Fé: Fé e política

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 261/1982)

Em síntese: O presente artigo, após percorrer o histórico das rela­ções entre a religião e a política, mostra que a libertação cristã trans­cende a ordem política, embora passe através desta; Jesus não foi um revolucionário político, mas veio pregar o Reino de Deus, que só estará consumado no fim dos tempos. Isto não quer dizer que o cristão não se interesse pela ordem de coisas temporais (ao contrário, sendo cristão, compete-lhe exercer com todo o afinco as suas tarefas neste mundo, pois ele traz o nome de Cristo); o cristão, porém, sabe que seria utópico esperar a plena resposta para os anseios do homem no decorrer da his­tória deste mundo. – À Igreja toca o direito de se pronunciar sobre assun­tos políticos não para tomar partido entre facções igualmente legítimas, mas, sim, para lembrar aos homens as exigências da ética aplicada à polí­tica. Evitem os clérigos cair no clericalismo ou no messianismo político (o que aconteceria se fizessem política partidária em nome da Igreja); tanto o clericalismo político como o cesaropapismo (ingerência do Estado em assuntos da Igreja) hão de ser repudiados.

* * *

Comentário: As questões limítrofes entre fé e política estão na ordem do dia. Pergunta-se: qual o campo específico da fé? E qual o da política? Como se relacionam entre si?

Inega­velmente as questões se tornam especialmente difíceis pelo fato de haver certa ambigüidade no tocante aos conceitos mesmos de e política.

Na tentativa de esclarecer a problemática, abordaremos: 1) os conceitos em foco; 2) um pouco de história; 3) a liber­tação do homem contemporâneo; ao que se seguirão

4) con­clusões.

As páginas que se seguem, vêm a ser, em grande parte, o eco do estudo de Nicolas Boers intitulado Militarismo e clericalismo em mudança (ver bibliografia à p. 104 deste fascículo).

1 . Os conceitos em foco

1. na concepção católica é a resposta do homem a Deus, que se lhe revela em Cristo e por Cristo. Esta revelação tem por objetivo convidar o homem ao consórcio da vida do próprio Deus, indicando-lhe as vias que mais adequadamente o possam levar a tanto.

Essas vias não podem deixar de passar pela história e pelo ambiente concreto em que o homem existe; elas tendem, po­rém, a transcender a história e a geografia do homem, a fim de levá-lo à plena realização em Deus e na eternidade.

Ao conceito de se prende o de religião, que é a mani­festação da fé, por meio de um Credo, de atos rituais e de preceitos éticos [1].

2. Política é a arte de governar a pólis, a cidade, o povo, tendo em mira estabelecer o bem comum e o bem de cada ci­dadão. Estes bens são de índole, primeiramente, temporal, mas, visto que o homem é um ser psicossomático, não podem ignorar os interesses espirituais e transcendentais do ser hu­mano. Através dos valores temporais o homem tende aos eternos.

Observa-se que a conceituação assim proposta é suficiente para sugerir espontaneamente a pergunta: Como se relacionam entre si fé e política, que têm em mira áreas idênticas, embora segundo enfoques diferentes?

Procuraremos preparar a nossa resposta percorrendo su­mariamente a história do problema.

2. Um pouco de história

1. A civilização pré-cristã não conhecia nítida separação entre a ordem política e a ordem religiosa. É o que lembra Christopher Dawson em seu livro Progresso e Religião:

“Toda a vida da sociedade possuía orientação religiosa e a religião era o centro vital do organismo social… É isto devido ao fato de que os aspectos materiais e espirituais da sua cultura se achavam inextricavelmente entremeados uns com os outros, de modo que o fator religioso está presente em todos os momentos da sua existência” (Rio de Janeiro 1947, p. 113).

