Espiritismo: reencarnação ou ressurreição?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 390/1994)

 

 

Em síntese: A fé cristã não aceita a reencarnação, pois: 1) não há pro­vas empíricas da mesma (ninguém sabe onde e quando levou vida pregres­sa); 2) a S. Escritura e a Tradição da Igreja professam a ressurreição e não a reencarnação; cf. Hb 9,27.

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A ressurreição e temas conexos foram objeto de uma Declaração da Santa Sé datada de 17/5/79. Afirma, entre outras coisas, a ressurreição no fim dos tempos, e não logo após a morte do indivíduo; por ocasião desta, a alma espiritual e imortal se separa do corpo e entra em sua sorte definiti­va, aguardando a ressurreição na consumação da história, por ocasião da segunda vinda de Cristo. A vida póstuma das criaturas não é regida pelos critérios da eternidade (pois a eternidade só convém a quem não tenha ti­do começo e não terá fim, ou a Deus só), mas pelos critérios do evo (dura­ção de quem teve começo, mas não terá fim, como é a alma humana); há, pois, no além, uma sucessão de atos de conhecimento e amor não regidos pelo tempo astronômico, mas, sim, pelo evo ou pelo tempo psicológico. A fé cristã não aceita a reencarnação, pois: 1) não existem provas em­píricas da mesma (ninguém sabe onde e quando levou vida pregressa) e 2) a S. Escritura e a Tradição da Igreja professam a ressurreição e não a reen­carnação; cf. Hb 9,27. A ressurreição supõe um Deus bom, que fez a matéria e o corpo hu­mano, e chama o homem a gozar da sua sorte definitiva na qualidade de ser psicossomático ou espiritual e corpóreo (o homem não é um espírito que, por castigo ou em expiação de seus pecados, vive no corpo); Deus dá ao homem todas as graças necessárias para que, no decorrer desta vida, se possa preparar para a visão face-a-face da Beleza Infinita. Ao contrário, a reencarnação supõe ser a matéria ou o corpo cárcere ou sepulcro (soma = sema, sepulcro, em grego), do qual o homem se deve libertar por seus próprios esforços (se não o faz numa existência terrestre, deverá fazê-lo em outras); no caso da reencarnação fala-se de auto-sotería, em vez de hétero-sotería. A reencarnação está muitas vezes associada ao panteísmo (o homem seria uma centelha da Divindade envolvida na maté­ria má e tendente a se desprender da corporeidade).A doutrina da ressurreição foi, mais uma vez, afirmada pelo magisté­rio da Igreja mediante uma Declaração da Congregação para a Doutrina da Fé datada de 17/5/79. A fim de tornar clara a noção de ressurreição e as questões conexas, vamos, a seguir, transcrever os pontos decisivos desse documento, aos quais se proporá breve comentário.

1. O TEXTO DOS ARTIGOS DA DECLARAÇÃO

Eis os sete pontos doutrinais contidos no citado documento:

“Esta Sagrada Congregação, que tem a responsabilidade de promover e de defender a doutrina da fé, propõe-se hoje recordar aquilo que a Igreja ensina, em nome de Cristo, especialmente quanto ao que sobrevém entre a morte do cristão e a ressurreição universal:

1) A Igreja crê numa ressurreição dos mortos (cf. Símbolo dos Após­tolos).

2) A Igreja entende esta ressurreição referida ao homem todo; esta, para os eleitos, não é outra coisa senão a extensão, aos homens, da própria Ressurreição de Cristo.

3) A Igreja afirma a sobrevivência e a subsistência, depois da morte, de um elemento espiritual, dotado de consciência e de vontade, de tal mo­do que o ‘eu humano’ subsista, embora entrementes careça do complemento do seu corpo. Para designar esse elemento, a Igreja emprega a pala­vra ‘alma’, consagrada pelo uso que dela fazem a Sagrada Escritura e a Tra­dição. Sem ignorar que este termo é tomado na Bíblia em diversos signifi­cados, Ela julga, não obstante, que não existe qualquer razão séria para o rejeitar e considera mesmo ser absolutamente indispensável um instrumen­to verbal para sustentar a fé dos cristãos.

4) A Igreja exclui todas as formas de pensamento e de expressão que, se adotadas, tornariam absurdos ou ininteligíveis a sua oração, os seus ritos fúnebres e o seu culto dos mortos, realidades que, na sua subs­tância, constituem lugares teológicos.

