Idade Média: cruzadas medievais e espírito cristão

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 167/1973)

Em síntese: Este artigo, além de apresentar breve resenha das oito principais Cruzadas medievais (séc. XII e XIII), propõe algumas pondera­ções sobre o significado de tal episódio da história medieval.

Não se podem entender as Cruzadas, se não se levam em conta alguns dados característicos da sociedade medieval:

A fé cristã viva e concreta que todos os indivíduos, desde os reis até os mais simples camponeses, professavam (com raras exceções).

Essa fé, desde tempos antigos, levava os cristãos a peregrinar aos lugares santos da Palestina. As peregrinações têm seu fundamento na própria Bíblia e sempre foram carinhosamente praticadas pelos cristãos. A piedade medieval nutria particular estima para com o S. Sepulcro de Cristo.

A sociedade medieval era muito marcada pelo ideal do cavaleiro, tal como os francos, germanos e celtas o podiam conceber. O amor a Deus era assim freqüentemente associado aos predicados de bravura e magnanimidade do cavaleiro.

No séc. XI, notícias sinistras chegaram ao Ocidente a respeito dos vexames que os cristãos padeciam na Terra Santa por parte dos muçul­manos. Despertou-se então o zelo dos cavaleiros, dos monarcas e dos ple­bleus cristãos, incitados pelos Pontífices e doutores, em prol da liberta­ção dos lugares santos. Tal zelo exprimiu-se segundo as categorias da época, ou seja, no empreendimento de expedições bélicas. Por certo, es­tas exigiram heroísmo e abnegação por parte dos povos ocidentais.

O entusiasmo valioso dos cruzados era demasiado idealista e inex­periente. A tarefa ingente que os mesmos se propunham, foi exigindo o recurso a mercenários, a reis e príncipes movidos por interesses políti­cos e nacionalistas, a comerciantes, que desvirtuaram a figura brilhante do cavaleiro medieval e solaparam o êxito de generosas iniciativas mi­litares dos cruzados.

Além disto, já na Idade Média o Concílio de Lião I (1245) e prega­dores diversos censuravam abusos morais dos cruzados. Estes, embora re­prováveis, constituem sempre o perigo e a tentação das expedições mi­litares. Nota-se, aliás, que os medievais associavam por vezes violência e paixões à fé entusiástica e magnânima; este fenômeno de contrastes, cho­cante para o observador moderno, talvez se deva à herança dos povos que invadiram a Europa nos séc. IV-VI; aos poucos seria superado pelo amadurecimento das consciências.

Em suma, as Cruzadas em seu conjunto representam genuínos valores, que, apesar das falhas dos homens que as empreenderam, devem pairar claramente na primeira linha de horizonte do observador.

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Comentários: Por «Cruzadas medievais» entendemos, nes­tas páginas, as expedições empreendidas pelos cristãos do Oci­dente para libertar do domínio muçulmano o S. Sepulcro de Cristo em Jerusalém. Têm início em fins do séc. XI (1095) e terminam em 1291, quando os últimos bastiões dos cruzados no Mediterrâneo oriental sucumbiram sob os ataques dos tur­cos. Recobrem, pois, os séculos XII e XIII. Verdade é que se falou de expedições bélicas para libertar a Terra Santa ou o Oriente da Europa ameaçado pelo turcos também nos séc. XIV e XV, como antes de 1095 se falava de reconquistar a Espanha ocupada pelos árabes… Todavia interessar-nos-ão aqui apenas as expedições dos séc. XII e XIII, classicamente chamadas «Cruzadas».

Estas constituem um tema espinhoso, pois, para vários es­tudiosos, significam intolerância, crueldade, falso conúbio de motivos religiosos e interesses políticos. Muitos escritores sobre o assunto têm explorado negativamente as Cruzadas, principal­mente a partir do séc. XVIII, quando Voltaire lançou uma obra assaz imbuída de preconceitos e sátira: «Histoire des Croisades de M. Voltaire» (1753). Este e outros livros têm concorrido para que as Cruzadas e, com elas, a S. Igreja na Idade Média hajam sido marcadas com as notas de obscurantismo e barbárie.

Recentemente o autor destas linhas, estando na Terra Santa, teve ocasião de tomar contato com muitos grandiosos ves­tígios arquitetônicos lá deixados pelos Cruzados. Este encon­tro foi-lhe estímulo para refletir mais uma vez sobre tal episó­dio da história e procurar entendê-lo melhor a partir de fontes autênticas. É desse estudo que resulta o presente artigo, o qual, aliás, já de há muito estava para ser elaborado, a pedido de lei­tores da revista; dada, porém, a índole complexa do assunto, vinha sendo postergado.

Antes de entrarmos no tema propriamente dito, importan­te observação deve ser feita, a saber: não se pode entender um episódio do passado sem se reconstituírem previamente o qua­dro geral respectivo e as categorias de pensamento dos atores desse episódio. A propósito damos a palavra à Profa. Régine Pernoud no seu livro «Les Croisades» (Paris 1960, p. 7)

“É de notar quanto a historiografia nos tempos modernos se tornou moralizante e quão poucos historiadores resistem à tentação de se trans­formar em juízes e censores dos acontecimentos que eles referem. Ora os julgamentos que os historiadores possam proferir sobre o passado, ar­riscam-se muitas vezes a ser inadequados ou injustos, porque, sem que o próprio estudioso tenha sempre consciência disto, ele julga segundo cri­térios que datam da sua época, e não da época analisada. Especialmente estranho é o fato de que esse moralismo histórico se tenha propagado pre­cisamente nos séc. XIX e XX, quando se registra admirável esforço em prol da historiografia objetiva, imparcial, configurada às ciências exatas, que seguem métodos rigorosos. Os julgamentos dos historiadores acarretam o inconveniente de introduzir um dos elementos mais subjetivos, ou seja, as opiniões políticas ou religiosas abraçadas pelo estudioso…

Essas sentenças arbitrárias, simplistas demais para poder ser verídi­cas, não provém do fato de que em geral o estudioso está mais apressado para julgar do que para compreender?”

