(Revista Pergunte e Responderemos, PR 308/1989)
Em síntese: Celebrou-se em 1987 o 1.200° aniversário do Concílio de Nicéia II, que definiu a legitimidade do culto de veneração (não adoração) das imagens sagradas. Os argumentos aduzidos pró e contra esta prática, durante a controvérsia iconoclasta, mostram que não se tratava apenas de uma modalidade do culto cristão, mas, sim, de afirmar ou não a genuinidade do mistério da Encarnação do Filho de Deus; isto se confirma pelo fato de que, para comemorar o fim da longa e árdua disputa iconoclasta, os ortodoxos instituíram a Festa da Ortodoxia – o que significa que a reta fé proclamada pelos Concílios anteriores foi de novo professada pelos defensores das imagens. – O presente artigo apresenta, entre outras coisas, os argumentos do Concilio de Nicéia II que apelavam para a Cristologia a fim de justificar a veneração das imagens.
Estas ainda desempenham papel importante em nossos dias, visto que o ser humano é psicossomático ou feito para passar do visível ao Invisível. Os cristãos orientais dedicam especial estima aos seus (cones, que eles cultuam como sacramentais e como complemento inseparável do S. Evangelho.
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Em 1987 completaram-se 1.200 anos da realização do Concílio de Nicéia II (04/09 a 23/10/787), que tratou do culto das sagradas imagens durante a árdua controvérsia iconoclasta[1]. Visto que tal data é importante e a confecção de imagens é assunto ainda hoje discutido em alguns ambientes, exporemos nas páginas seguintes: 1) o histórico da controvérsia; 2) a definição do Concílio de Nicéia II; 3) o significado do culto das imagens.
1. Traços da história da controvérsia
A Igreja dos três primeiros séculos era sóbria em relação a imagens, por dois motivos: 1) o Antigo Testamento proibia a confecção de imagens (cf. Ex 20,4s; Dt 4,15); 2) os povos pagãos adoravam ídolos (imagens divinizadas). Isto, porém, não quer dizer que não houvesse imagens nos recintos sagrados dos antigos cristãos; assim, por exemplo, os cemitérios de outrora apresentavam afrescos, geralmente inspirados pelo texto bíblico: Noé salvo das águas do dilúvio, os três jovens cantando na fornalha ardente, Daniel na cova dos leões, os pães e os peixes restantes da multiplicação efetuada por Jesus, o Peixe que simbolizava o Cristo…
No século IV o paganismo foi declinando fortemente, de modo que um dos fatores de reserva frente às imagens se dissipou: estas foram sendo confeccionadas em número crescente, tanto para excitar a piedade como para instruir o povo iletrado. Principalmente os orientais, e entre estes os monges, estimavam as imagens (ícones) não para adorá-las, mas para cultuar as pessoas assim representadas (Jesus Cristo, a Virgem Maria, os Santos…).
No século VII, porém, o islamismo (cuja era começa em 622) renovou o preceito do Antigo Testamento contrário às imagens. Este fato e eventuais abusos cometidos por cristãos com referência às mesmas, suscitou na Igreja a onda do iconoclasmo. Os Imperadores bizantinos, que julgavam ter a obrigação de intervir nos assuntos internos do Cristianismo, tomaram partido em favor dos iconoclastas, de modo que o culto das imagens foi proibido por leis do Império. Os monges e muitos fiéis reagiram a esta campanha – o que ocasionou violenta perseguição a partir de 726, quando o Imperador Leão III o Isáurico (717-741) decretou o afastamento das imagens sacras. A intenção do monarca não era apenas teológica, mas também, e muito mais, política: queria ser Imperador e Sumo Sacerdote (Basileus kai Hiereus eiml. Sou Imperador e Sacerdote, dizia Leão III); programava submeter totalmente ao seu poder a Igreja, inclusive os monges, que eram os mais tenazes defensores da liberdade eclesiástica. Assim a afirmação do culto das imagens tomou um significado muito amplo, pois equivalia à luta pela independência da Igreja frente ao cesaropapismo (ou ao despotismo imperial).[2]
A perseguição aos cultores das imagens devia estender-se até 843, passando por fases ora mais, ora menos violentas; foi a Imperatriz Teodora, regente em lugar de seu filho Miguel, quem conseguiu, uma vez por todas, pôr termo à controvérsia, dando pleno apoio às decisões do Concílio de Nicéia II (787). Antes de estudar as razões aduzidas por este, vejamos os argumentos utilizados pelos iconoclastas.