5) A Igreja, em conformidade com a Sagrada Escritura, espera ‘a glo­riosa manifestação de nosso Senhor Jesus Cristo’ (cf. Constituição ‘Dei Verbum’ l, 4), que Ela considera como distinta e diferida em relação àque­la condição própria ao homem imediatamente depois da morte.

6) A Igreja, ao expor a sua doutrina sobre a sorte do homem após a morte, exclui qualquer explicação que tirasse o sentido à Assunção de Nossa Senhora naquilo que ela tem de único, ou seja, o fato de ser a glorificação corporal da Virgem Santíssima uma antecipação da glorificação que está destinada a todos os outros eleitos.

7) A Igreja, em adesão fiel ao Novo Testamento e à Tradição, acredi­ta na felicidade dos justos que estarão um dia com Cristo. Ao mesmo tem­po Ela crê numa pena que há de castigar para sempre o pecador que for privado da visão de Deus, e ainda na repercussão desta pena em todo o ser do mesmo pecador. E, por fim, Ele crê existir para os eleitos uma even­tual purificação prévia à visão de Deus, a qual no entanto é absolutamente diversa da pena dos condenados. É isto que a Igreja entende quando Ela fala de inferno e de purgatório”.

O leitor percebe que o assunto em pauta (ressurreição dos corpos) não é de ordem filosófico-racional, nem é de ordem experimental, mas se situa estritamente no plano da fé.

Isto quer dizer que qualquer dúvida a respeito há de ser dirimida não por recurso a princípios filosóficos, mas por consulta ao depósito da fé, que é a Palavra de Deus transmitida pela Tradição oral e pela Tradição escrita.

Ora a Escritura insinua a tese da ressurreição dos corpos por ocasião da segunda vinda do Senhor ou da consumação dos tempos. Tenham-se em vista os dizeres de:

1 Cor 15,22-24: “Assim como todos morrem em Adão, em Cristo to­dos receberão a vida. Cada um, porém, em sua ordem: como primícias, Cristo; depois, aqueles que pertencem a Cristo, por ocasião da sua vinda. A seguir, haverá o fim, quando Ele entregar o reino a Deus Pai, depois de ter destruído todo Principado, toda Autoridade, todo Poder”.

Jo 5,25.28s: “Em verdade, em verdade, eu vos digo: vem a hora – e é agora – em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus, e os que a ouvi­rem, viverão… Não vos admireis com isto: vem a hora em que todos os que repousam nos sepulcros, ouvirão a voz do Filho do homem e sairão: os que tiverem feito o bem, para uma ressurreição de vida, os que tiverem cometi­do o mal, para uma ressurreição de condenação”

1Ts 4,16s: “Quando o Senhor, ao sinal dado, à voz do arcanjo e ao som da trombeta divina, descer do céu, então os mortos em Cristo ressus­citarão primeiro, em seguida, nós, os vivos que estivermos lá, seremos arre­batados com eles nas nuvens para o encontro com o Senhor nos ares”.

Quanto à Tradição oral ou à Palavra de Deus viva, que berçou e acompanha a Escritura através dos séculos, possuindo seu órgão autêntico no magistério da Igreja, tem professado a ressurreição tão somente por ocasião da parusia. A Declaração que estamos analisando, é precisamente a expressão da consciência que a Igreja tem desta verdade; o magistério quis reafirmar tal consciência precisamente num momento em que vinha sendo contraditada por teorias estranhas.

2. RELENDO O DOCUMENTO…

Como dito, a Declaração compreende sete artigos decisivos, que pas­samos a aprofundar.

2.1. A ressurreição dos mortos (art. 1 e 2)

Os artigos 1 e 2 reafirmam a ressurreição dos mortos, professada por São Paulo (1Cor 15) e pelo Símbolo da Fé desde as suas mais antigas for­mulações.

O cristão não é dualista nem reencarnacionista. Julga que a matéria é criatura de Deus, de tal modo que ela integra a realidade do homem; este é psicossomático, a tal ponto que não se consuma como anjo nem como espírito desencarnado, mas como ser composto de espírito e matéria ou de alma e corpo.

