Consciência e moralidade: censura da arte

 (Revista Pergunte e Responderemos, PR 101/1968)

«Que dizer da atual controvérsia relativa à cen­sura… censura do teatro, do cinema, da televisão e da lite­ratura?

Quem tem razão: os adeptos ou os adversários da cen­sura?»

Nas páginas que se seguem, recolheremos sob quatro grandes títulos as principais objeções que se levantam contra a censura em nosso país, e procuraremos propor algumas con­siderações a propósito.

1. Paternalismo ou maioridade?

1) «O povo é de maioridade; não precisa de censores do governo. É na bilheteria que se faz a censura».

Resposta: Logo de início deve-se notar que é esta, por certo, a réplica que mais pesa em prol da campanha contra a censura. Vivemos em sociedades que rejeitam decisivamente todo e qualquer tipo de paternalismo, isto é, de ingerência de um poder forte e «bonzinho» em assuntos que poderiam ser solucionados pelos indivíduos.

Em verdade, não se deve aceitar o paternalismo na me­dida em que tire aos cidadãos a responsabilidade ou a capa­cidade de agir e julgar como pessoas maduras.

Todavia no que se refere à censura de teatro, cinema, etc., impõem-se as seguintes considerações:

É preciso, inegàvelmente, que as autoridades públicas res­peitem a liberdade de consciência dos cidadãos; reconheçam a cada um o direito de formar seu juízo pessoal a respeito das ocorrências da vida social. Se alguém quer viver viciosa ou debochadamente, as autoridades civis não têm a obrigação nem o direito de intervir na consciência dessa pessoa. Não é lícito, portanto, aos governos civis constranger seus súditos em matéria de filosofia e Religião. – Foi o que o Concilio do Vaticano II houve por bem declarar em seu documento refe­rente à Liberdade Religiosa; cf. «P. R.» 97/1968, qu. 1.

Todavia compete a todo governo civil o estrito encargo de promover o bem comum da sociedade e profligar tudo que a este, de certo modo, contradiga ou se oponha. Ora o teatro, o cinema, a televisão e a literatura são meios de comunicação que afetam profundamente a vida pública. São, para muitos e muitos cidadãos (conscientes ou inconscientes disto), ver­dadeira escola de «filosofia da vida» e de moral; quem vai ao teatro, vai para ver e ouvir durante horas a fio, colocan­do-se de antemão (talvez inconscientemente) em atitude de receptividade. Os exemplos apresentados pelos espetáculos públicos facilmente tornam-se «ideais» de vida e susci­tam nos espectadores o desejo de imitar, reproduzir… ao menos algo da conduta dos heróis da cena. Em suma, o teatro e o cinema lançam a moda, tornam-se paradigmas. Não é necessário insistir no extraordinário poder sugestivo de que desfrutam.

Por isto é que pode tocar ao governo civil a tarefa de vigiar para que os divertimentos propostos ao público não se desvirtuem, tornando-se escolas de crimes, deboche, vícios, ruptura de lares, infelicidade social, etc. – Assim como o Estado tem o direito e o dever de controlar a higiene pública ou os meios de saúde física de seus cidadãos, tem também o direito e a obrigação de se interessar pelos órgãos de publici­dade que influem, favorável ou desfavoràvelmente, sobre a saúde mental e moral da sociedade.

Essa necessidade é tanto mais compreensível quanto se sabe que hoje os divertimentos são muitas vezes intencional­mente explorados para fins comerciais. Empresários e autores menosprezam as conseqüências deletérias que de seus espetá­culos decorram, desde que prevejam apreciável lucro finan­ceiro. Conhecedor de tal situação, o Estado não exorbita de suas atribuições, quando institui a censura de peças teatrais e cinematográficas…

Em réplica a estas considerações, talvez diga alguém:

2. Bem e mal: categorias subjetivas

2) «O bem e o mal moral são categorias subjetivas; variam segundo a apreciação de cada indivíduo».