2. Os argumentos dos iconoclastas
Os adversários das imagens não apelavam apenas para o Antigo Testamento, mas elaboraram um arrazoado que, procedia de premissas teológicas centrais no Cristianismo, pois se prendia ao próprio mistério da Encarnação. Para entendê-lo, é preciso recordar as etapas por que passou o estudo da Cristologia (estudo da figura de Cristo).
2.1. Premissas cristológicas
Nos séculos I-III os bispos e pensadores cristãos procuraram formular o relacionamento de Jesus com o Deus único, que se revelara no Antigo Testamento: após diversas tentativas falhas, o Concílio de Nicéia I (325) definiu que Jesus Cristo é “Deus de Deus, luz de luz, gerado, não feito, consubstancial ao Pai, Ele por quem tudo foi feito”. No fim do século IV, o Concílio de Constantinopla I (381) afirmaria também a Divindade do Espírito Santo, “Senhor e Fonte de Vida, que com o Pai e o Filho é adorado e glorificado”.
Estava assim formulado o dogma da SS. Trindade: há um só Deus, cuja natureza é tão rica que ela se afirma em três Pessoas – Pai, Filho e Espírito Santo-, que não retalham a única natureza divina.[3]
O pensamento teológico voltou-se então para o mistério da Encarnação: como poderia Jesus, verdadeiro Deus, ser também verdadeiro homem? – Duas respostas errôneas se apresentaram:
– O Nestorianismo (do Patriarca Nestório, de Constantinopla) afirmava que em Jesus havia duas naturezas e duas pessoas (a divina e a humana) ou dois eu, unidos entre si por mero afeto. Esta doutrina, que não ressalva adequadamente a verdadeira noção de Encarnação, foi rejeitada pelo Concílio de Éfeso em 431. Este, fazendo eco à tradição anterior, proclamou Maria “Maria de Deus” (Theotókos) para afirmar que Maria não gerou apenas um homem, ao qual Deus se uniu afetivamente; Maria, como toda mãe, gerou uma pessoa, e esta pessoa era a de Deus Filho, que nela assumiu a natureza humana. Por conseguinte, Maria é a Mãe de Deus na medida em que Deus se quis fazer homem.
– O Monofisismo, do Patriarca Êutiques de Alexandria, levou a sentença de Éfeso ao extremo de dizer que em Jesus a unidade era tal que havia não somente uma pessoa, mas também uma natureza só (a Divindade absorvera a humanidade!). Tal doutrina foi condenada pelo Concilio de Calcedônia em 451, pois também não respeitava a verdadeira noção de Encarnação. Em conseqüência, o Sínodo Calcedonense proclamou haver em Cristo uma só pessoa, sim (como o Concílio de Éfeso afirmara), e duas naturezas (a Divina, eterna, e a humana, assumida no seio de Maria Virgem).
Os monofisitas insistiram na sua tese, declarando que em Cristo havia uma só vontade (a Divina), o que redundaria em afirmar uma só natureza (a Divina) em Jesus. Tal é a doutrina monotelita, que foi rejeitada pelo Concílio de Constantinopla III (681). Há, pois, em Jesus a vontade divina, eterna, e a vontade humana, inerente à humanidade assumida.
Estava assim devidamente expressa a fé católica nos mistérios da SS. Trindade e da Encarnação. – Ora é precisamente sobre este fundo de cena que se coloca a controvérsia iconoclasta, aparentemente secundária por versar sobre uma modalidade do culto cristão.