Como se compreende, o espírito não deve ser concebido como fluido energético ou corrente elétrica, mas, sim, como ser incorpóreo, inextenso (sem figura, sem dimensões, sem peso), dotado de inteligência e vontade, não morre ou não se dissolve, porque não é composto. Distinguimos três tipos de espírito:

incriado: Deus

Espírito criado para viver sem corpo: anjo

para se realizar plenamente no corpo ou na matéria: alma humana.

Vê-se, pois, que o conceito de espírito é mais amplo que o de alma. A alma humana é espírito ou espiritual, mas nem todo espírito é alma humana.

A teoria da reencarnação, afirmando que o espírito humano volta ao corpo em sucessivas reencarnações para se purificar, é dualista; supõe ser o corpo um cárcere ou um instrumento de punição. Apregoa como ideal a definitiva desencarnação. Ora isto não é cristão, nem se pode fundamentar sobre provas objetivas.

2.2. A sobrevivência póstuma (art. 3)

Que acontece logo após a morte ou o desenlace terrestre do ser humano?

1. O art. 3° “afirma a sobrevivência, depois da morte, de um elemen­to espiritual, dotado de consciência e de vontade, de tal modo que o eu humano subsista, embora entrementes careça do complemento do seu corpo”.

Esta afirmação supõe que o homem seja um composto de corpo e al­ma. Aquele, sendo material, desgasta-se. Quando já não tem condições de ser sede da vida humana, a alma se separa dele e continua a viver (sobrevive), enquanto o corpo é sepultado. A alma traz em si os constitutivos do eu humano, isto é, consciência e vontade.

Esta afirmação da igreja exclui diretamente a tese segundo a qual após a morte a alma humana entra em estado de inconsciência ou sono, como pensavam os israelitas de outrora e alguns autores protestantes (cf. O. Cullman e Ph. H. Menoud…). Na verdade, a morte não extingue a luci­dez consciente do ser humano nem a sua capacidade de aderir voluntaria­mente ao fim supremo que ele tenha escolhido.

A mesma afirmação exclui também a tese da ressurreição logo após a morte, muito propalada em nossos dias. O texto menciona apenas a sobre­vivência de um elemento espiritual chamado alma, sem mencionar a imediata reunião de alma e corpo. Esta é diferida para o fim dos tempos, co­mo se verá pouco adiante ao estudarmos os artigos 5 e 6.

A tese da ressurreição logo após a morte carece de fundamentação bíblica. As Escrituras do Novo Testamento prevêem a ressurreição para o fim dos tempos; cf. 1 Cor 15,22:

‘Assim como todos morrem em Adão, em Cristo todos receberão a vida. Cada um, porém, em sua ordem: como primícias, Cristo; depois, aqueles que pertencem a Cristo, por ocasião da sua vinda”. Cf. 1 Ts 4,16.

2. Há quem queira defender a tese da ressurreição logo após a morte referindo-se à antropologia semita. Esta não conhece vida consciente sem corpo; não admitiria a possibilidade de existência lúcida para a alma separada do corpo. Ora, dizem, tal é a concepção bíblica. A idéia de “alma se­parada do corpo” seria oriunda da filosofia grega platônica, dualista, não bíblica. Por conseguinte, não poderia ser defendida numa genuína teolo­gia bíblica.

A isto respondemos:

1) A S. Escritura não tenciona adotar determinado sistema filosófico com exclusão de outros. Se a antropologia do Antigo Testamento freqüen­temente acentua a corporeidade do homem, a do livro da Sabedoria admite alma sem corpo (cf. Sb 4 e 5) e a do Novo Testamento é assaz variada; São Paulo chega a propor diversas concepções antropológicas, que ele não procura conciliar entre si; cf. 1Ts 5,23; GI 5,16s; 1Cor 2,11-15. Por isto é inconsistente o argumento segundo o qual a fidelidade à S. Escritura im­põe determinada concepção antropológica ou exclui a tese de alma separa­da do corpo.

2) Algumas correntes de pensamento gregas eram dualistas (a pitagó­rica, a órfica, a platônica…), isto é, admitiam oposição ontológica entre al­ma e corpo. Todavia o pensamento de Aristóteles propunha a distinção entre corpo e alma sem dualismo, ou seja, afirmando a união harmoniosa de corpo e alma no homem.