Pode-se dizer que as civilizações arcaicas, como a suméria, a egípcia, a chinesa, a hindu tendiam a fundir valores re­ligiosos e valores sociais sob a hégide da religião. A palavra da Divindade tendia a penetrar toda a organização da pólis, de modo a orientá-la numa espécie de teocracia ora mais, ora menos nítida: havia reis-deuses no Egito, na Assíria, na Ba­bilônia…, imperadores filhos do Céu na China e imperadores filhos do sol no Japão.

Quanto ao mundo greco-romano, atesta Fustel de Coulanges:

“No regime social dos antigos a religião imperava como soberana absoluta na vida privada e na vida pública… o Estado era uma comu­nidade religiosa, o rei um pontífice, o magistrado um sacerdote, a lei uma fórmula santa,… o patriotismo era pio e o exílio uma excomunhão,… a liberdade individual era desconhecida e o cidadão estava sujeito ao Estado por alma, corpo e patrimônio,… o ódio contra o estrangeiro se tornava obrigatório e as noções de direito e de dever, de justiça e de afeto paravam nos limites da cidade” (A Cidade Antiga, Lisboa 1958, vol. II, p. 241).

O próprio povo de Israel, agraciado por Deus mediante a Lei de Moisés e a Revelação sobrenatural, constituía uma teo­cracia, na qual o foro civil e o jurídico eram regidos pela cons­ciência de que Javé era o grande Senhor de Israel. A evidência deste fato salta aos olhos de quem leia o Pentateuco.

2. Jesus Cristo, na plenitude dos tempos, lançou o prin­cipio da separação entre a religião e a política, separação que não seria independência da política frente à religião. São fa­mosas as palavras do Senhor: «Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus» (Mt 22, 21). Jesus rejeitou as con­cepções de messianismo político ou nacionalista como também a de política messiânica; cf. Mt 4, 1-11 (as tentações de Jesus); Israel poderia ser fiel ao Senhor Deus e, ao mesmo tempo, súdito do Império Romano. Assim Jesus distinguiu, como hoje se diz, o plano temporal e o espiritual, embora não tenha apregoado a total autonomia do temporal em relação ao espiritual, como se verá adiante.

Observa-se que nos três primeiros séculos os cristãos vi­veram plenamente a sua fé sem parte eminente nas funções do Estado ou até mesmo formulando sérias restrições a este, que era pagão e perseguidor. A propósito vêm as significativas palavras da epístola a Diogneto datada do início do século III:

“Os cristãos não diferem dos demais homens pela terra, pela língua ou pelos costumes. Não habitam cidades próprias, não se distinguem por idiomas estranhos, não levam vida extraordinária. Além disto, sua dou­trina, eles não a encontraram em pensamento ou cogitação de homens desorientados. Também não patrocinam, como fazem alguns, dogmas huma­nos. Mas, habitando, conforme a sorte de cada um, cidades gregas e bárbaras, é acompanhando os seus locais em matéria de roupa, alimen­tação e costumes, que manifestam a admirável natureza de sua vida, a qual todos reputam extraordinária.

Habitam suas pátrias, mas como estrangeiros. Participam de tudo como cidadãos, mas tudo suportam como estrangeiros. Qualquer terra estranha é pátria para eles; qualquer pátria, terra estranha. Casam-se e procriam, mas nunca lançam fora o que geraram. Têm a mesa em comum, não o leito. Existindo na carne, não vivem segundo a carne. Na terra vivem, participando da cidadania do céu. Obedecem às leis, mas as ultrapassam em sua vida. Amam a todos, sendo por todos perseguidos. Desconhecidos, são assim mesmo condenados. Mas, quando entregues à morte, são vivificados… Os judeus hostilizam-nos como alienígenas, os gregos os perseguem, mas nenhum de seus inimigos pode dizer a causa de seu ódio.

Para resumir numa palavra, o que é a alma no corpo, são os cristãos no mundo”.