2.2. Que diziam os iconoclastas?
O iconoclasmo foi sistematicamente elaborado numa assembléia de 338 Bispos, que se denominou erroneamente “Concílio Ecumênico”, convocada pelo Imperador Constantino V Coprônimo (741-775) no ano de 753 para a localidade de Hieria (Constantinopla). Essa assembléia baseava-se sobre vários argumentos, dos quais o principal é o cristológico assim concebido:
Os Concílios de Éfeso e Calcedônia definiram que Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, tendo duas naturezas e uma só pessoa (divina). Ora, diziam os iconoclastas, quem tenta representar pictoricamente Jesus, procura compor uma imagem de Deus e do homem; assim comete um duplo sacrilégio: o primeiro é o de tentar representar a natureza divina ou a Divindade, que não pode ser representada; o segundo é o de misturar a natureza divina e a humana ou a Divindade e a humanidade, erro que Êutiques, monofisita, cometeu e que foi condenado em Calcedônia.
Se alguém redargüisse, afirmando que as imagens representam apenas a natureza humana de Jesus, que foi visível e palpável aos homens, os iconoclastas responderiam: este modo de pensar é o de Nestório, condenado em Éfeso; sim, diriam, a humanidade de Jesus pertencia ao Verbo de Deus e não pode ser separada deste nem representada independentemente deste. Quem julgue que pode representar só a humanidade de Jesus, atribui a esta uma existência própria (que ela não tem) ou faz dela uma pessoa; introduz assim uma quarta pessoa no mistério da SS. Trindade. Daí concluíam ser impossível representar pictoricamente Jesus Cristo sem incidir em alguma heresia (monofisismo ou nestorianismo). Quanto às imagens de Maria SS. e dos demais Santos, tornam-se ilícitas se a de Jesus é ilícita; quem as confecciona, recai no paganismo.
Foi para refutar tal argumentação que o Concílio de Nicéia II se reuniu de 04/09 a 23/10/787 sob a Imperatriz Irene, regente de seu filho Constantino VI e fiel amiga das santas imagens.
3. A doutrina do Concílio de Nicéia II
Este Concílio ecumênico[4] realizou-se em sete sessões e definiu a doutrina relativa às imagens aos 13/10/787. Transcreveremos o respectivo texto mais importante, ao qual se seguirão alguns comentários.
3.1. 0 texto conciliar
O documento oficial começa por referir o Símbolo de fé dos Concílios de Nicéia I (325) e Constantinopla I (381); professa as verdades promulgadas pelos Concílios anteriores e, a seguir, expõe o que nos interessa:
“Em poucas palavras, eis a nossa profissão de fé: conservamos, sem mudança, todas as tradições eclesiásticas, escritas e não escritas, que nos foram transmitidas. Uma destas é a confecção de imagens, que se concilia com a pregação do Evangelho, pois afirma a real, e não apenas aparente, Encarnação do Verbo de Deus; além do quê, é útil a nós, pois há uma correspondência entre o sinal e aquilo que é assinalado. Por isto, caminhando pela via régia, e seguindo em tudo o inspirado ensinamento dos Santos Padres e a Tradição da Igreja Católica, reconhecemos que o Espírito Santo habita nesta. Definimos com toda precisão e diligência que, como as representações da Cruz, assim também as veneráveis e santas imagens em pintura, em mosaico ou de qualquer outra matéria adequada, devem ser expostas nas santas igrejas de Deus (sobre os santos utensílios e os paramentos, sobre as paredes e os quadros), nas casas e nas estradas. O mesmo se faça com a imagem de Deus Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, com as da… Santa Mãe de Deus, com as dos santos Anjos e as de todos os Santos e justos. Quanto mais os fiéis contemplarem essas representações, mais serão levados a recordar-se dos modelos originais, a se voltar para eles, a lhes testemunhar… uma veneração respeitosa, sem que isto seja adoração, pois esta só convém, segundo a nossa fé, a Deus. Trata-se antes, de um culto semelhante ao que se presta à imagem da preciosa e vivifica Cruz, aos santos Evangelhos e aos outros objetos sagrados, honrando-os com a oferta de incenso e de lumes, como era usual entre os antigos; na verdade, a honra prestada às imagens passa aos seus protótipos; quem venera a imagem, venera a pessoa assim reproduzida.