Aliás, faz-se mister não confundir dualismo e dualidade. O pensamen­to bíblico e cristão não é dualista (não admite oposição ontológica entre corpo e alma), mas é dual, isto é, admite a real distinção e separabilidade de corpo e alma, embora afirme que ambos são partes complementares do composto humano. A dualidade (que não é dualismo) é fato óbvio na natureza: homem e mulher, dia e noite, frio e calor, verão e inverno…

2.3. Ressurreição dos mortos e consumação universal (art. 5 e 6)

1. Atese de que a ressurreição dos mortos não ocorre logo após a morte, mas é diferida para o momento da consumação universal, vem insi­nuada pelos artigos 5 e 6 da mencionada Instrução:

1) O artigo 6 “exclui qualquer explicação que tire à Assunção de Nossa Senhora o que ela tem de único e singular” ou “o fato de ser a ante­cipação da glorificação que tocará a todos os outros eleitos”.

Em conseqüência, se a glorificação de Maria é algo de único e anteci­pativo, deve-se dizer que os outros eleitos não são glorificados, como Ma­ria, logo depois da morte, mas só o serão no fim dos tempos.

2) O artigo 5 ensina que “a gloriosa manifestação de Nosso Senhor Jesus Cristo é distinta e diferida em relação àquela condição própria do homem imediatamente depois da morte”.

Distinta… Esta afirmação opõe-se à tese que propõe a identidade do juízo particular e do juízo universal.

Diferida, isto é, postergada, adiada… Estes dizeres enfatizam a exis­tência da chamada “escatologia intermediária” e afirmam que, mesmo de­pois da morte, há uma expectativa da parte do ser humano.

Com outras palavras: a morte não dá ao ser humano a fruição da eternidade, mas, sim, a da imortalidade em sua forma definitiva. Tal afirmação opõe-se à tese de Karl Barth e Emil Brunner, protestantes, bem como à de autores católicos, segundo os quais a morte põe o homem fora do tempo; por conseguinte, não haveria distância temporal entre a morte do indivíduo e a consumação da história ou a segunda vinda de Cristo.

2. Faz-se mister esclarecer nitidamente a concepção de escatologia intermediária.

1) Somente Deus é eterno e frui da eternidade. Com efeito, a eterni­dade não é uma duração indefinidamente longa, mas é a posse simultânea de todo o respectivo ser ou da respectiva existência. Ora somente Deus é tal; só Deus não tem passado nem futuro: só Deus possui simultaneamen­te toda a sua existência. Nenhuma criatura goza deste privilégio, pois toda criatura, pelo fato mesmo de ser criatura, teve começo; uma porção da existência de cada homem já passou e não voltará a ser presente (nem mes­mo depois da morte) e outra porção da existência de cada homem é futura e ficará sendo futura.

2) Com outras palavras: o ser humano, depois da morte, emancipa-se do tempo ou da sucessão de dia e noite imposta pelo movimento dos as­tros, mas nem por isto entra na posse simultânea de toda a sua existência (peculiaridade exclusiva do Eterno ou de Deus); a existência da criatura emancipada do tempo é chamada o evo ou a eviternidade. No evo há su­cessão… não, porém, de dias e noites ou de momentos cronológicos, mas de atos de maior ou menor intensidade. Pode-se dizer que, contemplando a Deus face-a-face, o justo descobre sempre algo de novo; Deus só não é novo para si mesmo.

Não se deve, portanto, crer que, morrendo, o ser humano já experi­menta o que ainda deverá acontecer no fim dos tempos ou já toca a paru­sia (a gloriosa manifestação de Nosso Senhor Jesus Cristo); ele a aguarda, solidário com os irmãos que ainda realizam a história do mundo; ele viverá a consumação da história juntamente com seus irmãos que ainda são pere­grinos.

Aliás, não se entende que alguém, morrendo em 1994, já atinja a consumação da humanidade que ocorrerá em época incerta para nós, com a provável participação de gerações humanas que ainda não vieram à exis­tência real.

2.4. Céu, inferno e purgatório (art. 7)

A morte vem a ser a passagem ou o acesso do ser humano à sua sorte definitiva. Esta pode ser a bem-aventurança plena ou a visão de Deus face-­a-face ou a frustração definitiva, chamada “inferno”. O purgatório é concebido como estágio prévio à bem-aventurança final para quem ainda não esteja purificado de todo resquício de pecado.