3. Eis, porém, que em 313 o Imperador Constantino, mediante o edito de Milão, outorgou a paz e a liberdade aos cristãos. Este processo culminou sob o reinado de Teodósio, que em 380 declarou o Cristianismo Religião oficial do Estado; desta forma o estatuto que tocava à religião pagã, era trans­ferido para o Cristianismo. As conseqüências que os Impera­dores subseqüentes, até Justiniano o Grande (527-565), dedu­ziram de tais premissas, foram de grande vulto a ponto que hoje as julgaríamos indevidas e exageradas; sim, quem não fosse batizado, não teria os direitos de cidadão; os hereges eram impedidos de assumir cargos públicos; o Imperador se julgava tutor da fé e da disciplina da Igreja, exercendo o que hoje chamamos «o cesaropapismo».

Nos séculos IV e V S. Agostinho de Hipona (+ 430), her­deiro da autêntica cultura romana e teólogo emérito, elabo­rou os princípios de uma ordem de coisas em que a religião e a política, a Igreja e o Estado colaborariam na construção da Cidade de Deus. – Pessimista em relação ao Império Romano como tal, S. Agostinho concebeu o Cristianismo como fator estruturante do Estado, ao mesmo tempo que identificava o cidadão e o cristão. O doutor de Hipona preparou assim o ideal medieval da Cristandade, ou seja, do regime em que todas as realidades artísticas, humanitárias, sociais, políticas e religio­sas são inspiradas pelos princípios do Evangelho.

4. Na Alta Idade Média, os cristãos, desenvolvendo as idéias de S. Agostinho, conceberam a tese segundo a qual o fim supremo da sociedade é o Reino de Deus sobre a terra. O Estado deveria colaborar com a Igreja na condução do ho­mem para o seu objetivo transcendental; seria o Santo Impé­rio. Esta cooperação era simbolizada pelas imagens do sol e da lua, da alma e do corpo, do ouro e do chumbo e, especialmente, pela dos dois gládios. S. Bernardo (+ 1153), por exemplo, lem­brava que os Apóstolos tinham duas espadas (Le 22, 38); uma seria a espiritual, e a outra, a temporal; ambas pertenceriam à Igreja, com uma diferença apenas: a primeira está direta­mente nas mãos do sacerdote e é usada pela Igreja; a segunda é empunhada pelo Imperador ou pelo soldado do Imperador, mas a serviço da Igreja – ad nutam sacerdotis et iussum imperatoris. Isto significava que o Estado devia pôr o seu aparato e os seus recursos a serviço dos fins sobrenaturais do homem; o Estado seria o braço secular da Igreja; em conseqüência, a Igreja poderia depor os príncipes heréticos; os judeus, os in­fiéis e os hereges seriam estrangeiros na sociedade medieval.

Os Papas S. Gregório VII (1073-1085), Inocêncio III (1198-1216), Inocêncio IV (1243-1254) e Bonifácio VIII (1294-1303) representam etapas da consciência ascendente que os Pontífices tinham, de ser embaixadores do Rei dos reis junto a todos os monarcas e príncipes da terra. A bula Unam Sanctam (1302) de Bonifácio VIII vem a ser o ponto alto do pensamento teocrático medieval. Um dos seus trechos funda­mentais afirma o seguinte:

“Segundo o testemunho da verdade, o poder espiritual deve insti­tuir o poder temporal e julgá-lo se não for bom, Assim se cumpre na Igreja e no poder eclesiástico o vaticínio de Jeremias: ‘Eis que te cons­titui hoje sobre as nações e os reinos’. Se o poder terreno se desvia, será julgado pelo poder espiritual; se se desvia o poder espiritual menor, será julgado pelo que lhe é superior; se, porém, se desvia o poder supremo, será jugado somente por Deus; não o pode julgar o homem, conforme o testemunho do Apóstolo: ‘O homem espiritual julga tudo, mas ninguém o (1 Cor 2,15)”.

