Eutanásia: paciente terminal e eutanásia

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 342/1990)

Em síntese: A Moral católica (como também a Medicina) distingue eutanásia direta ou positiva e eutanásia indireta ou negativa. Aquela consiste em infligir a morte a um paciente a título de lhe aliviar as dores; é sempre ilícita, pois a vida humana é propriedade de Deus, de modo que ao homem não compete eliminar a vida de um inocente, nem mesmo no intuito de lhe minorar o sofrimento (alegação esta, por vezes, ambígua). Quanto à eutaná­sia indireta, consiste em suspender os meios que ainda entretêm a vida de um paciente; tais meios podem ser ordinários ou extraordinários, ou melhor, meios proporcionais à probabilidade de melhora ou recuperação ou meios desproporcionais Diz-se que um recurso é desproporcional quando exige aparato humano, material ou financeiro altamente difícil ou penoso em vista de exíguo ou nulo resultado médico. Pois bem; a Moral católica não se opõe à suspensão dos recursos desproporcionais; lembra, porém, o dever de oferecer ao paciente os meios rotineiros de entreter, a vida (alimentação, injeções, soro…). – É aos profissionais da medicina que compete julgar a proporção ou a desproporção existente entre determinado meio terapêutico e as probabilidades de êxito daí decorrente.

O uso de analgésicos é lícito, contanto que não impeça por completo o paciente de dispor de suas faculdades mentais; no fim da vida terrestre, é importante que todo ser humano tenha condições psíquicas para pôr em ordem qualquer problema que ainda exija providências, seja no plano mate­rial, seja no plano ético e espiritual.

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Nos últimos tempos esteve de novo em foco a eutanásia ou a morte suave voluntariamente induzida pelo médico a pedido do paciente ou de seus familiares.

Com efeito. A revista VEJA, em sua edição de 22/08/1990, pp. 5-7, publicou a entrevista do Dr. Pieter Admiraal, médico holandês, que defende e pratica a eutanásia à revelia das leis do seu país. Eis alguns de seus depoi­mentos:

“Eu só pratico a eutanásia quando já foram esgotados todos os recur­sos médicos para salvar o paciente. Apenas nos casos de sofrimento profun­do é que aceito a prática da morte voluntária. Não sou um criminoso. Cri­minoso é o médico que permite que seu paciente que sofre de câncer de garganta, morra sufocado”.

‘A morte tranqüila é uma chance para aquele paciente que está so­frendo e já se sabe que não poderá ser salvo. Para que prolongar o sofrimen­to? A eutanásia não deve ser vista como uma atrocidade, uma violação dos direitos humanos ou coisa semelhante. Ela deve ser encarada como mais um tratamento médico, aquele de que o paciente necessita mais… A eutanásia é uma solução”.

“Eu sei o que é sofrer de um mal incurável, como o câncer ou a Aids. Mas eu não faria eutanásia num filho meu ou em minha mulher. Com mi­nha família, eu não conseguiria ser 100% profissional. Então entregaria a ta­refa a um colega, que poderia cuidar tão bem deles quanto eu cuido dos meus pacientes”.

Além desta entrevista, suscitou comentários o caso do Juiz Dr. Eduar­do Mayr, do Rio de Janeiro, que queria fosse permitido, por lei, a um cida­dão pedir a eutanásia para si mesmo quando estivesse em fase terminal:

“Eduardo Mayr enfatiza que a decisão sobre o fenômeno da morte é algo pessoal e deve ser tomada individualmente. A decisão de escrever uma declaração de vontade a favor da eutanásia surgiu depois que Eduardo Mayr assistiu às reportagens sobre a ‘máquina do suicídio’ inventada por um mé­dico americano” (O GLOBO, 9/9/90, 19 cad. p. 19).

Vejamos o que a respeito se há de pensar a partir da fé católica.

A posição da Igreja

Aos 5 de maio de 1980, a Congregação para a Doutrina da Fé emitiu uma Instrução na qual firmou a posição da Moral católica sobre a eutanásia. Sumariamente, o texto distingue entre eutanásia direta e eutanásia indireta.

A eutanásia direta é o ato de infligir a morte a um paciente terminal mediante um recurso explicitamente mortífero. Tal ato é sempre ilícito, porque o homem não tem direito sobre a sua vida nem sobre a do irmão inocente. Nenhuma situação aflitiva, por mais crucial que seja, justifica a eutanásia direta. O motivo de compaixão, geralmente alegado, é ambíguo ou, por vezes, ilusório; pode ser simplesmente o título colorido que o egoísmo assume: não raro os familiares podem querer ver-se livres de um paciente terminal ou porque causa despesas pesadas ou porque exige vigilân­cia constante ou porque há pressa em partilhar a herança.. .

