. Diverso, porém, é o caso do homem: este, dotado de alma espiritual, está situado num plano superior; o funcionamento do seu organismo participa da dignidade do espírito que o anima. Ora todo espírito é dotado de inteligência e amor, que lhe dão a sua personalidade. Donde se segue que o próprio processo biológico da geração, no homem, obedece às exigências da inteligência e do amor. Não será lícito, portanto, tratar o esperma do homem à semelhança de um produto de laboratório, transponível de um tubo de ensaio para outro a fim de produzir melhor rendimento. O amor humano tende a se entregar a um consorte determinado e único, e somente na união com este é que, por lei da natureza, se torna permitido ao indivíduo procurar o complemento da sua personalidade; a intervenção de um terceiro na geração da prole vem a ser derrogação aos direitos da afetividade característica do homem; equivale ao menosprezo ou ao cancelamento da personalidade, o que em última análise significa oposição ao Autor da natureza ou a Deus.
Além disto, a função de gerar é, no homem, inseparável da de educar, formar até o fim a personalidade gerada. Ora esta outra tarefa é totalmente burlada no caso em que um terceiro sirva apenas de doador de esperma, desaparecendo depois de preencher o papel de “fornecedor”. Os mentores da inseminação artificial têm feito o possível para acentuar os papéis meramente biológicos, impessoais do doador: querem que ignore a identidade do casal ao qual fornece o “material”; nos Estados Unidos tem-se exigido que assine uma fórmula de consentimento, a fim de que não se possa queixar de abusos no tratamento do sêmen. ‘Ademais acontece que cada extração de esperma pode servir a numerosas inseminações, sendo que um só doador tem fornecido a matéria para vinte mil fecundações por ano…! Torna-se assim óbvio o perigo de se multiplicarem, principalmente nas sociedades padronizadas, os filhos de pai desconhecido, expostos a contrair uns com os outros matrimônios ilícitos e desastrosos (matrimônios entre irmãos, filhos ao menos do mesmo genitor).
Está claro que a prole que nasça de fecundação artificial é, em consciência e aos olhos de Deus, ilegítima, embora perante a sociedade se apresente como pai o esposo da genitora; não é o consentimento dado por este à intervenção de um terceiro que o torna pai legítimo.
Por último, deve-se frisar que a condenação da inseminação artificial não recai sobre os métodos que visam apenas favorecer e reforçar o processo natural de fecundação, sem o desviar nem mutilar.
Bibliografia:
Cahiers Laennec, II 1946: L’insémination artificielle. Biot, Offensives contre la personne. Ed. Spes. Carles, La fécondation. Presses universitaires de France. Heresias do nosso tempo, por um grupo de filósofos e cientistas italianos. Porto 1956, 229-32.