Resposta: Em Moral, existem padrões objetivos do bem e do mal, válidos para todo e qualquer homem. Estes padrões objetivos são os ditames da lei natural, que todo indivíduo ouve dentro de si, queira-o ou não, independentemente de sua cultura ou época. – Aplicando esta afirmação ao nosso caso, deveremos dizer: a natureza deu ao homem a função sexual a fim de que os seres humanos se unam em matrimônio e se reproduzam sobre a terra. Por conseguinte, toda excitação sexual que se realize fora do casamento ou sem ordenação à procriação, vem a ser um abuso que a consciência de todo homem naturalmente profliga. Esse abuso é, objetivamente falando, um mal, um mal que não pode ser proposto ao público como se fosse algo de tolerável ou simplesmente como matéria de deleite e divertimento para os espectadores.

Todavia nova objeção se faz ouvir:

3. A autonomia da arte

3) «A arte está emancipada da Moral; é um valor que deve ser cultivado autonomamente».

Resposta: Deve-se reconhecer que a arte não é por si ordenada a um fim ulterior, não é propriamente instrumento para se conseguirem objetivos de índole diversa. Não se re­quer, por conseguinte, que a arte, ao representar o belo, tenha em vista outra finalidade que não a de exibir um objeto digno da contemplação dos espectadores. É neste sentido que se entende a autonomia da arte.

Todavia note-se que a arte e a atividade artística não existem em si mesmas, mas estão sempre localizadas em deter­minado sujeito humano (artista ou artífice). Ora a atividade artística aperfeiçoa o homem apenas segundo um aspecto res­trito, isto é, na medida em que ele tem senso musical, poético, pictórico, literário, e faz vibrar esse senso de acordo com as regras da música, da poesia, da pintura, da estilística, etc. A arte torna o homem bom músico ou bom poeta…; não o faz, porém, homem bom ou perfeito. É a Moral que torna o homem bom simplesmente dito, ou bom no seu aspecto essen­cial, isto é, enquanto é um ser inteligente destinado a conhecer a Verdade Suprema e amar o Bem Infinito.

Por isto é que o exercício da arte deve estar subordinado à Moral, ou seja, às leis que norteiam a conduta do homem, de modo que seja um homem bom ou perfeito e chegue ao seu Fim Supremo ou a Deus. Todo homem normal pode e deve tender a ser um homem moralmente bom; o aperfeiçoamento moral é a tarefa mais importante de cada ser humano, tarefa sem a qual não se justificam as demais atividades do homem, nem mesmo as atividades artísticas. Donde se vê mais uma vez que a arte, como qualquer outra função humana, tem de ser dirigida pela consciência moral ou pelos ditames da lei natural de que falava a resposta à objeção n° 2 deste artigo. O artista que cultivasse a Arte como um bem absoluto, inde­pendente de qualquer outro, estaria adorando um ídolo ou muitos ídolos…

Em linguagem sucinta e precisa, pode-se exprimir a mesma doutrina nos seguintes termos:

a) Por seu objeto, a arte não está subordinada a alguma finalidade ulterior, isto é, a obra de arte por si mesma não é etapa nem instrumento para a consecução de algum bem criado;

b) Por seu sujeita, porém, a arte está subordinada à obtenção do Bem Supremo desse sujeito; este nunca age senão em demanda do Fim último. Ora o conjunto de leis que levam o homem ao seu Fim Supremo constitui a Moralidade. Por isto não é lícito à arte, em hipótese alguma, derrogar à Moralidade.

Aos fiéis católicos o Concílio do Vaticano II quis, com particular ênfase, lembrar tal doutrina:

Há um problema que se refere às relações existentes entre os direitos da arte e as normas da lei moral. Como as incessantes con­trovérsias nesta matéria não raro se originam de falsas doutrinas acerca da ética e da estética, o Concílio declara que absolutamente todos devem professar a primazia da ordem moral objetiva, por­quanto é a única que sobrepuja e coerentemente harmoniza todas as demais ordens de coisas humanas, por mais respeitáveis que sejam em dignidade, não excetuada a arte. Pois somente a ordem moral atinge o homem em toda a sua natureza, criatura racional de Deus chamada para os bens celestiais; se esta ordem moral for observada fiel e integralmente, levará o homem à plena consecução da perfeição e da felicidade, (Decreto «Inter Mirifica» sobre os Meios de Comu­nicação Social, n° 6).

