Conversões: Voltaire converteu-se na hora da morte?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 057/1962)

“Que há de certo sobre a morte de Voltaire? Ter-se-á finalmente convertido ao Catolicismo?”

François-Marie Arouet de Voltaire é um dos máximos cori­feus da Filosofia racionalista do séc. XVIII na França. Nascido em Paris aos 21 de novembro de 1694, veio a falecer aí aos 30 de maio de 1778. Empregou o seu talento satírico e seu apreciado estilo literário no combate à Igreja Católica; a sua atitude em relação a esta se exprime claramente no estribilho com que concluía muitas de suas cartas: «Aimez moi écrlinf» (em lugar de « … écrasez l’infame»), isto é, «Estimai a mim; esmagai, porém, a infame (a Igreja Católica)».

Depois de dominar o pensamento do seu século na qualidade de «Roi Voltaire» (rei Voltaire), terá morrido em trágicas circunstâncias: refere uma antiga versão que sofria atrozes dores físicas em seu leito de morte, às quais se associavam tremendas angústias de ânimo; vítima de furor e desespero, terá «comido os seus próprios excrementos e le­vado aos lábios o seu urinol, a fim de temperar a horrorosa sede que o atormentava». Isto tudo se haverá dado em castigo dos escárnios com que Voltaire tratava o Profeta Ezequiel; este, de fato, realizou gestos semelhantes a fim de predizer, de maneira dramática e simbólica, a extrema aflição e a miséria que haviam de acometer o povo de Israel no exílio (cf. Ez 4, 9-17). O filósofo francês, portanto, haverá morrido como viveu, isto e, na impenitência, proferindo imprecações e blasfê­mias contra Deus e a Igreja.

Eis, porém, que o periódico francês «Le Figaro Littéraire», em agosto de 1955, publicou cinco documentos recém-descober­tos por Jacques Donvez nos arquivos de um tabelião de Paris, documentos segundo os quais Voltaire em seu leito de morte terá retratado por completo os seus erros, fazendo, a seguir, uma con­fissão sacramental ao Pe. Gaultier (o jornal apresentava mesmo o «fac-simile» da retratação assinada por Voltaire e duas teste­munhas: o Pe. Gaultier e o Pe. Mignot, sobrinho do moribundo). Esta publicação naturalmente surpreendeu o público e provocou debates entre os historiadores, pois, enquanto uns afirmam que realmente Voltaire se converteu para a Igreja antes de morrer, outros guardam reservas nas suas conclusões, julgando que o teor dos documentos não é suficientemente claro para permitir tal asserção.

Contudo hoje em dia, após novo estudo dos textos e das fontes da história, já se pode reconstituir com certa segurança o trâmite dos acontecimentos que caracterizam o fim de vida de Voltaire: delimita-se assim o que há de certo e o que há de in­certo nesse setor. É a tal reconstituição que vamos agora proce­der, a fim de elucidar o caso na medida do possível.

1. O início da etapa final

Sabe-se que a última etapa da existência de Voltaire come­çou com a viagem que ele fez de Ferney para Paris, onde chegou aos 10 de fevereiro de 1778, tendo cerca de 84 anos de idade.

Desde os seus 27 anos não via mais a capital francesa; dessa vez ia visitá-la a convite de admiradores seus, que lhe queriam pro­porcionar o prazer de assistir à peça teatral da lavra de Voltaire mesmo: «Irene». A recepção foi apoteótica: acadêmicos, artis­tas, homens e mulheres nobres lhe prestaram todas as homena­gens; as ovações populares, retumbantes como eram, aclamaram em Voltaire «o protetor dos oprimidos, o apóstolo da tolerância universal»; um busto do filósofo foi coroado em vários teatros da capital. Depois da representação da tragédia «Irene», Voltaire interpelou o público nos seguintes termos: «Quereis sufocar-me debaixo das rosas!»

Até mesmo o embaixador Franklin, dos Estados Unidos, em Paris levou a Voltaire o seu netinho, o qual se ajoelhou diante do filósofo, pedindo-lhe a bênção. Voltaire estendeu então a mão sobre o menino, exclamando: «Deus e Pátria!». – São, porém, destituídas de funda­mento as noticias que falam de visita de bispos franceses ao corifeu racionalista.