O que, em casos de agudo sofrimento, a Moral católica aceita ou mes­mo recomenda, é o uso de analgésicos. Importa, porém, que estes não impe­çam por completo o paciente de dispor de suas faculdades mentais. Esta cláusula é importante, visto que o ser humano deve poder enfrentar a con­sumação de sua vida terrestre de maneira lúcida e consciente; possa sanar qualquer ferida que tenha infligido ou que haja sofrido; possa dizer aos seus a respectiva mensagem final (principalmente se é pai ou mãe de família, chefe de algum grupo ou criador de alguma obra); possa enfim subscrever de maneira humana e cristã o livro de sua vida, dizendo então a última palavra conclusiva de todo o discurso anterior. Ainda que esta atitude cause algum esforço ou sacrifício ao paciente, tal sacrifício é o de um homem (e cristão) que deseja comportar-se como tal até o fim de sua peregrinação terrestre; está na linha da grandeza e magnanimidade que deve ter caracterizado os seus gestos no decorrer da vida presente. Claro está que compete aos familia­res e amigos do paciente assistir-lhe nesta fase decisiva e suprema do seu currículo; toca-lhes, sem dúvida, participar do anseio, do enfermo, de pôr digno fecho ao seu viver terrestre; em muitos casos, os bens de que mais carecem os doentes, são os do afeto e do apoio moral.

A propósito levem-se em consideração as ponderações do Papa Pio XII, em alocução a uma assembléia de clínicos, cirurgiões e anestesistas aos 24/02/1957:

“Toda forma de eutanásia direta, isto é, a administração de narcóticos, com o fim de provocar ou apressar a morte, é ilícita, porque nesse caso se pretende dispor diretamente da vida. Um dos princípios fundamentais da Moral natural e cristã é que o homem não é senhor, mas somente

usufrutuá­rio, do seu corpo e da sua existência. Ora o homem arroga-se o direito de disposição direta da vida toda vez que a quer encurtar.. .

O moribundo não pode permitir, e menos ainda pedir, ao médico que lhe provoque o estado de inconsciência, se com isso se coloca em situa­ção de não poder satisfazer a deveres morais graves, por exemplo, ao dever de regrar negócios importantes, de fazer o seu testamento e de se confessar”.

1.2. Eutanásia indireta ou negativa

A eutanásia indireta ou negativa é o gesto de subtrair a um paciente os recursos sem os quais lhe é impossível conservar a vida. Tais recursos podem ser classificados em duas categorias: os proporcionais à probabilidade de melhora ou recuperação e os desproporcionais.

Diz-se que um recurso é desproporcional quando exige aparato huma­no, material ou financeiro altamente difícil ou penoso em vista de exíguo ou nulo resultado médico; tal era talvez o caso de Karen Quinlan, tal o do Gene­ralíssimo Franco, o do Marechal Tito… Ora diante da obstinação terapêuti­ca que a Medicina moderna propicia com enorme riqueza de recursos, a Igreja declara que, em consciência, não há obrigação moral de aplicar tais recursos, desde que, num juízo objetivo e fundamentado, se possa dizer que não há proporção entre a complexidade dos meios utilizados e a exigüidade ou nulidade dos resultados que se possam prever.

Todavia restará sempre o dever de oferecer ao paciente os meios roti­neiros de conservação da vida (alimentação, injeções, soro, transfusões de sangue. . .); estes não devem ser suspensos, qualquer que seja o caso do pa­ciente (admita-se, porém, que o conceito de “recurso rotineiro” possa variar de caso para caso).

Como se entende, a proporção ou a desproporção existente entre determinado meio terapêutico e as probabilidades de êxito pode ser diver­samente apreciada; tal avaliação envolve sempre um tanto da subjetividade de quem a realiza. Será necessário, porém, que com toda a lealdade, diante de Deus, as pessoas responsáveis procurem considerar a situação e tomar o alvitre mais fiel possível aos ditames da Moral.

Esta tomada de posição da Igreja poderá causar surpresa. . . Ela se deve à consciência que o cristão tem, de que a morte física não é termo fi­nal, mas, sim, transição para a plenitude da vida. Quem deixa de existir neste mundo, não deixa de viver, mas apenas muda a sua modalidade de vida; por isto não lhe toca o dever absoluto e incondicional de entreter a vida terrestre com o sacrifício de pessoas e coisas que poderiam ser úteis a outras pessoas chamadas por Deus a permanecer mais tempo na vida presente. O cristão que tenha nítida consciência desta verdade, não se apega indevidamente à peregrinação terrestre nem considera a morte como um desastre a ser evita­do a todo preço, mas vê-a como ocasião de participar, em plenitude, da Páscoa do Senhor Jesus.