Estas considerações, porém, suscitam mais uma objeção:

4. A arte controlada nunca representará a realidade!

4) «A arte, embora se destine a cultivar o belo, não pode deixar de representar a realidade humana. Ora esta é um misto de bem e mal morais. Então a arte, para não ofender

a Moral, há de se contentar com representações parciais e mutiladas da realidade, atraiçoando os acontecimentos e as personalidades que em verdade ocorrem?»

Resposta: A Moral não exige que, de maneira sistemá­tica e absoluta, o homem feche os olhos ao mal. Não; há casos em que é oportuno que os homens retos descrevam o mal como ele existe; devem, porém, fazê-lo de modo a apresentar o mal como mal ou de modo a fazer compreender que é algo a ser rejeitado e não imitado; abstenham-se, pois, de sugerir a mínima complacência no mal ou de o justificar e exaltar.

Em geral, observa-se que descrever o mal sem insinuar algum juízo sobre o mesmo equivale praticamente a incuti-lo e recomendá-lo (tal é o poder de sedução do pecado); por isto o artista não se pode eximir de censura da Moral quando ele apenas descreve os homens e os acontecimentos lascivos como eles se apresentam na sua realidade cotidiana. Desde que se trate de objetos moralmente maus, estes têm de ser (elegan­temente, se quisermos) denunciados como tais, pois dificilmente se pode crer que, para o público, a singela descrição não re­dunde em detrimento de consciência.

Em outros termos ainda, deve-se dizer que a Moral não proíbe ao artista descrever a realidade humana tal como ela é, mas veda expressá-la tal como ela não é, ou seja, como gran­deza (nos casos em que ela é ruína), como lícita e louvável (nos casos em que ela é ilícita e condenável), como justa (nos casos em que ela é injusta). Tenham-se em vista as «Confis­sões» de S. Agostinho e o «Decamerone» de Boccaccio; são obras que contêm a descrição do pecado; já, porém, que to­mam atitudes diversas perante o mal, merecem ser diversa­mente apreciadas: nas «Confissões» o vício é apresentado como objeto de arrependimento e repúdio por parte do autor (o que vem a ser construtivo), ao passo que no «Decamerone» se percebem complacência no pecado e glorificação deste (ati­tudes reprováveis).

Segue-se a propósito mais um inciso do documentário do Concílio do Vaticano II:

«A narração, a descrição e a representação do mal moral podem certamente, com o recurso inclusive dos meios de comunicação, pres­tar-se para um conhecimento e um estudo mais profundo do homem, para manifestar e exaltar a magnificência do bem e da verdade, obtendo-se, além disso mais oportunos efeitos dramáticos; contudo, para que não venham a causar dano antes que utilidade aos espíritos, obedeçam estritamente às leis morais, principalmente se se tratar de coisas que exigem a devida reverência ou que incitem com mais faci­lidade o homem, ferido pelo pecado original, a desejos perversos» (De­creto «Inter Mirifica» n° 7).

As idéias propostas nestas páginas levam a ver que não é inoportuna a obra dos censores de espetáculos de cinema, tea­tro e televisão… Este trabalho poderá ser especialmente útil nos tempos presentes, em que nem sempre se cultiva a arte pela arte ou pela beleza, mas, sim, em vista do lucro comer­cial; critérios totalmente alheios à arte e à formação do senso artístico levam não poucos produtores e artistas a explorar baixos sentimentos do povo, proporcionando a este um deleite que está longe de ser o deleite da genuína estética. Já se disse, aliás, muito sabiamente que a arte imoral deixa de ser arte.

É para desejar, porém, que os censores se deixem guiar exclusivamente pelas normas da sã Moral, e não pelos ditames de algum partido político.

A propósito da industrialização da arte e da cultura, veja-se E. Gilson, «La Société de Masse et sa Culture». Paris 1967.