Todo esse entusiasmo era talvez especialmente aguçado por pres­sentirem todos que o velho pensador estava no fim dos seus dias. Ele mesmo não se enganava a propósito: em suas cartas e bilhetes, nessa época, costumava chamar-se «o velho doente» e falava freqüentemente sobre a sua morte próxima.

Quanto às suas disposições de alma, ele as revelou em 25 de novembro de 1777, escrevendo a Frederico II da Prússia:

«Mais do que nunca experimento aversão para com a extrema­-unção e para com aqueles que a administram. Entrementes, prostro-me aos pés de V. Majestade e a invoco como consolador meu nesta vida e na outra».

Foi, pois, com esses sentimentos que Voltaire entrou na qua­dra final da sua vida.

2. Doença e «retratação»

Dias depois de chegar a Paris, o filósofo caiu doente e teve que se recolher ao leito. Foi então que entrou em cena o Pe. Gaultier.

Ardendo de zelo sacerdotal, Gaultier tinha o coração confrangido ao presenciar o triunfo da impiedade, como ele mesmo o refere poste­riormente em carta ao arcebispo de Paris:

«Dizia em mim mesmo: … Um homem que blasfemou contra a Re­ligião e que por seus escritos destruiu os bons costumes, é honrado, coroado e quase adorado? … Roguei ao Senhor que impeça os estragos que o Patriarca dos incrédulos podia causar na capital (Paris)».

Como capelão do Hospital dos Incuráveis em Paris, o sacer­dote resolveu destemidamente oferecer os préstimos da sua assis­tência ao «Patriarca dos incrédulos»; escreveu-lhe, pois, uma carta nesse sentido, datada de 20 de fevereiro de 1778. A missiva chegava a Voltaire em boa hora, pois o enfermo já se preocupava muito com os seus funerais e «não queria em hipótese alguma que seu cadáver fosse atirado ao monturo» (expressão do pró­prio Voltaire).

Por conseguinte, logo no dia 21 de fevereiro o doente res­pondia ao Pe. Gaultier em termos muito corteses, mas também muito imprecisos:

«Estou com oitenta anos; comparecerei em breve diante de Deus, Criador de todos os mundos. Se V. S. tem alguma coisa a me comunicar, considerarei como um dever e uma honra receber V. S. em visita, apesar dos sofrimentos que me abatem».

O Pe. Gaultier nesse mesmo dia foi ter com Voltaire, entre­tendo-se três quartos de hora à sua cabeceira, mas em conversa de mera cortesia. Isto, de resto, lhe bastava para que comuni­casse o ocorrido ao Vigário Geral de Paris, Pe. de l’Ecluse, e ao cura de São Sulpício, em cuja paróquia residia Voltaire; como re­sultado desses encontros, ficou deliberado que Voltaire deveria proferir uma retratação formal dos seus erros, caso quisesse receber os sacramentos da Igreja. –

Ora aos 26 de fevereiro escrevia de novo o enfermo ao Pe. Gaultier:

«V. S. me prometeu voltar para ouvir-me; rogo-lhe que venha desde que possível».

Note-se que a expressão «para ouvir-me», na linguagem da época, significava «para me confessar».

No dia seguinte, 27 de fevereiro, era a sobrinha de Voltaire, Mme. Denis, quem escrevia:

«Mme. Denis, sobrinha de M. de Voltaire, pede ao Pe. Gaultier, queira ir visitá-lo; ficar-lhe-á muito grata».

Ainda aos 27/II foi Gaultier procurar o doente, mas não o pode abordar. Voltou então no dia 2 de março; ao avistá-lo, o filósofo agarrou-lhe a mão e pediu-lhe que o ouvisse em confis­são.

A isto respondeu o sacerdote ser necessário antepor uma retratação, conforme as indicações do cura de S. Sulpício. Vol­taire não recusou, redigindo então e assinando o seguinte texto

«Eu, abaixo-assinado, declaro que, estando há quatro dias atacado de vômitos de zangue, na idade de oitenta e quatro anos, não me pude arrastar até a igreja. O Sr. Cura de S. Sulpicio, então, aos seus méritos anteriores quis acrescentar o de me enviar o Pe. Gaultier;

confessei-me a ele. Se Deus dispuser de mim, morrerei na santa Religião Católica, em que nasci, cheio da esperança de que a santa misericórdia de Deus se digne apagar todas as minhas faltas; e, dado que alguma vez tenha escandalizado a Igreja, peço perdão a Deus e a Ela».