Conscientes do valor destas advertências, procuraremos, nas páginas que se seguem, antes do mais compreender – o que não significa legitimar indistintamente – os fatos narra­dos.

1 . Ocasião e causas da «viagem da Cruz»

1 .1 . O fundo de cena histórico

1. O termo «Cruzada» mesmo nunca ocorre nos docu­mentos medievais; é vocábulo posterior, como também moder­no é o vocábulo corporação, utilizado de maneira um tanto inadequada quando se fala de instituições medievais. Na Idade Média falava-se de «caminho de Jerusalém, passagem, viagem, via da cruz, peregrinação».

É, pois, a partir deste vocabulário que havemos de come­çar o estudo, do que posteriormente foi chamado «Cruzada».

«Peregrinação» é uma das práticas mais ancoradas na Bíblia ou – ainda – na tradição judaica, na tradição cristã e na tradição muçulmana.

Em particular, a peregrinação a Jerusalém e aos lugares santos da Redenção do gênero humano foi sempre uma das ex­pressões de fé mais caras aos cristãos. No séc. IV, após a era das perseguições, quando o Cristianismo começou a usufruir de liberdade no Império Romano, vê-se a Imperatriz Helena, mãe de Constantino, ir à Palestina para descobrir e restaurar os testemunhos da vida, da morte e da ressurreição de Cristo, que haviam sido sufocados pela ocupação romana a partir de 70 e, máxime, após 135 d. C.

Pouco depois de Helena, mãe de Constantino, tem-se a fi­gura de S. Jerônimo (+ 421), que resolveu estudar a Bíblia na Terra Santa, estabelecendo-se na gruta de Belém. Aos poucos, no país bíblico foram-se constituindo numerosos mosteiros de homens e mulheres, que queriam beneficiar-se do contato com os lugares sagrados.

Do séc. IV em diante, o movimento de peregrinações à Terra Santa não cessou entre os cristãos: Jerusalém, Roma e Compostela eram os principais pontos de atração da piedade. Têm-se mesmo ainda hoje numerosos «Itinerários» de Terra Santa escritos em latim através dos séculos por cristãos de nomeada, como o peregrino de Placência, Sílvia, Etéria.. .

Na Idade Média tão arraigado era o habito de peregri­nar que até mesmo o servo da gleba (o homem estático por excelência, porque ligado ao campo, que ele não podia deixar e que ninguém tinha o direito de lhe tirar) gozava do direito de sair da sua terra para realizar uma peregrinação, sem que ninguém se lhe opusesse.

2. No séc. VII a expansão fez perecer as numerosas co­munidades cristãs esparsas pela Síria, a Palestina, o Egito, o norte da África. Jerusalém em 638 foi ocupada e, em parte, transformada em cidade árabe muçulmana. As condições dos cristãos que lá viviam ou que lá iam ter a fim de visitar os luga­res santos, tornaram-se difíceis, embora oscilantes segundo as épocas; a tensão do ambiente foi às vezes abrandada por acor­dos, como, por exemplo, os de Carlos Magno (+ 814) com o califa Haroun al-Rachid; esses pactos, porém, nem sempre fo­ram respeitados, como no caso do califa Hakim, fundador da religião drusa, que em 1009 mandou destruir a basílica do S. Sepulcro em Jerusalém e durante dez anos moveu perseguição a cristãos e judeus.

Pouco depois, ou seja, a partir de 1055, os Turcos seldjucitas entraram no próximo Oriente. Em 1071, Jerusalém caía em suas mãos. Os cristãos, em conseqüência, sofreram opressão. Os peregrinos que voltavam da Terra Santa, narravam no Ocidente a ingrata situação em que se achavam os irmãos. e os santuários na Terra Santa de Cristo. As condições de peregrinação eram extremamente penosas. Os relatos falam de peregrinos colocados no cárcere, seqüestrados em troca de di­nheiro, torturados, durante a viagem para a Terra Santa.

Uma das crônicas mais impressionantes era a da peregrinação de Bünther, bispo de Bamberga (Alemanha), que, com milhares de companheiros, a pequena distância de Jerusalém, sofreu duro ataque dos beduínos da região durante três dias.