APÊNDICE

Vem a propósito a entrevista concedida pelo Sr. Bispo D. José Gonçalves, DD. Secretário da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, ao «Jornal do Brasil» e publicada à pág. 7 do 1° cad. desse jornal em 21/III/68:

O Secretário Geral da Conferência dos Bispos, Dom José Gonçalves, declarou ontem que só pode aplaudir o Governo quando ‘firmemente mantém o princípio da Censura’,

argu­mentando que nem sempre o Governo deve fazer a vontade da comunidade, pois muitas vezes ‘esta se acha de tal maneira deformada ou imatura que a autoridade terá de contrariá-la em seu próprio benefício’.

Após pedir desculpas aos artistas brasileiros, Dom José disse ser da opinião de que ‘a liberdade absoluta não interessa à arte, e sim à bilheteria, mas à custa da consciência e da cultura de nossa juventude. Um artista de real valor não precisa de pornografia, nem para expansão da arte, nem para sucesso de bilheteria’.

Autoridade

Ao apoiar o Governo sobre a manutenção do principio da censura, Dom José lembrou a doutrina do Papa Pio XII, ex­pressa na encíclica ‘Miranda Prorsus’, sobre o cinema, o teatro e a televisão, na qual insiste em que ‘a vigilância do Estado não se pode considerar injusta opressão da liberdade do indivíduo, porque se exerce não na esfera da autonomia pessoal, mas sobre uma função social, como é por essência a difusão’.

Para argumentar que a autoridade não pode fazer todas as vontades do povo, lembrou o Secretário da CNBB que na decadência do grande povo romano a massa pedia somente panem et circenses (pão e circo), frisando: ‘Ninguém me vá dizer que a autoridade devia só dar pão e circo ao povo, por ser a vontade da comunidade!’

– ‘Todos reconhecem ao Governo o direito e o dever de controlar o porte de armas, para não colocá-las ao alcance de malfeitores e tarados. Irá permitir essa licença aos assas­sinos de almas?

– Todos reconhecem ao Governo o direito e o dever de controlar a venda de tóxicos. Será exorbitância, se impedir o envenenamento moral dos brasileiros? Que dizer de um farmacêutico que permitisse a um inexperiente penetrar em seu laboratório e provar indiscriminadamente todos os

pro­dutos químicos que ali se manipulam?’ – ponderou.

Pureza

Dom José Gonçalves acha que a verdadeira arte não pre­cisa de palavrões, nem de pornografia, pois que ela se impõe por si mesma, obtendo mesmo o sucesso de bilheteria. Citou a propósito um exemplo, ‘justamente no gênero humorístico, que é o mais exposto à sedução da pornografia ou da porno­lalia. Refiro-me ao Sr. José Vasconcelos. Que Deus o livre de deixar macularem-se seus lábios limpos e de infectar-se sua sala de espetáculos, onde grandes e pequenos têm podido entrar sem constrangimento!’

Lamentou, apoiando-se em comentários de pessoas sen­satas, que ‘o nosso teatro esteja virando uma vergonha’ e lamentou que ‘artistas do valor de Fernanda Montenegro, Ca­cilda Becker e outras, que todo o mundo respeita e admira, aceitem papeis em peças licenciosas’.

A propósito do palavrão, citou o Apóstolo São Paulo, que exorta aos cristãos: ‘A impureza e toda imundície nem sejam nomeadas entre vós… nem palavras torpes, nem inconve­nientes, nem levianas’ (Ef 5,3s).

Controvérsia

Interrogado sobre as declarações do Diretor da Central Católica de Cinema, que diz admitir o palavrão no teatro, o nu no cinema, afirmou Dom José que duvida de que a imprensa tenha refletido com exatidão seu pensamento, pois sabe que ele não é contrário à censura. O que houve, talvez, foi isolar algumas frases de um contexto.

– ‘Se ele confirmasse a entrevista nos termos em que foi publicada, eu teria reparos a alguns conceitos por ele emitidos, à luz da doutrina dos Papas e do Concílio do Vaticano II, que no decreto ‘Inter Mirifica’, sobre os meios de comunicarão social, analisa justamente o problema da exposição do mal moral na arte’.