A bula culmina na seguinte afirmação: «Dizemos, decla­ramos, definimos que todas as criaturas humanas devem ser submetidas ao Romano Pontífice por absoluta necessidade da sua salvação» (cf. Denzinger-Schönmetzer, Enchiridion Symbolbrum et Definitionum 873s).

5. A suposição de que o Imperador e os demais sobera­nos temporais obedeceriam docilmente ao Papa, foi sendo mais e mais contraditada pelos fatos. Os imperadores medie­vais, desde Henrique IV (1056-1106), não hesitaram em lutar contra os Romanos Pontífices. Bonifácio VIII, cujo texto muito enfático acaba de ser citado, encontrou no rei Filipe IV (1285-1314) da França um adversário que o mandou prender e lhe suscitou penosos dissabores; a época de Bonifácio VIII (1294-1303) já não era a de Inocêncio III (1198-1216).

De então por diante foi tomando vulto o absolutismo do Estado, que se ia laicizando. Não faltaram teólogos e canonis­tas que contribuíram para acelerar tal processo; tenham-se em vista Marsílio de Pádua (+1342 ou 1343) com a sua obra Defensor Pacis, e Guilherme Occam (1290-1349); este, ne­gando a existência dos conceitos universais e ensinando a du­pla verdade, separou da fé a ciência, e da religião a política. O universalismo e o objetivismo do pensamento medieval fo­ram cedendo ao subjetivismo, ao particularismo, ao secularis­mo e ao democratismo.

6. No século XVI, algumas correntes de pensamento contribuíram para mais ainda dissipar a síntese filosófico-­religiosa da Idade Média. Destacamos

– a tese de Maquiavel, que atribuiu ao Estado plena au­tonomia, de modo a fazê-lo a medida de todas as coisas; a razão de Estado ficaria sendo algo de absoluto;

– a Reforma luterana, com o seu principio do livre exame da Bíblia ou do subjetivismo, contribuiu poderosamente para separar – o espiritual e o secular, o divino e o social, a igreja e o Estado. A conseqüência foi o conceito do Estado laico ou leigo. Mais: o individualismo, que se manifesta nos princípios do luteranismo, e a conseqüente multiplicação das seitas protestantes deram origem à sociedade pluralista, ain­da hoje existente, em oposição à sociedade sagrada que os medievais acariciavam.

7. A desintegração do mundo cristão da Idade Média iniciada no século XVI reforçou o absolutismo do Estado dos séculos XVI/XVIII na França, na Alemanha, na Ingla­terra, na Espanha … As razões de Estado predominavam so­bre as demais; embora os monarcas professassem a primazia dos valores espirituais, estes eram subordinados aos interesses políticos. E o que se verifica na proclamação do principio Cuius regio elos et religio no século XVI, como também na historia do galicanismo e do febronianismo, que bem exprime as tendencias cesaropapístas dos monarcas da França e do império austro-húngaro; segundo o conceito de Igreja Nacio­nal, a fé religiosa do povo e a base da homogeneidade política e da unidade nacional. Assim se estabeleceu uma espécie de união da Igreja e do Estado, que na época era chamada «a aliança do Trono e do Altar»; a Religião seria o Estado e o Estado seria a Religião.

No decorrer do século XVIII, os filósofos racionalistas ou iluministas puseram-se a combater a Aliança do Trono e do Altar ou a Religião do Estado. Por fim, em 1789 a Revolução Francesa separou decisivamente os dois poderes – o temporal e o espiritual -, esboçando algo que Cavour (+ 1861) chama­ria na Itália: «a igreja livre no Estado livre».

A Revolução Francesa significa uma vertente na história. Modificaram-se as relações entre a Igreja e o Estado, que no decorrer dos séculos XIX e XX se tornou, não raro, liberal e ateu. A Igreja, após a Revolução Francesa, viu-se obrigada a recuar para uma posição defensiva num mundo intelectual e socialmente hostil a ela, e a lutar pela restauração não dos seus privilégios, mas dos seus direitos.