Certamente muitos episódios e casos particulares circula­vam de boca em boca na Europa a respeito do que ocorria em Jerusalém e nos arredores; tais episódios constituíam o teor do que o cristão podia conhecer a respeito da Terra Santa. Dessas informações temos um espécimen ainda hoje numa crô­nica de Guilherme de Tiro, historiador do século XII:

“Aconteceu, por permissão de Nosso Senhor e para provação do povo, que um homem desleal e cruel se tornou senhor e califa do Egito. Tinha por nome Hakim e quis ultrapassar toda a malícia e a crueldade que tinham estado em seus ancestrais. Ele foi tal que os homens da sua lei o tinham também na conta de eivado de orgulho, de furor e de deslealdade. Entre outras deslealdades, mandou abater a santa igreja do Sepulcro de­ Jesus Cristo, que fora construída anteriormente por ordem de Constantino Imperador, pelo patriarca de Jerusalém chamado Máximo e que fora re­feita por Modesto, outro patriarca do tempo de Heráclio.[1]

Então começou a situação de nossa gente a ser muito mais dura e dolorosa do que fora, pois grande luta lhes entrara no coração por causa da igreja da Ressurreição de Nosso Senhor, que eles viam assim destruída. Doutra parte, eram dolorosamente sobrecarregados de impostos e ta­refas, contra os costumes e os privilégios que eles haviam recebido dos príncipes incrédulos. Até mesmo o que jamais lhes fora imposto, chegou a ser-lhes proibidos: a celebração das suas festas. No dia que soubessem ser a maior festa dos cristãos, eles (os drusos) os obrigavam a trabalhar mais sob o jugo e a força; proibiam-lhes (aos cristãos) sair das portas de suas casas, em que eles eram encerrados para que não pudessem cele­brar festa alguma. Em suas casas mesmas não gozavam de paz nem segu­rança, pois se atiravam sobre elas grandes pedras e pelas janelas lança­vam excrementos, lama e toda espécie de lixo. Se acontecesse que al­gum cristão dissesse uma só palavra capaz de desagradar a esses incré­dulos, logo, como se tivesse cometido um morticínio, era arrastado à pri­são e lhe cortavam o pé ou a mão, ou podiam todos os seus bens ser con­fiscados pelo califa… Muitas vezes, os incrédulos tomavam os filhos e as filhas dos cristãos em suas casas e com eles faziam o que queriam; ora mediante golpes, ora mediante adulação, os incrédulos constrangiam muitos jovens a renegar a fé… Os bons cristãos esforçavam-se por sustentar tanto mais firmemente a sua fé quanto mais eram maltratados.

Seria longo contar todos os vexames e as desgraças em que o povo de Nosso Senhor se encontrava então. Eu vos contarei um episódio, para que mediante esse possais compreender muitos outros. Um dos incrédu­los, malicioso e desleal, que odiava cruelmente os cristãos, procurava certa vez um meio de os fazer morrer. Viu que a cidade inteira (Jerusalém) tinha grande honra e reverência pelo Templo que fora refeito [2].. . Diante do Templo há uma praça que se chama a esplanada do Templo, que eles (os muçulmanos) guardavam e mantinham limpa, como os cristãos mantêm limpas as suas igrejas e os seus altares. Esse incrédulo desleal tomou de noite, sem que alguém o visse, um cão morto, pútrido e fétido, e colo­cou-o nessa esplanada, diante do Templo. De manhã, quando os homens da cidade foram ao Templo para orar, encontraram esse cão. Fez-se então um grande grito, rumor e clamor por toda a cidade, a ponto que só se falava do ocorrido. Reuniram-se e não tiveram dúvida em dizer que os cristãos haviam feito isso. Todos concordaram em passar ao fio da espada todos os cristãos; já estavam mesmo desembainhadas as espadas que a todos deviam cortar a cabeça.

Entre os cristãos havia um jovem de coração generoso e de grande piedade. Falou ao povo e disse: ‘Meus senhores, verdade é que não tenho culpa alguma no que aconteceu, como aliás nenhum de nós a tem; isto, eu o dou por certo. Mas será extremamente doloroso se morrerdes todos assim e se todo o Cristianismo se extinguir nesta terra. Por isto pensei em vos libertar a todos com o auxílio de Nosso Senhor. Apenas vos peço duas coisas pelo amor de Deus: que oreis por minha alma em vossas preces e que tomeis sob os vossos cuidados e reverência a minha pobre família. ‘Pois eu assumirei a causa sobre mim e direi que fui eu que fiz aquilo de que acusam a todos nós!’

Os que lamentavam morrer, tiveram grande alegria então e promete­ram ao jovem fazer orações e honrar os seus familiares de tal modo que estes, no domingo de Ramos, trouxessem sempre a oliveira, que signifi­ca o Cristo, e a colocassem em Jerusalém. – O jovem, portanto, foi ao encontro dos injustos e disse que os outros cristãos não tinham culpa alguma no ocorrido e que ele era o autor da façanha. Quando os incrédulos ouviram isto, puseram em liberdade todos os outros e somente ele teve a cabeça talhada.

Faça-se o desconto devido possivelmente ao estilo pane­girista do cronista… É certo, porém, que ainda no séc. XII ‘havia em Jerusalém uma família encarregada de fornecer aos fiéis as palmas para o domingo de Ramos, em memória (di­ziam) da dedicação desse antepassado generoso, que se te­ria sacrificado em prol da comunidade.

1.2. Concepções e características medievais

1. Note-se agora que os relatos concernentes aos vexames da Terra Santa ecoavam nos ouvidos de sociedades e povos caracterizados por dois traços profundamente marcan­tes:

a) Eram populações nas quais todos os indivíduos (com raras exceções, que confirmam a regra) tinham – ou ao me­nos julgavam ter e professavam – a fé cristã. Essa fé não procedia de uma autoridade exterior (do Papa ou do Impera­dor), mas era uma convicção profundamente ancorada no coração de todos. Os valores da fé eram, para esses homens, o que fazia que a vida valesse a pena de ser vivida. O calen­dário da vida pública, as catedrais românicas e góticas, os nomes de acidentes geográficos e instituições, além de nume­rosos outros dados, atestam o profundo impacto que a men­sagem da fé causava sobre os povos medievais, ritmando as minúcias da vida cotidiana.

