Consciência e moralidade: moral hoje

 (Revista Pergunte e Responderemos, PR 124/1970)

 

«Diz-se clàssicamente que o fim não justifica os meios.

Será isto verdade mesmo em nossos dias, quando os ho­mens enfrentam situações inéditas?»

Resumo da resposta: A moralidade do ato humano é aferida não somente pela finalidade desse ato (intenção do agente), mas também pelo objeto ou a matéria em torno da qual esse ato versa. Há atos cuja matéria é em si má; tais são os que contradizem às leis da natureza (não matar, não roubar, respeitar a dignidade do pró­ximo…).

Para chegar a determinado fim, o homem tem de recorrer a meios adequados; quem quer o fim, quer os meios. Donde se segue que o fim e os meios são envolvidos no dinamismo de um só querer. Por conseguinte, se alguém escolhe um meio moralmente mau para atin­gir um fim bom, cai em contradição consigo mesmo; quer o bem e o mal ao mesmo tempo; assim destrói o valor bom de sua ação. Não beneficia nem a si nem ao próximo.

Daí dizer-se que o fim bom não justifica os meios maus, nem na era da técnica, quando tantas são as seduções para justificar quais­quer meios. Sempre que alguém

Resposta: Todos os homens de bom senso foram, até os últimos tempos, unânimes em afirmar que o fim não justifica os meios ou que, em consciência, não se pode empregar qualquer recurso para atingir uma finalidade boa, por mais pura ou útil que seja. Este princípio parece tão evidente que poucos autores sentem a necessidade de o provar. Todavia há quem julgue que, diante dos problemas totalmente novos dos nossos dias, o axioma possa e deva sofrer exceções,… exceções de emergência justificadas por necessidades extremas. – Em conseqüência, vamos abaixo analisar sucintamente a proble­mática; após o que, tentaremos responder à dúvida suscitada

1. A problemática

O mundo de hoje, com sua explosão demográfica e os problemas que ela abre,… com os novos recursos da ciência e da técnica, tem inspirado aos homens certos comportamen­tos em que o fim reto e honesto parece justificar meios que os antigos reprovariam:

inseminação artificial para dar a cônjuges estéreis a alegria e a estabilidade de um casal fecundo;

o uso de recursos anticoncepcionais para não sobrecarregar uma genitora ou um casal já muito onerados;

a esterilização de indivíduos tarados ou enfermos, a fim de que não propaguem males sociais;

o uso da tortura para se extorquirem segredos e assim pôr a salvo a vida de milhões de homens ameaçados por terroristas;

o suicídio empreendido por um prisioneiro a fim de, no auge da dor, não vir a denunciar seus companheiros de luta ou cair na desonra;

o aborto para evitar prole defeituosa ou indesejada;

o sacrifício de vidas humanas inocentes a fim de se obterem me­lhores condições para as gerações futuras.

Em tais casos, os fins ou objetivos são sempre legítimos; os meios eram reputados iníquos. Hoje em dia, porém, per­gunta-se se tais meios não são legitimados pela perspectiva de uma finalidade boa. Os motivos para que se proponha a ques­tão podem-se reunir em três incisos:

1) a multiplicação de meios e recursos que aliviam e facilitam a luta do homem, multiplica as tentações de se usa­rem meios que, segundo os conceitos clássicos, seriam ilegíti­mos, em vista de metas legítimas. Assim, por exemplo, a fecundação artificial, outrora empreendida no gado apenas, hoje em dia pode ser com êxito efetuada também no ser humano, com «vantagens» altamente decantadas;

2) a civilização contemporânea gera uma mentalidade que é cada vez menos propensa a aceitar a Moral e as exigências da consciência. Mediante a técnica o homem moderno se acostumou a ver paulatinamente cair os obstáculos às suas conquistas; barreiras outrora insuperáveis vêm cedendo… Daí sentir ele a dificuldade de tolerar que a Moral refreie ou detenha a execução de planos ousados ou grandiosos. O «prin­cípio da eficácia» leva a não rejeitar meios censuráveis dos quais se possam esperar resultados sedutores;

3) hoje em dia acentua-se muito a «Moral da intenção». Segundo esta, tal ou tal não é bom ou mau em si mesmo; é a intenção de quem o pratica que o torna lícito ou não; a Moral deixa de ser objetiva para se tornar meramente sub­jetiva; «não se considere aquilo que alguém faz, mas a in­tenção com que o faz». Em conseqüência, matar um inocente por espírito de rancor ou vingança seria condenável; todavia matá-lo para salvar uma cidade seria louvável.