Mais: a Igreja nos últimos decênios teve de enfrentar ainda dois sérios desafios:

– a ordem temporal dessacralizou-se; a sociedade tem-se descristianizado;

– a própria Igreja, em suas fileiras, vem sentindo os em­bates da secularização, de tal modo que um ou outro de seus redutos tem feito concessões excessivas ao processo de secula­rização.

Coisa estranha: em réplica a estes dois males, alguns membros e setores da Igreja «tentam recuperar o prestígio perdido no plano espiritual, engajando-se na luta social, às vezes em alianças incongruentes» (Nicolas Boer, Militarismo e Clericalismo em mudança. São Paulo 1980, p. 262). «Confi­gura-se portanto um típico fenômeno de clericalismo com as suas contradições e ironias: procura-se um novo triunfalismo com a adesão às forças que se exibem como depositárias do futuro, embora em nome do combate ao antigo triunfalismo chamado constantiniano» [2] (ib., p. 262).

A verificação destes fatos nos leva a analisar de mais perto a atitude de quem hoje em dia procura secularizar a Igreja e sua missão em nome da libertação do homem.

3. A libertação do homem contemporâneo

Voltando-se para a situação do homem na América Lati­na, muitos pensadores cristãos julgaram dever dar importân­cia, puseram toda a sua visão de fé em função dos parâmetros políticos, sociais e econômicos que o afligem. Em conseqüên­cia, puseram toda a sua visão de fé em função dos parâmetros sócio-políticos da América Latina no intuito de promover a emancipação.

A conseqüência disto é que Jesus Cristo mesmo foi con­cebido como revolucionário sócio-político, que teria morrido por motivos políticos. Em última instância, Jesus ter-se-ia identificado com a causa do nacionalismo judaico da sua épo­ca, contando entre os seus discípulos alguns zelotas guerrilhei­ros como Simão, dito «o Cananeu», Pedro, o portador de es­pada, Judas Iscariotes, o homem do punhal, Tiago e João, os filhos do trovão…

Os autores cristãos contemporâneos que assim pensam, fazem reviver em nossos dias o messianismo político ou o na­cionalismo messiânico que inspirou o judaísmo antigo, como inspirou o próprio Karl Marx no século passado (embora este autor tenha associado o seu messianismo a uma filosofia ma­terialista atéia).

Em conseqüência, na perspectiva cristã o Regnum Dei se identificaria com o regnum hominis; a salvação em Jesus Cristo coincidiria com a libertação política, econômica e so­cial. Com outras palavras: a Igreja é secularizada, e o Estado é sacralizado ou, divinizado, … divinizado não em nome da fé propriamente dita, mas em nome de alguma ideologia de di­reita ou de esquerda. A Igreja se torna democracia ou repú­blica, e o Estado se torna teocracia absolutista; o Estado exige para si a obediência e a infalibilidade que compete à Igreja como continuação do mistério da Encarnação do Filho de Deus, ao passo que a Igreja percebe a sua autoridade cada vez mais contestada e enfraquecida. Procura-se configurar a Igreja com seus valores eternos – a verdade e a graça – à semelhança das realidades temporais, enquanto estas vão sendo concebidas à imagem e semelhança dos valores eter­nos. Como dizia o Cardeal Emmanuel Suhard já em 1947, «a fim de assegurar o desenvolvimento das formas terrenas da Igreja, muitos esquecem a sua essência eterna» (Essor ou déclin de l’Eglise. Paris 1947).