É óbvio, porém, que, se o cristão deseja ou aceita empreender a obsti­nação terapêutica, é-lhe lícito enveredar por tal caminho. E isto tanto mais quanto se sabe que é muito difícil prever o desfecho de determinado trata­mento; há casos surpreendentes (mas raros) de retorno à vida lúcida após anos de coma, como se observará em próximo artigo de PR. – Notemos, aliás, que a raridade e a imprevisibilidade desses casos não invalida as dispo­sições da Moral católica relativas aos recursos desproporcionais de que atrás falamos.

2. O texto da Instrução

Para facilitar o estudo das pessoas interessadas, publicamos, a seguir, os trechos da Instrução da Congregação para a Doutrina da Fé que afirma a posição da Igreja no que ela tem de mais típico.[1]

“O uso proporcionado dos meios terapêuticos

Hoje é muito importante proteger, no momento da morte, a dignida­de da pessoa humana e a concepção cristã da vida contra um “tecnicismo” que corre o perigo de se tornar abusivo. De fato, há quem fale de “direito à morte”, expressão que não designa o direito de se dar ou mandar provocar a morte como se quiser, mas o direito de morrer com toda a serenidade, na dignidade humana e cristã. Sob este ponto de vista, o uso dos meios tera­pêuticos pode, às vezes, levantar alguns problemas.

Em muitos casos a complexidade das situações pode ser tal que faça surgir dúvidas sobre o modo de aplicar os princípios da moral. As decisões pertencerão, em última análise, à consciência do doente ou das pessoas qua­lificadas para falar em nome dele, como também aos médicos, à luz das obrigações morais e dos diferentes aspectos do caso.

É dever de cada um cuidar da sua saúde ou fazer-se curar. Aqueles que têm o cuidado dos doentes devem fazê-lo conscientemente e administrar-lhes os remédios que se julgarem necessários ou úteis.

Mas será preciso, em todas as circunstâncias, recorrer a todos os meios possíveis? Até agora, os moralistas respondiam que nunca se era obrigado a usar meios “extraordinários”. Esta resposta, que continua a ser válida em princípio, pode talvez parecer hoje menos clara, já pela imprecisão do ter­mo, já pela rápida evolução da terapêutica. Por isso, há quem prefira falar de meios “proporcionados” e “não proporcionados”: De qualquer forma, po­der-se-á ponderar bem os meios, pondo o tipo de terapêutica a usar, o grau de dificuldade e de risco, o custo e as possibilidades de aplicação, em con­fronto com o resultado que se pode esperar, atendendo ao estado do doente e às suas forças físicas e morais.

É também permitido interromper a aplicação de tais meios, quando os resultados não correspondem às esperanças neles depositadas. Mas, para uma tal decisão, ter-se-á em conta o justo desejo do doente e da família, como também o parecer de médicos verdadeiramente competentes; são estes, na realidade, que estão em melhores condições do que ninguém, para poderem julgar se o investimento de instrumentos e de pessoal é desproporcionado com os resultados previsíveis, e se as técnicas postas em ação impõem ao paciente sofrimentos ou contrariedades sem proporção com os benefícios que delas pode receber.

– É sempre lícito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar. Não se pode, portanto, impor a ninguém a obrigação de recorrer a uma técnica que, embora já em uso, ainda não está isenta de peri­gos ou é demasiado onerosa. Recusá-la não equivale a um suicídio; significa, antes, aceitação da condição humana, preocupação de evitar pôr em ação um dispositivo médico desproporcionado com os resultados que se podem esperar, enfim, vontade de não impor obrigações demasiado pesadas à famí­lia ou à coletividade.

– Na iminência de uma morte inevitável, apesar dos meios usados, é lícito em consciência tomar a decisão de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida, sem contudo interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes. Por isso, o médico não tem motivos para se angustiar, como se não tivesse prestado assistência a uma pessoa em perigo'”.

Em próximo artigo, abordaremos a questão do momento preciso da morte (que a Medicina tenta definir sem chegar à plena clareza) e suas im­plicações morais.

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NOTA:

[1] O texto da instrução foi pouco divulgado. Encontra-se na íntegra publica­do em tradução portuguesa nas Edições Lumen Christi, Caixa Postal 2666, 20001 – Rio de Janeiro (RJ): Coleção ‘Palavra do Papa” n° 2: “O Corpo humano e a Vida”.

 

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