Foi este o documento mais importante que «Le Figaro». (n° citado) publicou em 1955, dando margem, como se compreende, a debates. Já se conhecia, anteriormente, a existência dessa peça, mas somente por alto, não em seu teor original; fora depositada pessoalmente pelo Pe. Gaultier no cartório do tabelião de Paris.

Ao ler o texto, Gaultier se quedou pensativo: seria sufi­ciente retratação? Voltaire então acrescentou, de próprio punho, a observação:

«O Pe. Gaultier deu-me a saber o seguinte: certas pessoas asseveraram que eu havia mais tarde de protestar contra tudo que eu viesse fazer em perigo de morte. Em vista disto, declaro que nunca tive esse propósito de protestar e que se trata de um gracejo, gracejo hipócrita, aliás, de que têm sido vítimas, já desde muito, vários sábios mais ilus­trados do que eu».

O Pe. Gaultier, hesitando ainda sobre a suficiência do do­cumento, não quis proceder à confissão sacramental sem previamente o apresentar ao arcebispo de Paris, para saber se este o reconheceria ou não. Eis o trecho do relato em que o sacerdote expõe o resultado dessa consulta:

«O Sr. de Voltaire, entregando-me sua retratação, disse-me na pre­sença do Pe. Mignot de Villevieille: ‘Sem dúvida, Sr. Padre, V. S. está autorizado a publicá-la nos jornais; não me oponho a isso’. Respondi­-lhe: ‘Ainda não é tempo de o fazer’. Perguntou-me, a seguir, se eu estava contente. Dei-lhe, a saber que a retratação não me parecia sufi­cientemente ampla e que eu a comunicaria ao Sr. arcebispo de Paris. Foi o que fiz; mas esse virtuoso prelado não a julgou suficiente. Deixei uma cópia da mesma na sua residência de Conflans, onde ele então se achava. Depois fui ter com o pároco de S. Sulpicio para o informar do meu procedimento, dando-lhe uma cópia da retratação, que ele também não aprovou; entreguei-lhe ao mesmo tempo um bilhete de Voltaire, que lhe prometia seiscentas libras para os pobres da sua paróquia».

Diante das duas recusas, o Pe. Gaultier foi logo no dia se­guinte, 3 de março, procurar Voltaire, com a intenção de lhe pedir «retratação menos equívoca e mais explícita». Contudo não pode ser recebido. Repetiu a tentativa várias vezes, mas em vão; Voltaire estava rodeado de «amigos» («D’A…. D… », dizem os textos; seriam D’Alembert, Diderot ?).

Ainda aos 13, 15 e 30 de março o Pe. Gaultier escrevia car­tas em que se queixava de não o quererem receber em casa de Voltaire. Resolvera então aguardar novo chamado da parte deste, de mais a mais que entrementes o enfermo havia recupe­rado a saúde…

3. Redivivo…

Nos tempos subseqüentes à cura, como terá procedido Voltaire?

É o Pe. Gaultier quem o refere:

«Durante dois meses, Voltaire cometeu muita coisa que não me agradou e que eu talvez pudera impedir, se me fora dado entreter-me com ele».

E quais terão sido essas coisas desagradáveis?

O sacerdote relata que Voltaire foi oficialmente recebido na Maçonaria e se prestou às cerimônias de coroação do seu busto no teatro da Comédia Francesa, ato este que tinha nítido caráter de impiedade. Além disto, uma série de cartas do filósofo datadas dessa época revela que a retratação do dia 2 de março ou não foi sincera ou foi, por sua vez, «retratada». Eis um ou outro dos trechos mais significativos (note-se o estilo dissimulado e sa­tírico).

Ao rei Frederico II da Prússia (monarca racionalista, deturpador do Cristianismo) escrevia o doente redivivo, referindo-se às atitudes anticristãs do soberano:

«Eu não perderia a esperança de mandar proferir dentro de um mês o panegírico do Imperador Juliano (chefe da reação pagã contra o Cris­tianismo, de 361 a 363) … Vê-se, Majestade, que a opinião pública acaba por se esclarecer e que os indivíduos que se julgam destinados a obcecá-la não conseguem sempre vazar os olhos do público… (referên­cia aos cristãos, que não haveriam podido prevalecer contra a menta­lidade pagã)! Graças sejam dadas a Vossa Majestade! Vossa Majestade venceu os preconceitos, como derrotou seus outros inimigos… Triunfou da superstição (Cristianismo) e se tornou sustentáculo da liberdade germânica».