O Pe. Yves Congar O. P., na sua monumental obra Vraie et fausse réforme de l’Eglise, observa que a adaptação da Igreja ao mundo moderno não se pode fazer mediante uma adaptação mecânica no sentido de a Igreja modificar os seus princípios para adotar outros. Já que a Igreja é um organis­mo vivo, sua adaptação ao ambiente histórico se faz de modo orgânico – o que supõe «um trabalho intelectual em profun­didade, pelo qual os princípios permanentes do Catolicismo hão de começar um desenvolvimento novo, assimilando, depois de ter decantado e, se necessário, purificado, as contribuições válidas desse mundo moderno» (págs. 345s). O processo contrá­rio, ou seja, a aceitação em bloco do pensamento moderno, esvazia a identidade da própria Igreja.

Este quadro que acompanhamos no dia-a-dia da vida contemporânea, exige uma reflexão final.

4. Conclusões

Formularemos alguns itens aptos a abranger sintetica­mente o ponto de vista que abraçamos.

4.1. Jesus Cristo e a libertação política

Seria falso conceber Jesus Cristo como um libertador po­lítico, revolucionário armado. O Senhor Jesus veio apregoar o Reino de Deus que ultrapassa as estruturas deste mundo e só estará plenamente realizado no fim dos tempos. Verdade é que a implantação do Reino começa na história mesma dos ho­mens e tende a transfigurá-la conforme as exigências do amor e da justiça. Todavia é certo que no decorrer mesmo da histó­ria será impossível obter a consumação do Reino de Deus. Por isto qualquer teoria que prometa plena justiça e frater­nidade consumada como fruto de mudança de estruturas so­ciais é utópica, ilusória e incompatível com os princípios da fé católica. A propósito advertia o S. Padre João Paulo II os bispos latino-americanos reunidos em Puebla aos 28/01/79:

“É um erro afirmar que a libertação política, econômica e social coincide com a salvação em Jesus Cristo, que o Regnum Dei se identi­fica com o Regnum hominis“.

Ou ainda:

“Correm hoje por muitos lugares – o fenômeno não é novo – releituras do Evangelho, resultado de especulações teóricas mais do que de autêntica meditação da palavra de Deus e de um verdadeiro compromisso evangélico. Elas causam confusão, ao afastar-se dos critérios centrais da fé da Igreja, e cai-se na temeridade de comunicá-las, a título de cate­quese, às comunidades cristãs. Em alguns casos, ou se silencia a divin­dade de Cristo, ou se incorre de fato em formas de interpretação con­trárias à fé da Igreja. Cristo seria apenas um profeta, um anunciador do reino e do amor de Deus, mas não o verdadeiro Filho de Deus, nem seria, portanto, o centro e objeto da mesma mensagem evangélica. Em outros casos, pretende-se mostrar Jesus como comprometido politicamente, como um lutador contra a dominação romana e contra os poderes e, inclusive, implicado na luta de classe. Esta concepção de Cristo como político, revolucionário, como subversivo de Nazaré, não se concilia com a cate­quese da Igreja. Confundindo o pretexto insidioso dos acusadores de Jesus com a atitude do próprio Jesus – muito diferente -, alega-se, como causa da sua morte, o desenlace de um conflito político e cala-se a vontade de entrega do Senhor e também a consciência da sua missão redentora”.

4.2. Reino de Deus e reino do homem

O Reino de Deus e o reino do homem não se excluem mutuamente, mas, antes, tendem a se realizar simultanea­mente através da história.

O Reino de Deus não extingue o do homem, como afirma muito sabiamente S. Tomás de Aquino:

“Gratia non destruit, sed perficit naturam. Ius autern divinum, quod est ex gratia, non tollit ius humanum, quod est ex naturali racione” (Suma Teológica II/II, qu. 10, art. 10c) [3].

Todavia os interesses do Reino do Homem ou do Estado devem estar subordinados aos do Reino de Deus, pois o ho­mem não foi feito para ser feliz nesta vida apenas, mas para usufruir da felicidade do próprio Deus numa ordem de coisas sobrenatural. O homem passa pela ordem temporal para chegar à definitiva ou eterna. Por isto a Igreja, encarregada de apregoar e implantar o Reino de Deus em meio aos ho­mens, terá sempre o direito de julgar a ordem temporal na medida em que esta interessa à consecução do fim supremo do homem, ou seja, em nome da Moral.