Assim reforçamos o ensinamento dos nossos Santos Padres, ou seja, a Tradição da Igreja Católica, que pregou o Evangelho de uma extremidade à outra da terra. Assim somos seguidores de Paulo, do divino colégio dos Apóstolos e da santidade dos antepassados, ligados como estamos a tradição que recebemos (cf. 2Ts 2,15). … Por conseguinte, quem ousar rejeitar algo do que foi entregue às igrejas, sejam os Evangelhos, sejam imagens da Cruz, sejam imagens pintadas, sejam as santas relíquias dos mártires, ou quem ousar subverter alguma das legitimas tradições da Igreja Católica, ou quem desviar para usos profanos os vasos sagrados ou os santos mosteiros, ordenamos que, se forem bispos ou clérigos, sejam depostos; se forem monges ou leigos, sejam excomungados” (Denzinger-Schönmetzer, Enchiridion n° 600-603).
Reflitamos sobre tal texto.
3.2. Valor cristológico das imagens
A Declaração do Concílio de Nicéia II mostra que o uso das imagens na Igreja está ligado a concepções cristológicas. Com efeito, assim diz: “Uma das tradições é a confecção de imagens, que se concilia com a pregação do Evangelho, pois afirma a real, e não apenas aparente, Encarnação do Verbo de Deus”.
Já os iconoclastas queriam deduzir do mistério da Encarnação o não-uso das imagens. Como dito, argumentavam com o seguinte dilema: representando o Cristo, ou tentamos representar a sua natureza divina (que não pode ser representada) ou representamos a sua natureza humana (ou confundida com a Divindade ou separada e existente por si mesma); também esta outra alternativa é errônea, porque peca contra os Concílios de Calcedônia e Éfeso. – Ora os ortodoxos no Concílio de Nicéia II retomaram as definições de Calcedônia e Constantinopla III e assim raciocinaram: existe uma distinção entre natureza e pessoa, de modo que o dilema proposto pelos iconoclastas pode ser superado. Com efeito, a imagem não representa a natureza (divina ou humana), como afirmavam os iconoclastas, mas a pessoa de Jesus. A imagem é diferente do seu protótipo quanto à natureza (a imagem é madeira, pedra, gesso…, ao passo que o seu protótipo em Jesus Cristo é a Divindade ou é a humanidade), mas a imagem é semelhante ao seu protótipo quanto à Pessoa; a pessoa do Verbo Encarnado, e não as suas naturezas (divina ou humana), é que se acha representada nas imagens de Cristo. A imagem não é uma representação da natureza divina, nem da natureza humana, mas representa a Pessoa Divina encarnada: exprime os traços do Filho de Deus feito homem e tornado visível aos sentidos e, por conseguinte, representável pela arte. Os ícones são imagens de pessoas; cada pessoa possui a sua natureza própria. Na SS. Trindade, entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo existe distinção de pessoas, mas identidade da natureza divina. Na SS. Trindade o Filho difere do Pai pela sua pessoa; nas imagens, Ele difere do ícone pela natureza, ao passo que há identidade de Pessoa. Donde se segue que negar a legitimidade das imagens de Cristo é negar o próprio mistério da Encarnação e afirmar a legitimidade das mesmas, é professar a fé no mistério de Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem (uma só Pessoa em duas naturezas); é afirmar a fé na Encarnação do Filho de Deus.
Por isto a definição do Concílio de Nicéia II em favor das imagens é compêndio da verdade católica.[5]
É oportuno citar textos de S. João Damasceno que explicitam o pensamento dos doutores ortodoxos:
“Estaríamos realmente no erro se fizéssemos uma imagem do Deus invisível. Pois é impossível pintar o que é incorpóreo e invisível, o que não tem traços nem linhas sensíveis… Mas, depois que Deus, em sua bondade inefável, se encarnou e foi visto em carne na terra,… depois que Ele viveu com os homens, tendo assumido a natureza, a densidade, a figura, a cor da carne, nós não nos enganamos ao fazer a sua imagem” (115,1288).
