(Revista Pergunte e Responderemos, PR 445/1999)
Em síntese: Vai, a seguir, apresentado o problema da compra e da doação de semente vital humana. Tais práticas ferem a ética, pois ferem a lei natural, segundo a qual a reprodução humana se faz em conseqüência do amor de esposo e esposa. Ao homem não toca o direito de interferir no processo de reprodução como se fosse mero processo bioquímico; a sexualidade humana transcende os seus aspectos físicos, pois tem por sujeito pessoas que são chamadas à dignidade de filhos de Deus.
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Os avanços da Medicina desligados de concepções éticas podem ser nocivos à pessoa humana, em vez de a nobilitar. É o que se verifica quando se lê que há instituições prontas para receber óvulos doados ou mesmo comprados como se faria com o sêmen do gado. Manipula-se assim a semente vital humana, como algo de meramente físico-químico, sem se levar em conta a transcendência da sexualidade humana. A industrialização do sêmen humano é documentada pelas notícias que se seguem e às quais proporemos breve comentário.
1. O problema
1.1. Compra de sêmen humano
O jornal O GLOBO, edição de 17/01/99, p. 45 traz a seguinte notícia:
«CASAIS ESTÉREIS CRIAM MERCADO DE COMPRA DE ÓVULOS DE UNIVERSITÁRIAS COM BOAS NOTAS
– Anúncios em campus oferecem até US$ 7,5 mil a jovens inteligentes e bonitas.
WASHINGTON. Casais americanos sem filhos estão colocando anúncios em jornais dos diretórios acadêmicos das principais Universidades americanas, como Yale e Cornell, na esperança de que algumas estudantes lhes vendam os óvulos. O objetivo é usá-los para produzir bebês superinteligentes, por meio de procedimentos de fertilização in vitro. Já se foi o tempo em que casais estéreis desejavam simplesmente ter um bebê, qualquer bebê. Agora, eles procuram por óvulos que aumentem a chance de ter um filho com determinada cor de olhos, pele e cabelo, que alcance uma determinada altura e que seja de alguém brilhante o suficiente para obter sempre ótimas notas na Universidade.
Candidatos a pais querem produzir cientistas e artistas
Os anúncios freqüentemente sugerem as características que o casal gostaria de encontrar na vendedora dos óvulos, como dotes artísticos, sorriso contagiante ou sociabilidade. A procura por pais biológicos ideais chegou a um ponto que as pessoas compram óvulos na esperança de gerar um cientista genial ou um artista brilhante.
Anúncios publicados no “Yale Daily News” dizem: “Procuramos desesperadamente por uma pessoa generosa, inteligente, sensível e alegre” ou “Amável casal infértil procura uma mulher com compaixão, entre 21 e 31 anos, que possa nos ajudar a ter um bebê. Será maravilhoso se ela tiver mais de 1,70 metros, for branca, magra, possuir cabelos escuros, for inteligente e gentil. Embora nossa gratidão não possa ser medida em dólares, gostaríamos de que aceitasse US$ 7,5 mil, além do pagamento de todas as despesas com o procedimento”.
Outro anúncio publicado no mesmo jornal de campus de Yale afirma: “Procuramos pela seguinte doadora: uma moça com adoráveis olhos claros e grandes e sincero sorriso. Perspicácia e calor humano são desejáveis”.
Uma nova onda de publicidade também começa a aparecer nos jornais universitários, paga pela Options National Fertility Registry, uma empresa de Los Angeles. A empresa procura e oferece por doadores de óvulos com prova garantida de inteligência. “Informações sobre desempenho acadêmico de cada doadora podem ser obtidas, inclusive com as notas obtidas no ensino básico e secundário. Testes de inteligência podem ser conseguidos com o pagamento de uma taxa adicional”, diz a home-page da empresa para os candidatos a pais.
A empresa também oferece a seus clientes fotos das mulheres de sua lista de doadores, permitindo a eliminação, por exemplo, daquelas que tenham cabelo muito crespo, olhos muito próximos ou afastados, ou ainda aquelas cujo sorriso não seja o considerado ideal pelo casal.