Com outras palavras: o Estado goza de soberania essen­cial no tocante à ordem temporal (economia, urbanismo, transportes, comunicações… ) , mas está subordinado à Igreja por uma subordinação acidental, ou seja, na medida em que os valores temporais têm um caráter ético. A distinção entre soberania essencial e subordinação acidental pode também ser assim formulada: a Igreja goza de poder direto sobre os va­lores espirituais e de poder indireto (ratione peccati, por causa de possível pecado) sobre os valores temporais. Esta última fórmula deve-se a teólogos dos séculos XVI e XVII, como Francisco Suarez S. J. (1548-1617) e São Roberto Bellarmi­no (1.542-1621).

4.3. Igreja e política

Estas proposições significam que a Igreja tem o direito de se manifestar sobre assuntos de ordem política na medida em que estes interessam à consciência moral. Mais precisa­mente em nome de Deus, sem exorbitar das suas funções, pronunciar-se sobre a ordem política ou sócio-econômica do seu país. Eles o farão, porém, apenas na medida em que o bem moral estiver em causa, visando a preservá-lo de contamina­ção. Se dentro do setor do bem se propuserem diversas opções partidárias igualmente válidas do ponto de vista moral, a Igreja e seus ministros não terão o direito de apregoar aos fiéis qualquer dessas opções de preferência a outra. Ao minis­tro de Deus é lícito ter sua opção partidária pessoal, mas não lhe é lícito identificar o Evangelho com tal opção, se outras satisfazem igualmente à mensagem de Cristo.

É aos fiéis leigos que toca a militância na política parti­dária; após terem ponderado em consciência as diversas opções que se lhes oferecem, toca-lhes escolher a que mais condizente pareça com o Evangelho e empenhar-se pela promoção da mesma. A Igreja se faz presente na política militante por meio dos seus filhos leigos, não, porém, mediante os clérigos. Estes hão de ser fatores de unidade dentro do legítimo pluralismo político que possa ocorrer na sociedade; se os clérigos deixarem de ser fatores de unidade, desintegrar-se-á a sociedade.

4.4. Política e absoluto

O cristão está longe de fazer da política um valor abso­luto. Ele, antes, se há de empenhar por uma política do Abso­luto. Com efeito; mais e mais o homem contemporâneo se in­terroga sobre o sentido da sua existência, sobre o significado da sociedade, da história e do universo… Para estas questões essenciais, a política não tem resposta; por conseguinte, em­bora importante, a política está longe de atender às aspirações mais íntimas de todo homem; este é essencialmente caracteri­zado pela sede do infinito e pela fome do absoluto; são estas que revelam a verdadeira vocação do homem. Dizia muito oportunamente o Papa Paulo VI na sua encíclica sobre o De­senvolvimento dos Povos:

“Longe de ser a norma suprema dos valores, o homem só se realiza ultrapassando a si mesmo. Conforme a sábia palavra de Pascal: ‘O homem ultrapassa infinitamente o homem’ ” (n° 42).

Somente Deus está à medida do homem. Ora Deus se fez homem a fim de que os homens se tornem filhos de Deus. Mais: Cristo confiou à sua Igreja a missão de levar o homem a realizar a sua vocação divina pessoal e comunitária. Essa missão implica que a Igreja se empenhe pela construção da sociedade, respeitando a autonomia do Estado e das consciên­cias. Mas este é apenas um aspecto da missão da Igreja, povo de Deus. O Concílio definiu essa missão em toda a sua am­plidão ao dizer: «A Igreja associa trabalho e oração para que o mundo inteiro … seja transformado em Povo de Deus, Corpo de Cristo e Templo do Espírito Santo» (Constituição Gaudium et Spes n” 15).