Vejamos de per si cada qual destes estados póstumos:

1) Céu… É o encontro com o Senhor Deus sem intermediário nem símbolo; é a contemplação face-a-face da Beleza Infinita. O documento em pauta chama a atenção do cristão para dois pontos importantes:

– há continuidade entre a vida presente e a póstuma; a visão de Deus face-a-face ocorrerá na proporção do grau de amor a Deus com que cada qual morrer; colheremos no além o que tivermos semeado no aquém;

– há também uma ruptura radical entre a realidade presente e a pós­tuma, pois o regime da fé será substituído pelo da plena luz. A visão ime­diata do mistério de Deus é algo que “o olho jamais viu, o ouvido jamais ouviu e o coração do homem jamais percebeu” (1 Cor 2,9). A S. Escritura insinua essa realidade póstuma mediante figuras, que merecem todo o res­peito, mas devem ser tidas como tais, evitando-se a propósito os devaneios da fantasia.

2) Inferno… O inferno nada tem a ver com imagens populares de tan­que de enxofre fumegante, nem é algo criado por Deus. Vem a ser a frus­tração total ou a separação de Deus resultante de livre opção da criatura na terra.

Com outras palavras: todo ser humano foi naturalmente feito para o Bem Infinito; este, explicita ou implicitamente, exerce um tropismo sobre todo homem, à semelhança do Norte que. atrai a agulha magnética da bús­sola. Se alguém, usando da sua livre vontade, diz Sim a esse Norte (= Deus), encontra repouso e plenitude… Se, porém, voluntariamente lhe diz Não e é encontrado pelo Senhor numa atitude final de repulsa consci­ente e voluntária, terá o definitivo distanciamento de Deus. É isto que se chama inferno; a própria criatura a ele se condena, sem que o Senhor Deus necessite de proferir alguma sentença.

Esse estado é definitivo e sem fim, porque a alma humana é, por si mesma, imortal. O seu estado infernal só terminaria

– se o Senhor aniquilasse a criatura (o que seria contrário à sabedo­ria do Criador);

– se o Senhor forçasse a vontade da criatura a dizer-lhe um Sim pós­tumo, contrário à livre opção da mesma (ora o Senhor, que deu a liberda­de ao homem, não lha retira);

– se o Senhor cessasse de amar a criatura e deixasse de lhe aparecer como o Sumo Bem; então o pecador se fecharia em si mesmo ou no seu egoísmo sem experimentar a atração de Deus. Todavia o Senhor não pode deixar de amar o homem, porque Ele é incapaz de se contradizer; Ele não pode dizer Não após ter dito Sim; o seu amor é irreversível.

Eis o que se entende por inferno numa lúcida concepção teológica. Vê-se que tal estado, longe de ser incompatível com a santidade de Deus, resulta precisamente do fato de que Deus ama a criatura,… e a ama divinamente, isto é, sem se poder desdizer e sem poder retirar-lhe o seu amor; cf. 2Tm 2,11-13.

3) Purgatório… Este não há de ser concebido como condenação ou à semelhança do inferno.

Entende-se do seguinte modo:

Se alguém ama fundamentalmente a Deus, mas é incoerente, alimen­tando negligentemente falhas e imperfeições porque não tem a coragem de extirpá-las, uma tal pessoa, ao morrer, não é rejeitada pelo Senhor Deus; está voltada para Ele, embora portadora de covardia e certa tibieza. Toda­via não poderá passar diretamente para a visão face-a-face de Deus, pois na presença do Santo não subsiste a mínima sombra de falha. Terá, pois, que se purificar das escórias do pecado, fazendo na vida póstuma o que por negligência deixou de fazer na vida presente.

