Consciência e moralidade: roubar em extrema necessidade

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 278/1985)

Em síntese
: São Tomás de Aquino e os moralistas católicos ensinam que, em caso de extrema necessidade, isto é, diante do perigo iminente de morte, é lícito a um indigente apropriar-se de bens alheios na medida em que estes lhe sejam indispensáveis para salvar a sua vida (ou a vida do próximo). Note-se que a grave necessidade não basta para justificar tal pro­cedimento, mas requer-se a extrema… Requer-se também que o indigente, ao retirar bens do próximo para não morrer, não retire mais do que o necessário nem acarrete para o proprietário iminente perigo de morte…

Tais princípios de Moral, lembrados pela Campanha da Fraternidade/85, não deveriam servir para estimular roubos e assaltos. A Campanha da Frater­nidade foi instituída para fomentar entendimento e benevolência mútua entre os homens, filhos do mesmo Pai celeste, e não para incitar uns contra os outros.

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A Campanha da Fraternidade 1985 adotará por tema «Pão para quem tem fome». Nos comentários a tal slogan, lê-se que é lícito «tirar coisas dos outros» em casos especiais, sem que isto se constitua em furto ou roubo. Esta afirmação é apoiada em dizeres de S. Tomás de Aquino († 1274), grande doutor da Igreja. Ora a temática assim formulada tem sus­citado dúvidas e ansiedades. Pergunta-se: que disse propria­mente S. Tomás de Aquino? Como definir os limites do lícito e do ilícito no «tirar as coisas dos outros»?

É precisamente a tais questões que dedicaremos as pági­nas seguintes. Deve-se notar que tal temática era mais estu­dada pelos autores antigos do que pelos contemporâneos. Na explanação subseqüente, valer-nos-emos da obra de Dominicus Prümmer O.P., um dos melhores moralistas da primeira metade do século XX. Em seu «Manuale Theologiae Moralis secundum principia S. Thomae Aquinatis», ed. nona, tomo II, Friburgi Brisgoviae 1940, pp. 82-84, o autor propõe conside­rações que podem ser tidas como típicas da doutrina comum nessa matéria.

UM PRINCÍPIO

«Em caso de extrema penúria é lícito retirar dos bens alheios a quantia suficiente para que o indigente se livre de tal penúria».

Assim pensam os moralistas católicos em geral, como tam­bém os Códigos Civis de vários países.

1. A fundamentação da tese é a seguinte:

Deus concedeu a terra a todos os homens para que a habi­tem e se sirvam dos seus bens. Ora todo homem inocente tem o direito natural de viver; e, como só pode viver se utiliza os bens da terra, torna-se-lhe lícito, em caso extremo, apropriar-se dos bens que lhe sejam necessários para escapar da morte e garantir a sua sobrevivência. Em tais circunstâncias, o indi­gente não está roubando ou não está injustamente retirando a propriedade alheia. – Esta proposição não nega o direito à propriedade particular, pois tem em mira apenas os casos extremos.

2. O princípio assim enunciado requer algumas explica­ções:

a) Somente os casos de extrema necessidade, não os de grave ou grande penúria, justificam o «retirar bens alheios».

E que se entende por extrema necessidade? – Os autores não são unânimes a respeito: geralmente apontam «próximo perigo de morte» ou também «próximo perigo de perder um membro importante do respectivo corpo». O motivo de res­tringir a liceidade aos casos de extrema penúria é óbvio: os moralistas e legisladores querem evitar furtos e assaltos

indis­criminados, que violariam o princípio da propriedade particular e a paz da sociedade. Donde se segue que aos mendigos, como geralmente ocorrem nas ruas das grandes cidades, não é lícito retirar bens alheios sem licença do respectivo proprietário. O Papa Inocêncio XI condenou a seguinte proposição de autores laxistas: «É lícito roubar não só em extrema necessidade, mas também em grave penúria» (Denzinger-Scliónmetzer, Enquirídio n° 2136 [1186]).

S. Tomás de Aquino, em sua Suma Teológica II/II, qu. 66, art. 7, interroga: «Se é lícito furtar por necessidade». E res­ponde

«Se a necessidade for de tal modo evidente e imperiosa que seja indubitável o dever de obviá-la com as coisas ao nosso alcance – por exemplo, quando corremos perigo iminente de morte e não é possível salvarmo-nos de outro modo – então podemos licitamente satisfazer à nossa necessidade com as coisas alheias, apoderando-nos delas manifesta ou ocultamente. Nem tal ato tem propriamente a natureza de furto ou rapina».

O S. Doutor acrescenta que não somente em caso de ex­trema necessidade do sujeito, mas também em extrema indi­gência do próximo, é lícito a alguém retirar os bens alheios suficientes para que não morra: assim a mãe que não tenha alimento para seu filho posto na iminência de morrer de fome, pode apropriar-se do alheio na medida do necessário para sal­var da morte o seu filho: «Em caso de semelhante necessi­dade, também podemos apoderar-nos da coisa alheia para socor­rermos ao próximo assim necessitado» (ib. ad 3).

b) Não é lícito retirar mais do que o necessário para que a pessoa indigente se salve da morte ou salve o seu próximo.

Por conseguinte, se, para escapar da morte, baste a alguém tomar de empréstimo um bem alheio, não lhe é lícito apro­priar-se desse bem. Uma vez passada a extrema necessidade, é preciso restituir o bem alheio, caso ainda exista. Caso não mais exista [1], os moralistas julgam que não há estrita obriga­ção de restituir o equivalente ou de ressarcir o proprietário (ainda que o indigente tenha condições de o fazer).

c) Mesmo em extrema necessidade não é lícito tirar bens alheios, se o proprietário cair também ele em extrema neces­sidade em decorrência de tal gesto.

Esta proposição se explica pelo princípio «melhor é a con­dição de quem está de posse» (melior est conditio possidentis). Donde se segue que, se duas pessoas sofrem naufrágio, mas uma só (mais fraca e inexperiente) possui um salva-vidas, não é lícito à outra pessoa arrebatar-lhe o salva-vidas, pois isto colocaria o próximo em extremo perigo.

REFLEXÃO FINAL.

Verifica-se que o princípio firmado por S. Tomás de Aquino e adotado pelos moralistas em geral tem fundamento lógico e plausível. Para corroborar esta observação, podem-se citar os Códigos de Direito Civil que formulam o mesmo princípio, reconhecendo o «furto famélico» [1].

É preciso, porém, que o fato de se trazer à tona tal norma da Moral e do Direito não se torne ocasião de maior número de furtos e assaltos em nossa sociedade. Não sirva de justifi­cativa para que pivetes, «trombadinhas» e outros tipos de ladrões recrudesçam na prática do mal, recorrendo falsamente ao principio de S. Tomás evocado pela CNBB. A Campanha da Fraternidade, por seu nome mesmo, tenciona avivar os sen­timentos de fraternidade entre todos os homens, fomentando o perdão mútuo e a reconciliação; jamais poderá servir para incitar uns contra os outros ou para estimular o furor das ondas de assalto.

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NOTA:

[1] O que geralmente ocorre, pois se trata, na maioria dos casos, de retirar alimentos para matar a fome.

[2] A palavra “furto” aí ocorre impropriamente. Trata-se de um roubo materialmente falando, não, porém, em sentido formal ou estrito da palavra. Com efeito, tal “furto” não é algo de injusto, não fere a justiça; por isto não é roubo propriamente dito.