Numa palavra: a Igreja se interessa pela política en­quanto afeta a construção do Reino de Deus sobre a terra; mas não compete aos clérigos, dentre os diversos caminhos legítimos, optar por algum no exercício do ministério sacerdo­tal; se o fizessem, cairiam no clericalismo ou no messianismo político, que hão de ser rejeitados, como o cesaropapismo há de ser repudiado. Aos fiéis leigos é que toca a tarefa da militância política partidária. Todos, porém, clérigos e leigos, terão sempre em mira o termo final da caminhada do povo de Deus que tende à Jerusalém celeste, onde não haverá mais Estado nem política, mas tão somente aquele valor ao qual tende toda a arte política: o Absoluto contemplado face-a-face. Então cumprir-se-á o que dizia S. Agostinho: «Insatiabiliter satiaberis veritate. – Serás insaciavelmente saciado pela verdade».

Bibliografia:

BOERS, N., Militarismo e clericalismo em mudança. São Paulo 1980.

BUHLMANN, W., O terceiro mundo e a Igreja. São Paulo 1976.

COULANGES, FUSTEL DE, A Cidade Antiga. Lisboa 1951.

GUTIERREZ, G., Teologia da Libertação. Petrópolis 1976.

JOURNET, CH., La jurisdiction de l’Eglise sur la cité. Paris.

MARITAIN, J., Humanismo integral. Rio de Janeiro 1941.

Princípios de uma política humanista. Rio de Janeiro 1946.

Primauté du Spirituel. Paris 1949.

O Homem e o Estado. Rio de Janeiro 1952.

Cristianismo e Democracia. Rio de Janeiro 1949.

SCHOOYANS, M., O desafio da secularização. São Paulo 1968.

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NOTAS:

[1] Religião, nos escritos de Karl Barth e Dietrich Bonhoeffer, toma um sentido pejorativo, em oposição a fé. Visto que tal distinção se prende a determinado contexto teológico, não a levaremos em conta neste artigo.

[2] Vale a pena transcrever ainda a seguinte passagem de Nicolas Boer:

“O clericalismo define-se como ‘triunfalismo constantiniano’. Esta é a sua psique íntima, a sua força motriz mais dinâmica. Seus represen­tantes, na primeira metade do século passado, queriam reconquistar a posição de liderança social, política, intelectual de que a Igreja fruiu na monarquia ‘católica’ ou ‘cristianíssima’. Seus representantes, na segunda metade deste século, querem aderir aos que se exibem como depositários do futuro – velha política de união com o Século estabelecido – apesar de o preço da união ser a aceitação do cesaropapismo ateu e a perda da identidade católica pela sua absorção na doutrina marxista.

A alegada adaptação aos que deveriam ser batizados – mas que não o querem ser – não passa de submissão aos que se sentem supe­riores aos cristãos. Afinal a história confirma Jacques Maritain, que afir­mava ainda em 1936: ‘O comunismo, tal como existe – antes de tudo, o comunismo das repúblicas soviéticas – é um sistema completo de dou­trina e de vida que pretende revelar ao homem o sentido de sua existência, responde a todas as questões fundamentais que a vida coloca e manifesta uma potencialidade inigualada de envolvimento totalitário. É uma religião, e das mais imperiosas, e certa de ser chamada a substituir todas as outras religiões; uma religião ateísta, da qual o materialismo dialético constitui a dogmática e o comunismo, como regime de vida, é a expressão ética e social. Assim o ateísmo não é exigido (e isto seria incompreensível) como conseqüência necessária do sistema social; muito ao contrário, é pressu­posto como o seu principio’ (Humanismo integral, p. 44)” (Militarismo e clericaliamo em mudança. p. 307).

[3] “A graça não destrói, mas aperfeiçoa a natureza. Por conseguinte, o direito divino, que se prende à graça, não extingue o direito humano, que procede da razão natural“.