Não há dúvida, a fé dos medievais era muito propensa a demonstrações exuberantes, como também a dar crédito a visões, aparições, feitos extraordinários, sinais retumbantes de Deus.. . Ao lado das grandes Universidades de Paris, Oxford, Bolonha, Nápoles, havia também muita simploriedade e infan­tilidade na piedade cristã. Mas inegavelmente tudo que se ligas­se com a fé, revestia-se de grande significado para os medie­vais.

b) A sociedade na Idade Média estava toda impregnada do espírito e da realidade dos cavaleiros.

Efetivamente, a espi­ritualidade germânica, franca, celta, goda legou à civilização medieval o ideal do cavaleiro. Este aspirava a servir a Deus na bravura destemida, magnânima, e até mesmo na guerra (caso julgasse que a honra de Deus exigia a intervenção da espada). A espiritualidade do cavaleiro retratada nas canções e trovas da Idade Média era apta a suscitar façanhas heróicas em nome da fé.

Mais: deve-se lembrar que na Idade Média também os monges desenvolveram papel importante, professando, porém, uma espiritualidade assaz diversa da do cavaleiro. Enquanto o cavaleiro procurava intensificar suas atividades no mundo, aspirando assim a unir-se a Deus e chegar à vida eterna, o monge se separava do mundo secular para penetrar direta­mente em Deus e na contemplação. Enquanto o cavaleiro apli­cava os instrumentos da sua profissão, isto é, as armas, para servir ao seu Senhor, o monge, professando pobreza e silêncio, recusava o recurso a tais expedientes.

Ora os medievais haviam de conseguir fazer a síntese desses dois tipos de ideal cristão – o do cavaleiro e o do monge -, criando no século XII as chamadas «Ordens Militares». Nestas o cavaleiro se consagrava a Deus para O servir com destemor e galhardia num quadro de pobreza, castidade e obediência.

Referindo-se aos Templários, dizia S. Bernardo (+ 1153):

“Não sei se os devo chamar monges ou cavaleiros; talvez seja neces­sário dar-lhes um e outro nome, pois eles unem à brandura do monge a coragem do cavaleiro” (“De laude novae militiae” IV 8).

2. É, portanto, nas populações medievais, caracterizadas por tais traços, que ecoaram os relatos, de estilo simples e pun­gente, dos peregrinos da Terra Santa, no séc. XI. Compreen­de-se que tenham desencadeado reação espontânea e decidida da parte dos seus ouvintes. Somente o entusiasmo e o vigor comunicados pela fé (e que só a fé pode comunicar) explicam tal resposta: multidões se abalaram, prontificando-se a partir para terras longínquas, desconhecidas, sujeitas a surpresas e ciladas, sem reabastecimento seguro, sem guias peritos, sem planos de viagem muito definidos, mas conscientes (ao menos nos primeiros tempos) de que Deus o queria; «Deus lo volt», eis o brado que em Clermont, no ano de 1095, impressionou os primeiros expedicionários e impulsionou a tantos outros que lhes seguiram o exemplo. Coziam uma cruz de pano vermelho ao ombro direito; donde as expressões que se tornaram técni­cas: «assumir a cruz» e «fazer a cruzada». O ímpeto inicial teve suas repercussões durante os dois séculos de duração do movimento de Cruzadas.

Aliás, os medievais dedicavam grande devoção ao Santo Sepulcro do Senhor que os cronistas lhes apresentavam sujei­to a vexames. Era tido como o maior santuário do mundo cristão, como o centro do universo, segundo os sermões e os noticiários da época. Tenha-se em vista, por exemplo, a pré­dica de Pedro Venerável «Em louvor do Sepulcro do Senhor» (Sermo in laudem Sepulcri Domini) na «Patrologia Latina», ed. Migne, t. 189, col. 973. Um documentário assaz amplo a respeito foi publicado por R. Bauerreis: «Sepuicrum Domini. Studien zur Entstehung der christlichen Wallfahrt auf deut­schem Boden. Abhandlungen der bayerischen Benediktiner­-Akademie » 1 (1936), pp. 34-36.

É somente a partir de tais concepções, muito vivas e signi­ficativas para os medievais, que se podem entender as Cruza­das. Nenhum tipo de guerra moderna, nem mesmo a chama­da «guerra santa» (jihad) dos muçulmanos, pode servir de pon­to de referência para se entenderem a inspiração e a força motriz dos cruzados.

É mister, porém, reconhecer que as idéias religiosas dos primeiros expedicionários foram sendo, aos poucos, no decor­rer de dois séculos, solapadas, de sorte que a imagem do cava­leiro que em seu fervor tomava sobre si a cruz para ir liber­tar o S. Sepulcro do Senhor, se foi modificando. É essa ima­gem posterior que muitas vezes predomina em certos tratados sobre as Cruzadas.

Procuraremos nestas páginas abordar os motivos da des­figuração do ideal dos primeiros cruzados. A fim de o fazer­mos com base concreta nos fatos, traçaremos previamente um bosquejo das Cruzadas, desde a primeira até a última. Feito este rápido percurso, voltaremos a analisar as idéias e os fato­res que moveram a história dos cruzados.