Essa purificação póstuma nada tem que ver com fogo. Ela se realiza mediante arrependimento sincero, que faz o amor de Deus penetrar em to­das as camadas da personalidade nas quais subsistia o amor próprio desre­grado. Pode ser ilustrada por uma lenda hindu, que assim reza:’

Certo mendigo, sentado à margem da estrada, viu certa vez a carrua­gem do rei aproximar-se. Imediatamente pôs-se a pensar que chegara o seu grande dia, pois o monarca haveria de tirá-lo da sua miséria e lhe daria ricos presentes. Aconteceu, porém, que, descendo da carruagem, o rei se lhe chegou e pediu-lhe um pouco de trigo! O mendigo sentiu terrível decep­ção, mas não se pôde furtar ao soberano; catou, pois, entre os grãos conti­dos na sua bolsa, o menor de todos, e o entregou ao monarca… Todavia, quando o pobrezinho, no fim do dia, abriu a sacola para fazer o balanço da jornada, verificou que, entre seus grãos de trigo, havia um de ouro; era o menor de todos… Compreendeu então que fora mesquinho e que, se ele tudo tivesse dado ao rei, estaria rico de ouro e livre de apuros. Imedia­tamente então pôs-se a repudiar o egoísmo e a incompreensão; purificou-se dos mesmos, prometendo a si nunca mais ceder aos maus sentimentos…

Esta imagem elucida, ao menos à distância, o que se pode entender por purificação póstuma: é o repúdio decido e radical de toda incoerência alimentada, mais ou menos conscientemente, no decorrer da vida terrestre. Deve-se à misericórdia divina, que oferece à criatura uma ocasião póstuma de fazer o que devia ter feito no momento oportuno, ou seja, enquanto peregrina neste mundo. É durante a vida presente que toca à criatura pre­parar a veste nupcial, de modo a passar diretamente deste mundo à “ceia da vida eterna”.

Vê-se assim também que o conceito de purgatório é algo de lógico e harmonioso no contexto do sábio plano de Deus.

2.5. Sufrágios pelos mortos (art. 4)

Eis o teor do artigo:

AIgreja exclui todas as formas de pensamento e de expressão que, adotadas, tornariam absurdos ou ininteligíveis a sua oração, os seus ritos fúnebres e o seu culto dos mortos, realidades que, na sua substância, cons­tituem lugares teológicos”.

Com outras palavras: a Liturgia é um “lugar teológico”, isto é, um documentário que atesta a fé da Igreja e serve de referencial ao teólogo pa­ra elaborar suas teses. Ora a Liturgia, desde remotas épocas, supõe a purifi­cação póstuma, o céu e o inferno; além disto, ela professa, com a S. Escri­tura, a ressurreição universal no fim dos tempos. Os sufrágios realizados pelos defuntos não pretendem pedir, sem mais, ao Senhor que abrevie a esta­da dos fiéis no purgatório (este não é um lugar, mas um estado do qual não se contam dias nem anos), mas rogam a Deus que o amor tíbio e covarde pos­sa penetrar até o âmago da personalidade de quem já passou para a outra vida. Esses sufrágios podem ter efeito retroativo, aplicando-se aos fiéis que deles necessitem e na medida em que necessitem.

De resto, a respeito do purgatório, como também no tocante à vida póstuma em geral, a S. Igreja recomenda sobriedade de concepções e afir­mações. A fé revela o essencial e suficiente para a orientação do cristão; abstenham-se os fiéis e os teólogos de devaneios imaginosos.

3.CONCLUSÃO

Eis, em poucas palavras, o conteúdo do documento da Congregação para a Doutrina da Fé sobre a escatologia. Tenciona dirimir dúvidas e fir­mar a fé dos cristãos em pontos de importância capital. O cristão vive mais em função do futuro do que do passado. É a expectativa dos valores defi­nitivos (já presentes em gérmen na vida terrestre) que norteia o comporta­mento diário do discípulo de Cristo.

A S. Igreja insiste em que os teólogos, pregadores e catequistas trans­mitam com fidelidade os ensinamentos da reta fé. Os teólogos hão de pes­quisar, sem dúvida, em espírito de comunhão com a S. Igreja. Quanto aos catequistas e pregadores, abstenham-se de novidades que não condigam com as verdades atrás expostas.

A propósito:

BETTENCOURT, E., Curso de Novíssimos ou Escatologia, Escola “Mater Ecclesiae”, Caixa Postal 1362, 20001-970 – Rio de Janeiro (RJ).

BOBOS, L, Mysterium Mortis. Olten 1962.

CULLMANN,O., Immortalité de I’âme ou Résurrection des morts? — Neuchâtel – Paris 1956.

POZO, C., Teologia dei más aliá. Coleção BAC n9 282. -La Edito­rial Catolica, Madrid 1968.

 

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