A De Vaines, pouco depois, se dirigia Voltaire:

«Os primeiros exemplares da obra ‘Pascal-Condorcet’ que chegarem do estrangeiro, serão para V. S. – Eis dois grandes homens: o primeiro, porém, era fanático, e o segundo um sábio».

Note-se que Pascal era cristão, ao passo que Condorcet professava ímpio racionalismo.

Em 16 de abril, eram as seguintes palavras enviadas ao Conde de Rochefort:

«Creio que o Pe. de Beauregard, pregador de Versailles, tido como jesuíta, me recusaria de bom grado a sepultura – o que é muito injusto, pois o público afirma geralmente que eu nada desejo tão ardentemente como poder enterrá-lo. Sendo assim, parece-me que ele me deveria semelhante cortesia».

Por fim, aos 16 de maio decantava Voltaire:

«Suporto com constância

Minha longa e triste existência,

Sem incorrer no erro da esperança».

Pois bem; já a esta altura do ano o desenlace do «Patriarca da in­credulidade» se aproximava a passos rápidos.

4. Doloroso fim. Conclusões

Por ocasião das mencionadas festas de coroação do seu busto, Voltaire, desejando criar em si vigor e euforia, tomou às ocultas dezoito xícaras de café! Este «tônico» reavivou nele os germens da doença latente. Passou a sofrer de insônia; deram­-lhe então um frasco de calmante na base de ópio; em vez de o ingerir em três ou quatro doses, liquidou-o todo de uma vez – o que mais agravou o seu estado. Os familiares chamaram o Dr. Tronchin para lhe assistir. Voltaire se prostrou no leito, pa­decendo cruciantes dores físicas e entregando-se a uma lingua­gem de injúrias e ofensas (as espantosas circunstâncias dessa situação são descritas pelo Dr. Tronchin nos termos que recor­damos no início desta resposta; o depoimento, porém, não tem merecido o crédito de bons historiadores, pois Tronchin, calvi­nista puritano como era, parece testemunha suspeita).

O fato contudo é que aos 30 de maio Voltaire pediu a pre­sença do Pe. Gaultier… Este sem demora foi ter com o enfêrmo, levando dessa vez o texto de nova retratação, retratação que o Pe. Mignot, sobrinho de Voltaire, examinara, comprome­tendo-se a obter para ela a assinatura de seu tio. A declaração assim rezava:

«Retiro tudo que eu tenha dito, feito ou escrito contra os bons cos­tumes, contra a Religião cristã (na qual tive a felicidade de nascer), contra a adorável pessoa de Jesus Cristo, cuja Divindade me acusam de haver atacado, contra a Sua Igreja, na qual desejo morrer.

Presto agora o desagravo devido em presença do público escandali­zado pelas obras que já há tantos anos vêm sendo publicadas com o meu nome. Este desagravo não é conseqüência de debilitação das minhas faculdades combalidas por adiantada idade, mas é fruto da graça de Jesus Cristo, da qual fui muito indigno; é ela que me faz ver o terrível perigo em que os delírios da minha imaginação me envolveram. Desejo que este desagravo seja publicado em todos os jornais e gazetas da Europa, a fim de que compense, tanto quanto possível, os escândalos que eu quisera destruir à custa mesmo dos poucos dias de vida que me restam.

Dado em Paris, aos 30 de maio de 1778, na presença do Sr. Cura de São Sulpício e do Pe. Gaultiere.

Levando essa fórmula, o Pe. Gaultier e o cura de São Sulpí­cio foram introduzidos no apartamento de Voltaire. Chegando-se perto do leito, o cura pôs-se a falar, mas sem resultado, pois o enfêrmo já não o reconhecia. Gaultier então tentou, por sua vez, estabelecer contato; é ele mesmo quem o narra:

«Voltaire apertou-me as mãos, e deu-me provas de confiança e ami­zade; contudo fiquei muito surpreso quando me disse: ‘Pe. Gaultier, peço-lhe que transmita minhas saudações ao Pe. Gaultier’. Continuou a dizer-me coisas que não faziam sentido. Assim percebi que estava deli­rando, e não lhe falei nem de confissão nem de retratação. Apenas pedi às pessoas presentes que me mandassem chamar de novo logo que voltasse a ter consciência de si. Prometeram-mo. Infelizmente, porém, eu, que esperava rever o doente, no dia seguinte recebi a notícia de que havia falecido três horas depois de o havermos deixado, isto é, no dia 30 de maio ás 11 h da noite.