2. As Cruzadas em resenha

Foi o Papa Urbano II quem, no Concílio de Clermont (França) em 1095, lançou o programa de expedições destina­das a reconquistar o S. Sepulcro em Jerusalém. O ambiente, como vimos, estava assaz motivado para receber tal apelo. Conseqüentemente, o brado de Urbano II suscitou entusiasmo delirante; muitos pregadores puseram-se a percorrer a Euro­pa, incitando os homens a cerrar fileiras. Grande multidão de ouvintes, de origem social diversa, assumiu então a cruz, em­blema da campanha. Os expedicionários, provenientes da França, da Inglaterra, da Itália, eram dotados de benefícios es­pirituais pelo Papa; a quem ousasse violar ou roubar as suas propriedades durante a respectiva ausência, tocaria a pena de excomunhão.

Em resposta imediata ao apelo e sem esperar a organiza­ção de exércitos devidamente constituídos (coisa que levaria tempo), grande número de simples fiéis pôs-se logo em mar­cha para o Oriente sem o equipamento necessário. Essa Cru­zada Popular, chefiada por Pedro o Eremita e Gualtero «sem Haveres» (Gauthier sans Avoir), fracassou, pois os seus mem­bros ou pereceram na estrada ou foram exterminados pelos turcos.

Cruzada: Em fins de 1096, quatro exércitos de senho­res feudais chegavam a Constantinopla: 1) os lorenos e ale­mães, com Balduíno de Hainaut e Godofredo de Bouillon; 2) os franceses do norte, sob o conde de Vermandois e o duque de Normandia; 3) os provençais, com o conde de Tolosa e o legado Ademar de Monteil; 4) os normandos da Itália, com Boemundo de Taranto e Tancredo. Nenhum rei os acompanha­va, nem esses exércitos cuidaram de instituir um Chefe geral para todos. O Imperador bizantino Aléxis Comnene, em Cons­tantinopla, esperava servir-se desses guerreiros para reconquis­tar parte da Asia Menor, que fôra arrebatada pelos turcos. A cidade de Nicéia perto de Constantinopla foi então realmen­te reconquistada, mas, em vez de ser atribuída aos ocidentais, voltou a ser domínio do Imperador bizantino. Este fato frus­trou os latinos e concorreu para que doravante latinos e bi­zantinos concebessem desconfiança mútua! – Após dois anos e meio de lutas e sofrimentos atrozes, os cruzados, tendo ven­cido o exército de Solimão em Doriléia, havendo tomado Edes­sa (1097) e Antioquia (1098), chegaram finalmente a Jerusa­lém e dela se apoderaram (1099). Essa sangrenta expedição, que custara a vida a cerca de meio-milhão de homens, termi­nou com a fundação de quatro centros latinos: o reino de Je­rusalém, o principado de Antioquia, os condados de Edessa e de Trípolis, aos quais foram atribuídos governantes latinos. As grandes cidades da costa palestinense foram ocupadas por navegantes e comerciantes ocidentais. Os peregrinos recome­çaram a afluir à Terra Santa. Para protegê-los e defendê-los, foram criadas as Ordens de Cavaleiros Militares (Hospitalá­rios, Templários, etc.).

Como se compreende, os territórios latinos no Oriente eram constantemente ameaçados e só podiam subsistir com o auxilio de reforços vindos do Ocidente. É o que explica uma série de expedições, ora mais, ora menos vultosas, colocadas entre as grandes Cruzadas. Somente estas, em número de oito, serão aqui recenseadas.

2ª Cruzada: Os turcos tendo reconquistado e destruído Edessa, preparou-se nova Cruzada, que partiu do Ocidente em 1147. Exortados por S. Bernardo, o rei de França, Luís VII, e o da Germania, Conrado III, tomaram a cruz sobre si e fun­diram suas tropas num só exército. Mas não conseguiram to­mar nem mesmo Damasco, e regressaram sem êxito em 1149.

3ª Cruzada: O sultão Saladino apoderou-se de Jerusalém em 1187. Respondendo então a um apelo do Papa Urbano III, Filipe Augusto da França, Frederico Barbarroxa da Alemanha, e Ricardo Coração de Leão, da Inglaterra, apresentaram-se para partir. Os alemães, tendo seguido por terra, chegaram. até a Asia Menor; mas a morte de Frederico, afogado nas, águas do rio Cydnus (Cilicia), provocou a dispersão do seu exército (1190). Os reis da França e da Inglaterra dirigiram-se por mar a S. João de Acre, que conseguiram ocupar (julho de 1191). Embora lutassem juntos, os dois monarcas nutriam des­confiança mútua. Filipe Augusto, tendo caído doente, voltou à Europa, e, apesar da palavra dada, pôs-se a tramar com João sem Terra a invasão dos domínios do rei da Inglaterra. Ricar­do viu-se assim compelido a voltar (1192).

Naquela época, os cristãos já não possuíam senão o lito­ral, desde Tiro até Jafa, com S. João de Acre como capital, além do principado de Antioquia, assaz reduzido. Todavia Ri­cardo Coração de Leão havia conquistado Chipre, que se tornou um reino latino próspero.

Cruzada: O Papa Inocêncio III (1198-1216) aspirava ardentemente à libertação de Jerusalém. Suscitou nova expe­dição, a qual, porém, se afastou da sua orientação, sob a in­fluência de Filipe da Suábia, de Veneza e dos gregos. Os cru­zados empreenderam a conquista de Constantinopla (!), que eles saquearam, fazendo da mesma a capital de um Império latino. Esse Império, que compreendia a península dos Balcãs, durou até 1261, quando Miguel o Paleólogo retomou Constan­tinopla.

5ª Cruzada: Entre 1219 e 1221, alemães e húngaros assu­miram a cruz. Dirigiram-se para o Egito; mas a cheia do Nilo, que os cristãos não previam, obrigou-os a retirar-se.