“Represento Deus, o Invisível, não na medida em que é invisível, mas na medida em que se tomou visível em nosso favor, participando da carne e do sangue” (16,1236).
“Como fazer a imagem do invisível?… Enquanto Deus é invisível, não faças imagem dele. Mas, desde que vês o Incorpóreo feito homem, faze a imagem da forma humana; quando o Invisível se torna visível na carne, pinta a semelhança do Invisível”(I 8, 1237-40).
“Quando se trata de imagens, é preciso considerar a intenção daqueles que as confeccionam. Se a intenção é justa e reta e se as confeccionam para a glória de Deus e de seus Santos, por desejo da virtude, de fuga dos vícios e para a salvação das almas, é preciso recebê-las como imagens… livros dos ignorantes: é preciso venerá-las, beijá-las, saudá-las com os olhos, os lábios, o coração; trata-se da representação de Deus encarnado, ou de sua Mãe ou de seus Santos, companheiros dos sofrimentos e da glória do Cristo” (11 10,1293).
Outro aspecto da declaração conciliar se impõe à nossa consideração.
3.3. Valor sacramental das imagens
O texto de Nicéia II afirma: “Quanto mais os fiéis contemplarem essas representações, mais serão levados a recordar-se dos modelos originais e a se voltar para eles…” Acrescenta: “A honra prestada às imagens passa aos seus protótipos”. Isto significa que a representação de Jesus Cristo nas imagens é um instrumento de comunicação e de comunhão entre o fiel que contempla devotamente, e Aquele que é contemplado. Os cristãos orientais diriam que as imagens são o sinal de autêntica presença ou que, mediante os ícones, o Senhor atua sobre os fiéis infundindo nestes a sua graça. Com outras palavras: as imagens têm o valor de um sacramental[6]. Tal concepção era especialmente cara aos cristãos do Oriente, sobre os quais a filosofia de Platão exercia certa influência: sim, Platão afirma que em toda imagem existe algo da realidade representada ou toda imagem participa do protótipo (como em todo objeto belo existe uma participação da Beleza, em toda ação justa há uma participação da Justiça, em toda afirmação verdadeira existe a presença da Verdade…). Eis as observações de um bom conhecedor do assunto:
“Ao passo que no Ocidente a imagem santa serve para provocar certo impulso religioso e um piedoso estado de alma, mediante a descrição pictórica, a interpretação e a evocação do personagem representado, o ícone ortodoxo é um meio de comunhão entre aquele que ora e Deus, a Virgem ou os Santos; é um meio de aproximação em demanda da Divindade transcendente” (B. Ostrogorskij, L’Art Byzantin chez les Slaves, t. l. Paris 1930, p. 399).
Estas afirmações fazem eco a outra sentença do Concilio de Nicéia II:
“A Igreja Católica, embora represente com a pintura o Cristo em forma humana, não separa a sua carne da Divindade que se lhe uniu… Fazendo a imagem do Senhor, professamos a sua carne deificada e no ícone reconhecemos uma imagem representativa do seu protótipo. Por isto a imagem recebe o nome do protótipo na medida em que está em comunhão com ele; por isto também ela é venerável e santa”.