Numa época em que fertilização in vitro e bebês de proveta já estão se tornando lugar-comum, cada vez mais mulheres acima dos 50 anos têm a chance de começar uma família. Isso, porém, fez a procura por óvulos de jovens saudáveis crescer muito, ainda que não exista a menor garantia de que os bebês herdarão alguma característica desejável de suas mães biológicas.
– O maior risco para os bebês de butique é que seus pais sejam infelizes com eles porque não nasceram com as características que desejavam – disse o bioeticista da Universidade de Nova York Daniel Callahan».
1.2. Doação de sêmen humano
O Hospital Israelita Albert Einstein de São Paulo emitiu o seguinte panfleto-convite:
«SÊMEN: VOCÊ JÁ PENSOU EM DOAR?
“Todo casal, quando inicia uma vida em comum, sonha em ter filhos, mas nem todos conseguem experimentar essa emoção. Cerca de 15% dos casais possuem algum tipo de dificuldade para alcançar a gravidez.
A medicina pode, entretanto, oferecer soluções para este tipo de problema e entre elas podemos mencionar a INSEMINAÇÃO HETERÓLOGA.
O que é?
Trata-se de inseminação com sêmen de um doador anônimo.
É complicado?
Não, é um procedimento realizado no mundo inteiro há mais de 30 anos e possibilita ao casal ter um filho. Isto ocorre porque o casal passa por todo o processo de gestação. A inseminação é um segredo deles.
É seguro?
Sim, o Banco de Sêmen seleciona candidatos entre 18 e 40 anos, saudáveis, que passam por uma rigorosíssima triagem para as mais freqüentes doenças detectáveis.
E a escolha do sêmen?
Para que o futuro bebê seja parecido com o ‘pai’, o sêmen é selecionado de um doador semelhante ao mesmo, inclusive com grupo sangüíneo compatível.
É ético?
Sim, o Conselho Regional de Medicina de São Paulo, através do parecer de número 1.756/89-SPR, expediente 24.264/88, considerou que, se as partes estiverem cientes e de acordo com as finalidades do processo, a inseminação heteróloga é considerada um procedimento ético.
E o doador?
Além de ajudar um casal a realizar-se, o doador recebe uma avaliação completa de seu estado de saúde, incluindo exame físico, sorológico e espermograma.
Se você está interessado em ser um doador de sêmen, procure-nos;
“Banco de Sêmen do Hospital Israelita Albert Einstein”.
Os textos apresentados sugerem algumas reflexões.
2. Comentando…
A doação de sêmen humano foi, pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo, considerada algo ético ou condizente com o reto comportamento humano. Daí a pergunta: afinal que é que permite dizer que algo é ético?
Deve-se responder que a liceidade da conduta humana não depende do voto da maioria nem do fato de estar tal conduta em prática ou “na moda”, mas depende de um critério objetivo, válido para todos os homens, que é a lei natural ou a lei moral impregnada no íntimo de todo homem sadio. Aprofundemos tal conceito.
2.1. A lei natural
A natureza é dom e obra de Deus; por isto ela manifesta ao homem deveres que o próprio Criador impõe à criatura. Hoje em dia há quem conteste a existência da lei natural, julgando que esta concepção atrela o homem a leis físicas ou biológicas cegas, em detrimento da sua criatividade pessoal. Eis por que passamos a examinar a existência da lei natural.
1. Em todos os povos primitivos encontra-se a noção de preceitos morais básicos como: “é preciso fazer o bem,… honrar pai e mãe,… cultuar a Divindade…”; tais normas não são atribuídas a determinado chefe ou cacique, mas à própria natureza ou à Divindade. – Também os povos mais civilizados da antigüidade (gregos e romanos) reconheceram a lei natural, atribuindo-a à Divindade.
2. Na S. Escritura S. Paulo é o arauto mais explícito da lei natural existente em todos os homens; ver Rm 1, 24-27; 2, 14s.
