Castidade: castidade: que é?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 332/1990

Em síntese: O folheto O Domingo de 2/7/89 publicou um artiguete sobre a castidade, que causou espécie. Apresentando-a como a imitação de Deus, que nada possui, mas entregou tudo ao homem, dá a entender que tudo é lícito em matéria de relações sexuais, desde que uma pessoa não queira possuir a outra. – Ora tal concepção é errônea a vários títulos: 1) Deus tudo possui, nem pode deixar de possuir, pois, por definição, é o Criador e o Senhor de tudo; 2) o amor verdadeiro é o de benevolência, que sabe respeitar a próximo, sem se servir dos semelhantes. As páginas que se seguem, propõem outrossim a autêntica noção de castidade como sendo a continência (para pessoas solteiras) ou o reto uso das funções sexuais (para pessoas casadas).

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Em tempos recentes, foi publicado, em folheto de grande circulação, um artigo sobre a castidade, que causou surpresa… O autor reduzia a castidade a não possuir,… não possuir o outro. Feita esta ressalva, parecia ensinar que “tudo vale a pena, se a alma não é pequena” (Fernando Pessoa) ou, apoiando-se em S. Agostinho: “Ama e faze o que quiseres”. Em conseqüência, não haveria mais normas nem reservas para o uso da sexualidade, desde que o indivíduo faça como Deus fez: Ele não quis guardar nada para si: “Criou tudo e entregou tudo à humanidade”. Entregou até o seu próprio Filho… “Assim Deus é a castidade absoluta”:

“Deus não possui nada, porque deu tudo. Castidade é essa pureza de ser puro dom, entrega, presente. Deus criou o universo inteiro, e não ficou com nada para si. Tomou-se pobre. Não bastasse isso, deu-se a si mesmo. Se ele, Deus, fez isso, a que nós, sua imagem e semelhança, somos convidados a fazer? Darmo-nos também. Aprender que as flores não precisam ser apanhadas no jardim. Elas já estão se dando” (Ivo Storniolo, O Domingo de 2/789).

Estes dizeres sugerem algumas observações..

1. Considerações gerais

Antes do mais, devemos notar que os dizeres atrás transcritos realizam um jogo de palavras vazias ou uma vã dialética, pois na verdade Deus tudo possui; é o Criador e o Senhor de todas as coisas e pessoas. Certamente Ele dá, e dá divinamente, mas sem perder o senhorio que Deus (por ser Deus mesmo) não pode perder. Disto se depreende quanto é precária a argumentação do articulista. – Passemos agora a particulares.

Não respondemos por Fernando Pessoa, mas, a respeito de S. Agostinho, devemos afirmar que entendeu o amor que tudo legitima, como amor a Deus e adesão incondicional ao plano do Senhor; ora é claro que a pessoa que assim ama, não se entregará a desmandos, mas praticará o autodomínio e o controle de suas paixões, pois Deus quer que as criaturas subordinem seus afetos a sã razão e à fé, sem se entregar ao libertinismo. Quem ama a Deus, ama o próximo respeitando as leis do Criador.

Está claro que “possuir alguém” no sentido de “dominar outra pessoa e manipulá-la” é um grande mal (que Deus não comete), mas isto não basta para constituir a castidade. Esta é algo de grande e nobre, que descreveremos mais adiante.

Óbvio também que “dar-se a outrem” é muito belo; Deus nos apresentou o exemplo deste gesto. Mas há diversas maneiras de dar-se: existe, sim, o dar-se em agápe (amor benevolente, não cobiçoso, não interesseiro), como Deus se deu a nós, em total gratuidade. E existe o dar-se em eros ou em amor cobiçoso, interesseiro e manipulador – coisa que Deus não faz. Por conseguinte, não é suficiente dizer que devemos dar-nos; esta locução é ambígua, pois os prostitutos e as prostitutas se oferecem ou se dão, contrariando a Lei de Deus. Vê-se, pois, como a palavra “amor”, hoje tão freqüentemente utilizada, pode ser ilusória: não raro significa o amor egoísta, aproveitador, meramente instintivo, e não o amor cristão, que é “querer construir o outro”, em vez de “querer o outro construído”.

Examinemos agora

2. O sentido da castidade

Chama-se castidade o reto uso das funções sexuais. Estas existem no ser humano, por desígnio do Criador, a fim de proporcionar ao homem e a mulher complementação mútua, da qual a prole é muitas vezes a expressão natural.

O Senhor Deus quis anexar às funções da natureza um prazer, que tem o papel de estimular o exercício das mesmas. Assim à alimentação, indispensável para a conservação do indivíduo, se liga um atrativo espontâneo. Também a vida sexual, necessária para a conservação da espécie, é incentivada por um prazer anexo. Tal prazer, porém, é um concomitante, e não a finalidade das funções naturais. Acontece, porém, muitas vezes que o indivíduo procure apenas o prazer, com exclusão da finalidade do mesmo – o que pode redundar em degradação da pessoa humana; tal a o caso de quem come só pelo prazer de comer, e também o de quem recorre à sexualidade apenas pelo prazer erótico. Quem se entrega a tal prática, facilmente se torna escravo de paixões violentas, que humilham a pessoa; as paixões fazem capitular a razão. Recorda S. Agostinho, falando ao Senhor: “Adolescente muito miserável, sim, miserável no limiar mesmo da adolescência, eu Vos pedira a castidade. Dissera: ‘Dai-me a castidade, a continência, mas não ma deis de imediato’. Sim; eu receava que, se me atendêsseis logo, me curaríeis dessa doença da concupiscência, que, em última instância, eu queria alimentar mais do que dominar” (Confissões VIII 7). Depois de certo tempo, as paixões enojam o indivíduo, sem que veja como libertar-se de tal situação. É São Tiago quem diz: “Cada qual é tentado pela própria concupiscência, que o arrasta e seduz” (Tg 1,14).