Cruzada: É também chamada «peregrinação sem fé» (1228-1229). Excomungado pelo Papa, Frederico II resolveu empreender uma Cruzada, não tanto para libertar o S. Sepul­cro, quanto para unir em sua pessoa os títulos de Imperador da Alemanha e rei de Jerusalém; amigo da ciência e da cultu­ra árabes, Frederico II aparentava amizade com os árabes, de sorte que obteve do sultão do Egito, por dez anos, o domínio sobre Jerusalém, Belém e Nazaré. Terminado esse prazo, Jerusalém recaiu nas mãos dos árabes.

7ª e 8ª Cruzadas: São Luís IX, rei da França, resolveu re­conquistar a Cidade Santa. Em 1248, atacou o sultão Eyoub, não na Síria, mas no Egito. Como em 1221, também dessa vez os cristãos tomaram Damieta, mas caíram diante de Mansou­rah. Foram todos encarcerados, só conseguindo a liberdade mediante enorme preço de resgate.

Em 1270, S. Luís renovou seus esforços, conseguindo a muito custo constituir um exército para empreender nova ex­pedição. O irmão do rei, Carlos de Anjou, persuadiu-o de ir

primeiramente a Túnis; diante desta cidade, o monarca, aco­metido de peste, veio a falecer aos 25 de agosto de 1270.

Após estes fatos, a pressão dos exércitos turcos se inten­sificou, visando aos últimos redutos cristãos da Ásia. Em 1291, estes sucumbiram, encerrando-se assim a era das Cruzadas pro­priamente ditas.

Ainda, a título de ilustração, mencionamos as Cruzadas das crianças, pois são significativas do espírito da época.

Em 1212, um jovem pastor, chamado Estêvão, dizendo-se enviado por Deus, convocou as crianças da França para em­preenderem uma Cruzada. O exército de 30.000 jovens que as­sim se formou, embarcou em Marselha. Dois condutores de frota haviam-se comprometido a transportá-los ao Oriente gratuitamente; todavia venderam-nos aos mercadores de es­cravos no Egito. A maioria dos participantes pereceu; um pe­queno número recuperou mais tarde a liberdade.

Na mesma época, a Alemanha foi teatro de episódio se­melhante. Vinte mil jovens, dirigidos por certo Alexandre, tão imperito quanto os seus seguidores, atravessaram os Alpes para embarcar em Gênova. Todavia, frustrados, dispersaram­-se sem êxito algum.

Depois desta visão panorâmica do que foram concreta­mente as Cruzadas, importa agora procurar compreender os fatores que provocaram o seu estranho desenrolar.

3. Cruzadas: idealismo ou decadência?

Procederemos por etapas, tentando penetrar tão fielmen­te quanto possível no fenômeno «Cruzadas».

3.1 Os motivos de duvidar

Quem leva em conta a história das Cruzadas, à primeira vista é levado a dizer que constituíram um fracasso ou até mesmo um contra-testemunho dos cristãos. Como sabemos, têm-se catalogado vários capítulos de censura aos cruzados: ambição, traição, vileza de costumes…

É interessante notar que não somente historiadores mo­dernos denunciam falhas tais, mas também pregadores e cro­nistas medievais. Com efeito, no decorrer dos séc. XII e XIII,. perguntavam por que Deus havia permitido a derrota deste ou daquele exército de seus servidores ou por que consentira na perda da Cidade Santa Jerusalém. – Em resposta, julga­vam que o pecado devia ser a causa de tais insucessos; em con­seqüência, apontavam uma série de faltas morais dos cruzados. Tenham-se em vista, por exemplo, Pedro de Blois (+ 1212) em, um sermão da «Patrologia Latina» de Migne, vol. 207, col. 294; Tiago de Vitry, em sermão publicado por R. Röhricht, em. «Zeitschrift für Kirchengeschichte» 6 (1884), pp. 571s. O Con­cílio de Lião I em 1245 também fez advertências a procedimen­tos indignos dos cruzados; cf. Mansi, «Conciliorum amplissima collectio» XXIII, p. 628.

A vista destes dados, dir-se-á que as Cruzadas represen­tam um ponto negro da história medieval?… Ou que signifi­cam fracasso e degenerescência dos cristãos?

Quem assim julgasse em bloco, seria unilateral ou mesmoinjusto. É necessário, pois, voltemos sucessivamente nosso olhar para os diversos aspectos da temática. É o que vamos fazer.

3.2 Quadro geral: apreciação

Não se pode deixar de sublinhar em primeiro lugar o que de positivo as Cruzadas representam não somente aos olhos do cristão, mas também aos do estudioso como tal.

Abstração feita de pessoas e episódios particulares, as Cruzadas têm sua inspiração fundamental na fé dos homens da Idade Média, no seu amor aos valores sagrados e no seu espí­rito cavaleiresco, corajoso e magnânimo. O fato «Cruzadas» nunca se teria verificado, se não tivesse sido inspirado e dina­mizado por estes motivos, que são altamente valiosos.

A fé e o amor dos cristãos, na Idade Média, recorreram às armas para se exprimir concretamente… Hoje muitos cris­tãos hesitariam diante de tal expressão; seriam até propensos a condená-la. Atualmente os homens têm meios de discutir seus problemas e confrontar suas divergências mediante reuniões, assembléias, concordatas; por isto rejeitam (ao menos em teo­ria…) as soluções violentas (na prática, porém, não faltam as guerras também em nossos dias, suscitadas pelos mais di­versos motivos). Contudo na Idade Média as distâncias geo­gráficas, culturais, filosóficas constituíam barreiras quase in­transponíveis, que dificultavam aos homens a aproximação fí­sica e a superação de suas divergências; julgavam em muitos casos ter que recorrer às armas para preservar seus valores e garantir o bem comum. Assumir as armas em tais circunstân­cias era tido como louvável; fugir delas mereceria censura.