3. O Concílio do Vaticano II reafirmou tal doutrina em termos muito claros:
“Na intimidade da consciência, o homem descobre uma lei. Ele não a dá a si mesmo. Mas a ela deve obedecer. Chamando-o sempre a amar e praticar o bem e evitar o mal, no momento oportuno a voz desta lei lhe faz ressoar nos ouvidos do coração: ‘Faze isto, evita aquilo’. De fato, o homem tem uma lei escrita por Deus em seu coração. Obedecer a ela é a própria dignidade do homem, que será julgado de acordo com essa lei. A consciência é o núcleo secretíssimo e o sacrário do homem, onde ele está a sós com Deus e onde ressoa a voz de Deus” (Const. Gaudium et Spes n.º 16)
4. A própria razão aponta a existência da lei natural recorrendo a dois argumentos, entre outros:
a) Quem admite a existência de Deus Criador, admitirá que tenha infundido dentro das criaturas livres, feitas à sua imagem, algumas grandes normas que encaminhem o homem à consecução da vida eterna. Essa orientação interior é precisamente o que se chama “a lei natural”.
b) A negação da lei natural leva a dizer que os atos mais abjetos podem vir a ser considerados virtudes, e vice-versa. Quem não reconhece a lei natural, atribui ao Estado civil o poder de definir o bem e o mal éticos; a vontade do Estado torna-se a fonte da moralidade e do Direito; deste princípio segue-se a legitimação do totalitarismo e da tirania, de que testemunha o século XX.
As funestíssimas conseqüências do totalitarismo moral do Estado levaram as Nações Unidas a promulgar em 1948 a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que não é senão a reafirmação, em grande parte, da lei natural.
5. Contra a existência da lei natural, a mentalidade moderna objeta: o homem não pode estar sujeito à natureza; ele, que por sua inteligência, remove montanhas e aterra baías, como não tem o direito de alterar o curso mesmo da sua natureza corpórea? Tal objeção foi formulada com especial veemência a fim de tentar legitimar os meios artificiais de limitação da prole, mediante os quais o homem interfere nas leis e no funcionamento do seu organismo.
Respondemos: o homem não pode considerar o seu corpo como considera os demais corpos da natureza física. Se o homem trata esses últimos a seu bel-prazer, desviando rios e removendo montanhas, não lhe é licito tratar o seu corpo como bem lhe pareça. Na verdade, o corpo humano, à diferença dos demais corpos, faz parte integrante de um todo que é a pessoa humana; o homem não tem um corpo, mas é um corpo vivificado por uma alma espiritual. O corpo comunica à pessoa as suas características próprias; não é um mero instrumento de uma pessoa espiritual.
Ora, assim como no plano fisiológico a corporeidade impõe ao homem certas leis (não posso comer pedras, não posso respirar gás carbônico, não posso deixar de dormir…), também no plano moral a corporeidade impõe ao ser humano certas normas (relativas à quantidade da comida, da bebida, do fumo, ao uso do sexo…); como a inobservância das leis fisiológicas leva a pessoa à morte, também o desprezo das leis morais naturais induz o ser humano à desintegração psíquica e quiçá física.
6. Qual seria o conteúdo da lei natural?
O primeiro princípio da lei natural soa: “Pratica o bem, evita o mal”. Deste princípio básico deduzem-se conclusões imediatas que explicam o que sejam o bem a ser praticado e o mal a ser evitado; tais conclusões estão formuladas na chamada “regra de ouro” (“O que não queres que façam a ti, não o faças a outrem”, Tb 4,16), como também no decálogo (Ex 20, 1-17)[1]. Destas conclusões imediatas seguem-se outras, mais remotas, que a reflexão atenta sabe deduzir: a unidade e a indissolubilidade da união conjugal, o dever de educar e alimentar os filhos, a pecaminosidade do suicídio e do duelo, a condenação do aborto…
O principio fundamental da lei natural pode ser conhecido com certeza por todo homem normal, pois é evidente por si mesmo. O mesmo se diga a respeito das conclusões imediatas. Quanto às conclusões remotas, embora sejam por si mesmas acessíveis à razão, podem não ser devidamente apreendidas por pessoas que vivam em ambientes moralmente pouco evoluídos, onde a consciência moral esteja embotada pela mediocridade e a dureza dos corações.
Quem se aplica de coração sincero à reflexão sobre a vida moral, percebe que o preceito básico de “fazer o bem” é altamente exigente, implicando conseqüências cada vez mais delicadas e magnânimas. Todavia, para que as apreenda, a pessoa deve estar isenta de covardia ou do medo de crescer interiormente.
7. A lei natural é válida para todos os homens e todos os tempos. Isto se deduz da unidade da natureza humana (na América, na Europa, na África, na Ásia…), da unidade de Deus e do plano divino de salvação.