A castidade não é a primeira das virtudes; a primeira, a que está na base da vida cristã é a fé. A consumação desta é a caridade, que São Paulo chama “o vínculo da perfeição” (Cl 3, 14). A castidade, porém, suscita o clima necessário para que estas duas virtudes desabrochem e, com elas, as demais. Isto é evidente no que concerne a fé: muitas vezes os afetos desregrados prejudicam o modo de pensar da pessoa; diz muito sabiamente o ditado popular: “Quem não vive como pensa, acaba pensando como vive”; S. Agostinho observa que, enquanto cedia às paixões, não conseguia encontrar a verdade (Confissões X 41). Também a caridade (o amor) se ressente da falta de castidade, pois o homem carnal se torna egoísta, manipulador, fechado aos interesses alheios. A vida casta é bela, pois permite a manifestação do específico humano, ou seja, permite a elevação das funções vegetativas e sensitivas ao piano espiritual; sem ser sufocadas, tais funções entram na construção de alguém que foi feito a imagem e semelhança de Deus.

3. Graus de castidade

Distinguem-se diversos graus e modalidades de vida casta: a pré-matrimonial, a matrimonial, a consagrada a Deus e a pós-matrimonial.

1) A castidade pré-matrimonial consiste na abstenção do uso do sexo. Verdade é que o indivíduo durante a vida inteira é marcado pelas características masculinas ou femininas do seu sexo (timbre da voz tipo de pele, de mãos…), das quais ele não só pode isentar; mas nem por isto está obrigado ao exercício da sexualidade, que se chama “a genitalidade”. Sem dúvida, há quem julgue que este é obrigatório desde que desperte o apetite sensual no adolescente; tal concepção é falsa; ao contrário, está comprovado que a continência pré-matrimonial é fator de saúde e penhor de fidelidade e felicidade no casamento. Para conseguir viver a castidade pré-matrimonial, o jovem há do estabelecer a hierarquia dos valores, não só deixando levar pela errônea concepção de que a castidade é um imperativo inexorável; convença-se do contrário, e terá êxito, pois a mais poderosa “glândula sexual” do homem é o cérebro, com o qual pensamos e com o qual concebemos imagens e fantasias. A vitória sobre as paixões desregradas requer também o treinamento da vontade, que deve ser bastante forte para dizer Sim e dizer Não quando o bom senso o exija. A propósito muito se recomenda o livro de João Mohana: Vida Sexual dos Solteiros e Casados, Ed. O GLOBO, Porto Alegre – Rio de Janeiro.

2) A castidade matrimonial consiste em que os cônjuges pratiquem a genitalidade em respeito mutuo, sem concessão a afetos desordenados, e em conformidade com as leis da natureza. Em conseqüência, o sexo oral, o sexo anal e o homossexualismo, por serem aberrações que ferem a natureza, são rejeitados pela Lei de Deus. Todavia não é vedado aos esposos desejosos do evitar filhos manter relações sexuais quando a própria natureza é estéril; nisto não há derrogação às normas do Criador, que propiciam periodicamente ao organismo feminino um repouso necessário à saúde.

3) A castidade consagrada, nos casos femininos, é chamada virgindade consagrada (embora possa existir após a perda, voluntária ou involuntária, da virgindade física). Nos casos masculinos, é o celibato. Consiste na entrega do todo o ser humano com seus afetos diretamente ao Senhor e ao serviço do seu Reino. Corresponde a uma vocação especial e supõe um dom próprio do Senhor (cf. 1Cor 7,7); não implica menosprezo do matrimônio, que é santificado por um sacramento, mas, de certo modo, vem a ser baliza ou referencial para todos os cristãos, pois todos, direta ou indiretamente, são chamados a se consagrar ao Senhor e aos interesses do seu Reino.

4) A castidade pós-matrimonial ou da viuvez também é bela; tem seu protótipo na figura bíblica de Judite, a viúva fiel ao Senhor, que salvou seu povo, munida do um dom especial. São Paulo, em suas epístolas pastorais, atribui às viúvas na Igreja funções próprias, correspondentes a sua experiência de vida (cf. 1Tm 5,3-16).

Conclusão

A castidade é preciosa especialmente em nossos dias, quando muitas pessoas, impelidas pelo erotismo, se tornam vítimas do vazio e da frustração, e não vêem mais sentido para a sua vida; as drogas e o suicídio as ameaçam. A prática da castidade é um sinal que chama a atenção, pois mostra que alguém pode ser plenamente feliz e realizado atendendo a outros apelos que não os das paixões desregradas; manifestam-se assim outros valores que o Senhor Jesus apregoou e o Apóstolo São Paulo explanou muito enfaticamente (cf. Mt 19, 12; 1Cor 7, 25-35). É em Deus e na fidelidade incondicional aos seus desígnios que a criatura encontra a sua consumação.

Para poder viver a castidade, recomendam-se três elementos muito importantes: 1) a educação da vontade (como dito atrás), sem a qual ninguém atinge meta alguma; é ilusório crer que, dizendo Sim a todos os impulsos, alguém possa conseguir felicidade e auto-realização; 2) o pudor, que é o respeito pelo corpo, templo de Deus; é também a delicadeza de ânimo, que reconhece o sentido transcendental das funções que o homem tem em comum com os outros viventes na terra; 3) a oração, fonte de força e nobreza de ideal para todos os homens; nunca pode faltar na vida de um cristão, pois é a alavanca que o ajuda a sair de toda fossa e encruzilhada e lhe comunica o indizível sabor da presença de Deus, muito mais atraente do que qualquer outro.

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