Para a Moral da intenção, os meios não precisam de jus­tificativa moral; têm função meramente técnica; são «amorais» ou moralmente neutros. Daí a ruptura, freqüente em nossos dias, entre a Moral e a técnica. A Moral (intenção, consciên­cia subjetiva) seria algo de estritamente pessoal, variável de indivíduo a indivíduo, ao passo que a técnica (a eficácia, o rendimento científico, o progresso) seria algo de objetivo ou um problema da sociedade como tal. A Moral nada teria a dizer no setor da técnica.

Eis como se coloca o problema de nossos dias: pode-se ainda sustentar que o fim não justifica os meios? … ou que a consciência moral tem direito a emitir julgamento sobre os comportamentos que a civilização sugere (às vezes, imperiosa­mente) ao cidadão moderno?

Procuremos a resposta para a questão.

2. Bem e mal: o subjetivo e o objetivo

1. Antes do mais, note-se que dois são os elementos que tornam um ato moralmente bom ou mau, legítimo ou ilegítimo:

– o objeto desse ato ou a matéria em torno da qual versa o ato: assim ensinar ciências e civismo

a um ignorante é ato, por seu objeto, bom. O ato de dar esmola a um indi­gente é, por seu objeto, bom;

a finalidade ou a meta que se tem em vista ou que se intenciona quando se pratica o dito ato. Esta também tem que ser boa ou reta para que o ator seja moralmente bom. Por conseguinte, quem ensina a um ignorante no intuito de se furtar a imperiosas obrigações de seu ofício ou emprego, está procedendo, mal (pois a finalidade é má). Quem dá ali­mento a um faminto, pretendendo furtar-se a lhe pagar o justo salário, procede mal.

Vê-se, pois, que, para que um ato seja moralmente bom, é preciso seja bom não somente pelo fim ou objetivo ao qual se dirige, mas também pela matéria em torno da qual versa.

2. Desenvolvendo tais idéias, pode-se dizer:

O que torna um ato moralmente bom ou mau, legítimo ou ilegítimo, não é somente a intenção de quem o pratica… Também não é simplesmente o julgamento ou a avaliação de quem age. Além destes elementos subjetivos, existe um crité­rio objetivo para se definir o agir humano. Tal critério é a matéria ou o objeto desse agir.

Ora são atos moralmente bons por sua matéria ou por seu objeto, os atos que atendem às exigências da natureza humana. Com efeito, a natureza humana impõe ao homem certas normas para que o indivíduo se realize ou se torne mais homem; burladas essas normas, o indivíduo se desfigura. Tais normas são válidas em todos os tempos (elas são ante­riores a qualquer tipo de educação ou filosofia) entre essas exigências, está a de respeitar os direitos do próximo, a de amar os semelhantes, a de não fazer a outrem o que ninguém quer seja feito a si mesmo, a de não matar um inocente.. . Todo ato que se conforme a tais imperativos, é moralmente bom; leva o homem a ser mais digno.

Ao contrário, moralmente mau por seu objeto é o ato que desrespeite as leis da natureza, ato que, em vez de levar o homem a adquirir a perfeição para a qual ele é natural­mente chamado, o desfigura e depaupera.

A título de complemento, não se poderia deixar de dizer aqui que o ser humano não «se realiza» de maneira leiga ou sem Deus. Se­guindo as normas de sua natureza, o sujeito segue as leis de Deus, Autor da natureza. Realizando-se a si mesmo, o indivíduo se torna mais próximo de Deus, mais brilhante reflexo da perfeição do Cria­dor. – Nestas páginas estamos propondo a doutrina de tal modo que possa ser aceita também por quem não queira encarar diretamente o problema de Deus.