2.2. A reprodução humana
1) Em particular no tocante à reprodução humana a lei natural tem seus ditames:
– A ciência e a técnica estão a serviço da pessoa humana; não são valores absolutos, mas acham-se subordinados à ética e aos direitos inalienáveis do ser humano.
O terceiro Mandamento “Observar o dia do Senhor” é de lei natural na medida em que preceitua o culto a Deus; mas é de lei positiva ao indicar determinado dia para especial culto a Deus.
– A pessoa humana, embora conste de um corpo constituído por tecidos e órgãos, como o dos demais animais, não pode ser tratada como estes. De modo especial, a procriação humana está ligada a valores que não se encontram em nenhum outro vivente criado. A corporeidade no homem está integrada num conjunto que também é espiritual; em conseqüência, quem toca o corpo, toca a pessoa com seus aspectos espirituais e transcendentais; criado à imagem e semelhança de Deus, o homem é chamado a se realizar plenamente em Deus. Isto quer dizer que nenhum biólogo ou médico pode, em nome da ciência, decidir sobre a origem e o destino dos homens. E lícito, sim, ao cientista instituir suas pesquisas genéticas desde que guarde sempre o respeito à pessoa humana.
– Os critérios morais para se julgarem as novas experiências são dois:
a) a vida do ser humano não é apenas o resultado de reações físico-químicas, mas é o patrimônio de alguém chamado à eternidade;
b) a transmissão da vida humana foi, pela natureza, associada ao amor conjugal, que é sempre pessoal e consciente; por conseguinte não deve ser realizada fora do contexto conjugal.
2) E por que a procriação humana deve ocorrer dentro do matrimônio?
– Para que a procriação seja realmente assumida com responsabilidade, deve ser fruto do matrimônio ou de um compromisso estável entre esposo e esposa que se disponham a gerar e educar a sua prole. – Também a fidelidade dos esposos ao seu matrimônio implica o direito de se tornarem pai e mãe somente através um do outro. Com efeito; os genitores têm no filho uma confirmação e um complemento da sua doação recíproca; a prole, por seu lado, é a imagem do amor mútuo de esposo e esposa; além disto, é através da referência segura aos seus genitores que a prole descobre a sua identidade.
Mais: o equilíbrio da sociedade exige que os filhos venham ao mundo no seio de uma família e que esta seja estavelmente fundada no matrimônio.
3) O recurso aos gametas de terceira pessoa (mediante proveta ou não) constitui uma violação do compromisso recíproco dos esposos e falta grave contra aquela propriedade essencial do matrimônio que é a sua unidade.
Além disto, a fecundação heteróloga lesa direitos do filho, privando-o da relação filial com um dos seus genitores – o que pode prejudicar o amadurecimento da identidade pessoal da prole.
Observe-se ainda que a alteração das relações pessoais dentro da família repercute na sociedade civil; aquilo que ameaça a unidade e a estabilidade da família, é fonte de desordens e injustiças em toda a vida social.
Por razões ainda mais imperiosas, entende-se que a fecundação artificial de uma mulher não casada – solteira ou viúva – seja qual for o doador, não pode ser justificada no plano moral.
4) Resumindo:
O Criador fez o ato conjugal unitivo e fecundo. Em conseqüência, a cópula sexual entre esposos, por sua estrutura mesma, torna-os aptos para a geração de nova vida segundo as leis inscritas no organismo do homem e da mulher. Donde se deduz que não é lícito provocar a produção de um ser humano que não seja o fruto direto do amor de esposo e esposa.
Com outras palavras: a origem de uma pessoa humana é o resultado de uma doação. O filho deve ser o fruto do amor de seus pais. Não pode ser programado e concebido como o produto de técnicas médicas e biológicas, isto equivaleria a reduzi-lo à condição de um artefato de tecnologia científica. A ninguém é licito submeter a vinda ao mundo de uma criança a condições de eficiência técnica, avaliadas segundo critérios de controle e domínio.
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NOTA:
[1] O terceiro Mandamento “Observar o dia do Senhor” é de lei natural na medida em que preceitua o culto a Deus; mas é de lei positiva ao indicar determinado dia para especial culto a Deus.
Estêvão Bettencourt O.S.B.