Verdade é que o movimento das Cruzadas não conseguiu devolver aos cristãos, de maneira duradoura, a posse da ci­dade de Jerusalém e da Terra Santa em geral. Todavia ele se prolongou por dois séculos, à custa de ingentes sacrifícios, que revelam notável espírito de heroísmo. Sucessiva e tenaz­mente, as gerações de cristãos despertaram as suas energias para recomeçar a grande façanha que outros não haviam con­seguido realizar plenamente. Se não nos deixaram um reino ou uma república de Jerusalém, deixaram ao menos o teste­munho de sua fé e de seu entusiasmo – valores estes que até hoje estão documentados e expressos pelas numerosas igrejas e outros monumentos ainda existentes em Jerusalém e em toda a Terra Santa. Deus, Cristo e a Igreja eram valores indiscu­tíveis para esses fiéis, que estavam dispostos a grandes sacri­fícios para afirmá-los ou defendê-los. Semelhante coragem é desejável aos fiéis dos dias atuais, para que, dentro das cate­gorias do séc. XX, professem e vivam concretamente a sua fé (a lição dos cruzados ainda é eloqüente, sob este ponto de vista).

Não se poderiam silenciar outrossim os vultosos benefí­cios acarretados pelas Cruzadas no plano cultural e científico. O contato entre latinos, gregos (bizantinos) e árabes ocasio­nou incremento para a matemática, a medicina, a indústria, o comércio e outros ramos das atividades humanas; desenvolveu a navegação e modificou as condições econômicas da sociedade feudal.

Em suma, preparou o grande surto das artes e das ciências ditas «exatas» nos séc. XV/XVI.

São estas reflexões que impedem de dizer que as Cruza­das em seu conjunto foram um fracasso ou um contra-teste­munho do espírito cristão. Ao contrário, elas atestam, em pri­meira linha, valores positivos da Idade Média, embora expres­sos de maneira que em nossos tempos já não seria preconizada nem imitável.

Desçamos agora a considerações mais particulares.

3.3. Fatores negativos

O entusiasmo que desencadeou as Cruzadas era mais idea­lista do que realista; os seus arautos não mediam a amplidão dos encargos e problemas que a execução concreta do progra­ma apregoado devia acarretar. É o que explica que os cruza­dos, após haver obtido os seus primeiros resultados, tenham experimentado sucessivos reveses. Estes se devem a fatores vários, que podem ser assim enunciados:

1) A amplidão da tarefa empreendida pelos cruzados exi­giu, com o passar do tempo, o recurso a subsídios novos e ne­cessariamente heterogêneos, a saber:

– os cavaleiros e outros cristãos que espontânea e entu­siasticamente se ofereciam para assumir a cruz, já não basta­vam para o objetivo. Foi preciso recrutar soldados mercená­rios, que pugnariam não tanto por ideal cristão universal, mas, sim, por interesses pessoais, às vezes mesquinhos. Muitos desses mercenários eram antigos criminosos detentos, a quem se dava a liberdade à condição de que fossem lutar no Oriente. Ora compreender-se que tais soldados, vendo-se livres, facilmente voltavam aos maus hábitos e prejudicavam o conjunto da tropa.

Assim foi sendo cada vez mais diluída a imagem do cavaleiro que galhardamente partia para a Terra Santa às próprias cus­tas, porque amava o Senhor Jesus.

– As despesas com os soldados mercenários e seus equi­pamentos eram ingentes, exigindo dos responsáveis que pro­curassem angariar quantias de dinheiro jamais suficientes.

– Ora onde entra dinheiro, facilmente é excitada a cobiça do ser humano com suas paixões, que levam a abusos e desatinos.

Infelizmente não se tem documentação precisa sobre o montante das despesas exigidas por uma expedição de cruza­dos. Desejar-se-ia saber quanto cada soldado em média perce­bia, quanto os reis davam do seu erário e quanto o Papa em­penhava nas sucessivas Cruzadas. Existem, sem dúvida, notí­cias a respeito. Todavia os diversos dados supõem épocas di­versas, as quantias são expressas em moedas heterogêneas, as notícias são parceladas, de sorte que é difícil ter idéias claras do conjunto. Apenas as duas Cruzadas de S. Luís IX têm cer­ta contabilidade escrita em livros; sabe-se, pois, que o total das despesas da campanha de 1247 a 1256 comportou 1.537.570 libras de Tours. Mesmo assim há dúvidas – outra documentação refere que somente nos anos de 1250 a 1253 a Cruzada consumiu 1.053.476 libras de Tours!

– De modo particular, criou problemas o transporte das tropas para o Oriente. O meio mais indicado e preferido eram as embarcações, que atravessavam o Mediterrâneo. Ora até a quinta Cruzada os expedicionários não possuíam frota própria. Justamente a quarta Cruzada foi desviada para Constantino­pla, porque, não tendo naves próprias, foi obrigada a valer-se das de Veneza, que procuraram servir aos seus interesses co­merciais, e não aos dos cruzados. Tardiamente, sob Frederico II e Luís IX, os cruzados recorreram a equipamento marítimo próprio. Anteriormente, porém, tinham que utilizar os navios das cidades comerciantes da Itália ou da França (Veneza, Gê­nova, Pisa, Marselha… ), que, em troca, exigiam para si di­reitos e privilégios nos portos da Palestina.