Estas concepções ainda são corroboradas por outra observação do Concilio de Nicéia II: vimos atrás que este propõe a comparação entre o culto prestado às imagens e aquele prestado ao Evangelho. Assim se explanaria a mente do texto conciliar: a única revelação de Deus exprime-se por dois canais distintos – a Palavra no Evangelho e a imagem na pintura. Um é inseparável do outro: as imagens explicam os Evangelhos, e os Evangelhos explicam as imagens. Aquilo que a Palavra comunica mediante o ouvido, a imagem o mostra silenciosamente através do olhar; ambos são instrumentos da Revelação Divina, que nutrem a fé; por isto são dignos de veneração e de culto,… culto que propicia a comunhão do homem com Deus. Pode-se mesmo dizer que, segundo os teólogos do Niceno II, a imagem não deve ser considerada primeiramente como um artefato que ilustra o Evangelho, mas sim como uma linguagem que corresponde ao Evangelho e à pregação viva do mesmo; a imagem está no nível do anúncio, tem significado litúrgico; é um sacramental; assim como os textos da Liturgia e a pregação não são mera repetição da S. Escritura, mas fazem que esta se torne viva e atual, assim a imagem, representando a história sagrada, transmite vivamente a realidade que esta contém. Observa L. Ouspensky: “A unidade da imagem e da palavra litúrgica tem importância capital, pois estes dois modos de expressão exercem um controle recíproco; vivem a mesma vida e têm no culto uma eficácia construtiva comum. A renúncia a um destes dois modos de expressão leva à decadência do outro” (La théologie de I’icone dans I’Eglise Orthodoxe. Paris 1982, p. 122).
Vejamos agora
4. A modalidade do culto das imagens
O culto é o reconhecimento e a proclamação da dignidade existente em alguém. Dirige-se primeiramente a Deus e, depois, a todas as pessoas e realidades às quais Ele comunica algo dos seus valores. O documento conciliar distingue dois tipos de culto: “Aqueles que contemplam as imagens, são levados a… testemunhar-lhes uma veneração respeitosa (timetikén prosktinesin), sem que isto seja adoração (alethinén latrlan), pois esta só convém, segundo a nossa fé, a Deus”. Donde se vê que o culto prestado às imagens não é de adoração, mas de respeito, veneração e obséquio.
Mais ainda: a veneração prestada às imagens é relativa, ou seja, referenciada ou dirigida a Cristo ou aos Santos. As imagens são apenas veículos que levam a mente adiante, ou são suportes que fazem os fiéis passar do visível ao Invisível.
5. Conclusão
A sentença do Concílio de Nicéia II, em 13/10/787, não pôs termo às disputas sobre o assunto. O Concílio foi contestado; os monges e fiéis ortodoxos ainda foram perseguidos. Somente aos 11/03/843, sob a regência da Imperatriz Teodora, um Sínodo reunido em Constantinopla com a participação do Patriarca Metódio proclamou definitivamente o valor do culto das imagens, sem encontrar ulterior oposição por parte dos Imperadores. No ano seguinte, ao se comemorar o primeiro aniversário desse feliz evento, os bizantinos instituíram a Festa da Ortodoxia, a ser celebrada no primeiro domingo da Quaresma (como de fato é até hoje). Esta decisão evidencia como os cristãos orientais entenderam a importância das imagens: o culto das mesmas seria uma afirmação das verdades centrais da fé, definidas pelos Concílios anteriores, desde o de Nicéia I; os mistérios da SS. Trindade e da Encarnação do Verbo estão implicitamente contidos nessa prática de piedade.
No Ocidente, os decretos do Concílio de Nicéia II suscitaram resistência devida a mal-entendidos e a imprecisa tradução das Atas conciliares. Aos poucos, porém, se implantaram sem restrições.
No século XVI, os Reformadores protestantes levantaram mais uma vez a questão do uso das imagens. Ao que o Concilio de Trento em 1563 respondeu reafirmando a validade do mesmo tanto para fins catequéticos como para sustento da piedade.
Nos últimos decênios, ou seja, após o Concílio do Vaticano II (1962-65), registrou-se certa aversão às imagens no próprio culto católico; algumas igrejas foram severamente despojadas das mesmas. Doutro lado, verifica-se que a religiosidade popular pede tal esteio, de tal modo que a falta de imagens e outros sacramentais em templos católicos faz que muitos vão procurar em outras correntes religiosas (especialmente nas afro-brasileiras) o que lhes é sonegado na Igreja Católica. Na verdade, as imagens correspondem à constituição psicossomática do ser humano, que foi feito para passar do visível ao Invisível: querer subtrair aos fiéis o recurso às imagens é não somente uma ofensa à Tradição e à fé católicas, mas é também violentar a natureza humana, sempre propensa a utilizar fotografias e pinturas para desenvolver suas faculdades.