3. Fim e meios

Acontece freqüentemente que coloquemos certos atos não porque os intencionamos como tais, mas porque os subordina­mos, como meios oportunos, a determinada finalidade – fina­lidade reconhecidamente boa.

É então que se põe a pergunta: não será lícito recorrer a qualquer meio, contanto que se tenha em vista um objetivo reto e digno?

A resposta há de ser negativa.

Por quê?

– Porque fim e meios constituem como que um só objeto do querer ou da vontade de quem age. Sim; fim e meios estão intimamente relacionados entre si, de tal modo que quem quer tal fim, deve querer tal ou tal meio[1]. É, portanto, com um único ato de minha vontade que eu quero o fim e quero os meios correspondentes. Em outros termos: o fim e os meios estão envolvidos no dinamismo de um só querer.

Ora, como já foi insinuado atrás, nem todos os meios têm em si o mesmo valor moral. Assim como há meios que con­tribuem para dignificar o homem, há outros que concorrem para o destruir ou degradar; tais são os roubos injustos, o homicídio do inocente, a tortura que desrespeita as personali­dades. Por conseguinte, se tenho uma intenção boa (a inten­ção de obter algo de bom), só posso aplicar-me a querer meios bons. Sei que o valor de tais meios não é aferido por critérios de técnica ou de rendimento econômico ou de produtividade e eficiência profissional, mas, sim, pela aptidão de tais meios a promover a grandeza e a dignidade do homem, tornando-o mais homem, mais voltado para o seu Fim Supremo (o Fim que responde às aspirações mais características do ser hu­mano), e não apenas mais eficiente no setor da indústria, do comércio, da arte ou da ciência…

Em conseqüência, note-se: o homem que empregue um meio mau ou indigno para atingir uma finalidade boa ou digna, cai em contradição consigo mesmo, comete uma inco­erência ou uma desdita. Eis, em última análise, por que não se justifica que alguém utilize meios em si maus para obter objetivos bons: tal sujeito diz ao mesmo tempo SIM e NÃO a si mesmo ou à dignidade humana e aos valores que ele pre­tende alcançar. Empregando um meio mau, a pessoa se di­minui ou renega quando precisamente intenciona dignificar a si mesma e ao próximo. – Na verdade, a sociedade não é beneficiada quando um de seus membros se avilta, ainda que este intencione auxiliar a sociedade.

Para ilustrar tais afirmações, pode-se recorrer ao exem­plo da tortura. O dever de salvar os compatriotas pode (e deve) aparecer a alguém como uma tarefa sagrada; tal pessoa não se poderia furtar a esse dever sem se sentir infiel a si mesma, ao próximo e a Deus. Todavia, se, para obter a sal­vação dos seus semelhantes, o sujeito lança mão da tortura (a qual, em si, é indigna ou imoral), ele se opõe a si mesmo (à sua dignidade), ao próximo (à dignidade do semelhante) e a Deus mesmo. Em conseqüência, ele não beneficia nem a si nem a outrem. Para atingir sua finalidade, tal pessoa em­prega um meio que, na verdade, a afasta da dita finalidade.

Parece oportuno sublinhar que o valor moral dos meios (como também o dos fins) é um dado que o homem não cria nem estipula, mas que ele recebe da ordem natural das coisas. Ninguém se realiza de qualquer modo ou empregando quais­quer meios; paralelamente, uma semente não dá qualquer planta, mas está subordinada às leis da sua espécie.

A propósito pode-se recomendar o artigo de V. de Couesnongle: «La fin et les moyens», em «Supplément de la Vie Spirituelle» 65, mai 1963, pp. 293-312.

Estêvão Betteneourt O.S.B.

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NOTA:

[1] Um dos correspondentes de Karl Marx, o pensador alemão Ferdinand Lasalle, escreveu a Marx:

«Não mostres apenas a meta; mostra também o caminho. Pois a meta e o caminho estão de tal modo associados entre si que um muda quando o outro muda… Um caminho novo indica uma finalidade nova»