– O vulto crescente das Cruzadas exigiu que a direção das mesmas fosse confiada a reis, príncipes e grandes senhores de terras, pois estes poderiam, mais facilmente do que os cava­leiros, organizar e sustentar exércitos de mercenários. Ora os reis e grandes senhores nem sempre se entendiam entre si; obje­tivos políticos e nacionalistas facilmente afrouxavam ou so­lapavam alianças previamente contraídas (levem-se em conta a primeira e a terceira Cruzadas). – Notório é o caso de Fre­derico II da Alemanha, orientalista e diletante, do qual refere o cronista Maqrizi os seguintes dizeres (autênticos?): «Meu objetivo principal, vindo a Jerusalém, era ouvir os muçulmanos na hora da oração invocar Alá durante a noite». A crônica árabe também refere a seguinte confidência do Imperador ao emir Fakhr ed-Din: «Se eu não tivesse receado perder o meu prestígio aos olhos dos francos, nunca teria imposto ao sultão a restituição de Jerusalém!»

2) Também se apontam falhas morais no procedimento dos cruzados: rapina, abuso de mulheres e outros males, que já os pregadores e o Concílio de Lião I censuravam…

O historiador sincero há de reconhecer tais erros, que o estudo objetivo manifesta. Todavia não se deveria fazer des­sas falhas a nota característica ou uma das notas característi­cas das Cruzadas. Elas ocorreram com os cruzados como ge­ralmente ocorrem nas expedições militares. Todo soldado é sujeito a procurar suas «compensações» depois de haver so­frido os rigores da fome, da sede, do frio e de severa discipli­na durante a respectiva campanha. Não poucos cruzados che­gavam finalmente à costa da Palestina doentes, vítimas de fe­bres, e facilmente aceitavam ser tratados em clima de moleza, bem-estar e gozo.

Nem por isto tais «compensações» são legítimas. Aliás, refere-se que Ricardo Coração de Leão, após haver tomado a cidade de S. João de Acre, percebeu o desleixo moral da sua gente; ordenou então que a tropa se retirasse da cidade; os mi­licianos, porém, só o seguiram a contragosto e com hesitação, principalmente porque o monarca mandara que as mulheres de baixa vida ficassem em Acre.

De resto, com os medievais acontecia freqüentemente um estranho fenômeno de contraste: associavam, com simplorie­dade ou naturalidade quase infantil, graves abusos morais e eloqüentes manifestações de entusiasmo religioso. Seria isto uma herança dos costumes bárbaros dos povos que invadi­ram a Europa nos séc. IV-VI? Seria a expressão de mentali­dade ainda não plenamente amadurecida e aprimorada? – É de crer.

Para ilustrar o fenômeno, pode-se citar um episódio ocor­rido na terceira Cruzada: em 1192, Ricardo Coração de Leão da Inglaterra resolveu encerrar a expedição e voltar para o Ocidente; as suas tropas, porém, declararam, num clima de alegria e entusiasmo, que, com o rei ou sem o rei Ricardo, continuariam a lutar para chegar a Jerusalém!

Numerosos outros episódios se poderiam ainda propor para analisar e comentar as Cruzadas. Em síntese, porém, parece que os principais traços das mesmas e do respectivo fundo de cena foram indicados nestas páginas.

Em suma, pois: recolocadas no seu contexto medieval, as Cruzadas não são mancha negra; mas, ao contrário, atestam (naturalmente segundo as categorias e possibilidades da Idade Média) a unidade e a homogeneidade dos povos da Alta Idade Média, que encontraram na sua fé – valor que eles não dis­cutiam – o estimulo e o dinamismo para realizar façanhas he­róicas, ao mesmo tempo marcadas pela virilidade, pela poesia e pelas limitações humanas… !

A respeito das Cruzadas a bibliografia é vasta. Sejam destacadas as seguintes obras:

A. Waag, “Geschichte der Kreuzzüge. I. und II.Band”. Freiburg i./Br. 1956 (estudo ricamente documentado, donde extraímos grande número de episódios e observaçõees contidos nas crônicas medievais, que o autor uti­lizou copiosamente).

R. Pernoud, “Les croisades”. Paris 1960 (coletânea de documentos e relatos medievais, traduzidos para o francês e comentados).

R. Grousset, “L’épopée des Croisades”. Paris 1939.

Idem, “Histoire des Croisades et du royaume franc de Jérusalem”. 3 vols. Paris 1936.

R. C. Small, “Crusading Warfare” (1097-1193). Cambridge 1967.’

St. Runciman, “A history of the Crusades”. 3 vols. Cambridge 1054s. G. G. Coulton, “Crusades, Commerce and Adventure”. London 1930. J. Richard, “Le royaume latin de Jérusalem”. 6 vols. Paris 1953. M. Michaud, “Histoire des Croisades”. 6 vols. Paris 1829.

“Histoire des Croisades par Michaud… Nouvelle édition augmentée d’un Appendice par M. Huillard Brebolles”. 4 vols. Paris 1862.

P. Alphandéry, “La Chrétienté et l’idée de Croisade”. 2 vols. Paris 1954.

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NOTAS:

[1] Trata-se aqui da reconstrução da basílica do Santo Sepulcro após a destruição de Jerusalém pelos persas em 614.

[2] Alusão ao antigo templo de Salomão, transformado pelos árabes em mesquita de Ornar.