É, pois, para desejar que a celebração do 1.200° aniversário do Concílio de Nicéia II seja ocasião para que mais nitidamente na Igreja Católica se reconheça o valor dos sacramentais, o caráter litúrgico e catequético dos mesmos, mormente se levarmos em conta a índole audiovisual da civilização contemporânea. Muito sabiamente a Igreja canta desde remota antigüidade: “Quando o vosso Filho se fez homem, nova luz da vossa glória brilhou para nós, para que, vendo a Deus com nossos olhos, aprendêssemos a amar o que não vemos” (Prefácio das Missas do Tempo de Natal).
Na confecção deste artigo, muito nos valemos do trabalho de Giuseppe Ferraro S.J.: II Concilio Niceno II nel suo XII centenário. Valore cristologico dei culto delle immagini, em La Civiltà Cattolica 3294 (19/09/84), pp. 450-461.
Ver ainda: E. Bettencourt, Diálogo Ecumênico, Ed. Lumen Christi, Caixa Postal 2666, 20001 – Rio (RJ), 1986 (20 ed.).
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NOTAS:
[1] Eikón, em grego, significa imagem, kláo quebrar. O iconoclasmo foi o movimento de quebra ou de combate ao uso das imagens.
[2] São João Damasceno ( + 749), um dos mais ardorosos defensores das imagens, respondia ao Imperador Leão III, cesaropapista:
“Decidir sobre assuntos da Igreja toca aos Sínodos e não aos Imperadores. Não foi a estes que Deus entregou o poder de ligar e desligar, mas aos Apóstolos e seus sucessores, pastores e doutores… Não aceito que os decretos do Imperador rejam a Igreja; esta tem sua lei nas tradições dos Padres, escritas e não escritas” (De haeresibus PG 94 II 16, 1304).
Ainda, citando Mt 22,17 (“Dai a César…”), escreve o mesmo doutor:
“Nós somos submissos a ti, Imperador, no que diz respeito à vida, às coisas deste mundo, aos impostos, às contribuições, etc., em tudo o que é da tua alçada na gestão dos nossos interesses terrestres; mas, no que concerne à instituição da Igreja, temos pastores, que nos falaram e que estabeleceram as instituições eclesiásticas” (ib. 11 12, 1297).
[3] As noções aqui pressupostas são filosóficas:
Por natureza entende-se aquilo que faz alguém ou alguma coisa ser aquilo que esse alguém ou essa coisa é; assim a racionalidade, para o homem. A natureza humana, por exemplo, é uma só, mas as pessoas humanas são bilhões. Donde se vê que há uma diferença entre natureza e pessoa.
Pessoa é aquilo que faz a natureza subsistir concretamente, pois a natureza não subsiste em si ou como tal. Pessoa é, pois, a natureza humana mais a sua subsistência ou é a natureza subsistente em determinado sujeito.
Estas noções se aplicam a Deus, contanto que se enfatize que a subsistência em três Pessoas não retalha a natureza divina, como a subsistência em muitas pessoas retalha a natureza humana.
[4] isto é, geral, representativo da Igreja universal e aprovado pelo Papa Adriano 1.
[5] Era esta a argumentação do santo monge Teodoro de Studion (+ 826), defensor das imagens e da liberdade da Igreja, que padeceu duras perseguições e cruéis flagelações. Como se vê, o raciocínio é filosófico e preciso, assaz diferente dos arrazoados do pensamento ocidental, mas certamente válido.
[6] Sacramental, na Teologia, é todo objeto ao qual a Igreja associa a valor da sua oração, pedindo que todos quantos o utilizarem sejam santificados na medida da fé e do amor com que o usarem. Assim os crucifixos, as medalhas, os terços…