Se eu suspeitasse de que havia de morrer tão rapidamente, não me teria afastado e haveria empregado todos os esforços para o ajudar a morrer devidamente. Faleceu, portanto, sem sacramentos; queira Deus, não tenha morrido sem conceber o autêntico desejo de os receber e de fazer a retratação de todas as manifestações de impiedade da sua vida» (extraído do relato dirigido pelo Pe. Gaultier ao arcebispo de Paris em 1° de junho de 1778).

Eis o que a documentação segura, incluindo os textos recém­-descobertos, permite dizer a respeito do desenlace de Voltaire.

As conclusões daí decorrentes se poderiam assim formular:

1) Voltaire não se retratou suficientemente nem no dia 2 de março, nem em data posterior. A retratação encontrada re­centemente em Paris foi, sim, assinada por ele e por duas tes­temunhas; contudo os seus dizeres são tão pouco precisos que não pôde no seu tempo (nem pode hoje) ser tida como genuína desdita dos erros e das blasfêmias anteriormente proferidos pelo «Príncipe dos incrédulos». Tal documento, portanto, não basta para se dizer que Voltaire morreu como católico.

2) O filósofo não se confessou nem no dia 2 de março nem no momento de sua morte.

3) Pode-se alimentar a esperança, expressa pelo Pe. Gaultier, de que o moribundo haja ao menos concebido o desejo sin­cero de se converter à fé e de reparar o mal cometido. Somente Deus sabe até que ponto esta esperança corresponde à realidade. Quanto a nós, tendo em vista apenas o desenrolar sensível dos acontecimentos, não possuímos base (seja lícito repetir) para asseverar que Voltaire haja morrido no grêmio da Santa Igreja. – Nessas condições, compreende-se que seu corpo não podia ser sepultado dentro do ritual fúnebre católico; o arcebispo de Paris e o cura de São Sulpício o declararam explicitamente; do seu lado, o bispo de Annecy proibiu, fosse inumado na igreja de Ferney, lugar em que Voltaire vivera muitos anos. Contudo, o Pe. Mignot, sobrinho do defunto, sendo Abade comendatário do mosteiro de Scellière, mandou transferir os despojos para este cenóbio e os fez sepultar em uma capela da Abadia.

Em 1791, a Assembléia Nacional da França decretou que Voltaire era digno das honras que convêm aos grandes vultos da história do gênero humano, e mandou trasladar as suas cinzas para o Panteon de Paris. A cerimônia se deu aos 11 de julho desse ano, havendo sido composto para essa ocasião um hino altamente significativo da mentalidade da época, hino do qual abaixo transcrevemos algumas estrofes (deixamo-las no seu teor original, porque, traduzidas, perderiam muito da sua expressão)

…………………………………………………

«Ah! ce n’est point des pleurs qu’il est temps de répandre;

C’est le jour du triomphe, et non pas des regrets.

Que nos chants d’allégresse accompagnent la cendre

Du plus illustre des Français.

………………………………………………..

Salut! mortel divin, bienfaiteur de la terre;

Nos murs, privés de toi, vont te réconquérir;

C’est à nous qu’appartient tout ce que fut Voltaire;

Nos murs l’ont vu naitre et mourir.

Ton souffle créateur nous fit ce que nous sommes;

Reçois le libre encens de la France à genoux;

Sois désormais le dieu du temple des grands hommes,

Toi qui les as surpassés tous.

…………………………………………………
Sur cent tons différents ta lyre enchanteresse,

Fidèle à la raison comme à l’humanité,

Aux mensonges brillants inventés par la Grèce

Unit la simple vérité.

……………………………………………………………………………………

Chantez, peuples pasteurs, qui des monts helvétiques

Vites longtemps planer cet aigle audacieux;

Habitants du Jura, que vos accents rustiques

Portent sa gioire jusqu’aux cieux.

Fils d’Albion, chantez; Américains, Bataves,

Chantez: de la raison célébrez le soutien.

Ah! de tous les mortels qui ne sont point esclaves

Voltaire est le concitoyen.»

……………………………………………………………………………………..

Esta peça ilustra bem um fato que se repete constantemente na história: quando os homens deixam de dar culto a Deus, pas­sam a adorar os próprios homens!