Idade Média: Idade Média: sim ou não?

(Revista Perguntee Responderemos, PR 454/2000

Em síntese: A Idade Média (476-1453) é período execrado por uns e enaltecido por outros. As páginas subseqüentes demonstram que foi uma fase valiosa da história da humanidade, pois a civilização ocidental, hoje hegemônica, foi então preparada; os medievais souberam salvar quanto de válido tinha a cultura greco-romana e desenvolvê-lo em perspectiva cristã, lançando as bases para a civilização moderna.

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As páginas subseqüentes referem o texto de uma conferência feita pelo redator de PR em Natal (RN) aos 9/10/99, com o título “Idade Média: Síntese e Prospectivas”. Como sugere o titulo, o trabalho compreende duas Partes: 1) Síntese e 2) Prospectivas. A primeira Parte distingue três subpartes: a) a Problemática, b) Visão de Conjunto, c) Linhas Salientes.
1. Síntese

1.1. A Problemática

A Idade Média é uma fase da história muito controvertida e, por isto mesmo, merecedora de estudo mais atento.

O próprio nome “Idade Média” foi forjado pela Renascença do século XVI para significar “mil anos de obscurantismo ou de recuo na cultura”. Esta terá sido cultivada brilhantemente pela antigüidade greco-romana até 476 e haverá caído em decadência tenebrosa até o século XV (1453). A Idade Média haverá sido um túnel escuro. Gótico seria sinônimo de bárbaro.

O protestantismo reforçou tal julgamento pejorativo, visando a opor-se à Igreja Católica.

No século XVIII, o Iluminismo repetiu as mesmas sentenças, como se pode depreender dos escritos de Voltaire, Montesquieu, d’Alembert…: superstição, ingenuidade da mente, loucura terão caracterizado o período medieval.

No século XIX a historiografia do romantismo reconheceu com objetividade os valores medievais.

Em nossos dias, dois modos de ver se cruzam: o agressivo e o sereno ou positivo. – Objetivamente falando, deve-se dizer que a Idade Média não foi um segmento de retrocesso da cultura. Muito ao contrário; em 476 desapareceu o Império Romano Ocidental – o que deu lugar na Europa à formação de nova cultura, elaborada por ocidentais romanos e bárbaros inspirados pela fé cristã; inegavelmente tal cultura, que tem início no começo da Idade Média e se foi desenvolvendo aos poucos, acabou por impor-se ao mundo inteiro. A cultura predominante em nossos dias é a ocidental, que tem seu berço na Europa medieval; a época moderna não criou a partir do nada os valores que ela cultiva, mas recebeu-os da antigüidade, ilustrados pelas modalidades que lhe acrescentaram os medievais. Daí dever-se dizer que a Idade Média marca a origem da nossa civilização ocidental muito mais do que significa a decadência do mundo romano antigo. O gênio romano conferiu à civilização greco-romana o senso prático da organização e a arte de dirigir os homens.

1.2. Visão de Conjunto

Em 330 o Imperador Constantino transferiu a capital do Império de Roma para Bizâncio no Bósforo; uma pequena aldeia fundada em 658 a.C. foi feita centro cultural com o nome de Constantinopla, que, como “segunda Roma”, pôs-se a rivalizar com a primeira Roma.

Tal fato teve como seqüela a transferência da intelectualidade para o Oriente, ficando o Ocidente entregue aos bárbaros invasores. Foi preciso então refazer ou reerguer o mundo ocidental, desta vez sem o concurso dos bizantinos, mas com as forças remanescentes no Ocidente.

Como se deu esse reerguimento?

Em 476 a cidade de Roma caiu sob os golpes dos godos. O primeiro rei godo, Odoacro, foi assassinado, após deixar o trono, em 493. Sucedeu-lhe Teodorico, que tentou unificar os monarcas do Ocidente numa espécie de confederação por ele governada; haveriam de aliar-se entre si francos, burgúndios, visigodos, vândalos, alamanos, turíngios… A fim de o conseguir, deu em casamento sua filha, sua sobrinha, sua irmã. Faltava, porém, a essa pretensa confederação uma cultura única: os súditos romanos e os guerreiros godos não tinham nem a mesma nacionalidade nem a mesma religião (os bárbaros eram arianos e não cristãos ortodoxos). Daí o fracasso da tentativa.

Mais feliz foi Clóvis, rei dos francos. Converteu-se, com seu povo, à fé católica em 496, quando S. Remigio, bispo de Rheims o batizou. Conseguiu pelo vínculo da mesma fé unir entre si francos e romanos. Todavia a dinastia merovíngia não esteve à altura da tarefa proposta por seu fundador, pois se entregou ao declínio moral.

A situação evoluiu no século VIII. O Papa Estêvão II viu-se assediado pelos longobardos. Bizâncio se desinteressava por Roma, de mais a mais que a disputa iconoclasta abria o fosso entre latinos e gregos (os Imperadores bizantinos favoreciam o iconoclasmo e desprezavam os ocidentais). O Papa então houve por bem apelar para os francos, que se haviam tornado a nação primogênita da Igreja (foram os primeiros bárbaros que se batizaram no Catolicismo). O mordomo do palácio dos reis merovíngios era Pepino o Breve, que governava sem ser rei (o rei reinava, mas não governava). Fez-se um acordo entre Pepino e Estêvão II. O Papa reconhecia Pepino como rei de fato e de jure; do seu lado, Pepino reconhecia o Estado Pontifício confiado à administração autônoma do Bispo de Roma. Originava-se assim o Estado Pontifício não como produto de conquistas bélicas nem de ganância por parte do Papa, mas como efeito de doações espontaneamente feitas pelos nobres cristãos da península itálica, que, ao entrarem para o mosteiro ou ao morrerem, doavam seus territórios ao Pontífice; constituiu-se desta maneira o Patrimônio de São Pedro, ampla extensão territorial que o Papa ia administrando sem outro título a não ser o de Pastor da Igreja, muito respeitado e estimado pelos fiéis como baluarte da ordem no tempo das invasões bárbaras e do descaso bizantino. O Papa, que era de fato o senhor temporal desse território, tornou-se o senhor de jure das mesmas terras, quando Pepino houve por bem reconhecer o Estado Pontifício.

A nova dinastia franca chegou ao seu ponto alto com Carlos Magno (768-814). Este em 800 foi coroado Imperador na noite de Natal de 800 pelo Papa Leão III, instaurando assim o Sacro Império Romano da Nação Franca – o que muito aborreceu os bizantinos. O evento foi de grande importância, pois evidenciava a continuidade básica entre o Império Romano antigo e o medieval; a Renascença carolíngia suscitou um novo brilho de cultura, desta vez enriquecida pela cosmovisão cristã.

A hegemonia franca cedeu à germânica, de modo que em 962, com Oto I se formou o Sacro Império Romano da Nação Germânica. Nesses séculos o profano e o religioso se entrelaçavam. Pairava ante os olhos dos responsáveis o ideal da Cidade de Deus, já apresentado por S. Agostinho na sua obra De Civitate Dei (413-426). O Papa S. Gregório VII (1073-1095) tentou realizá-lo concretamente, emancipando a Igreja da prática da simonia e propondo o olhar da fé como a suprema diretriz da conduta dos monarcas e de todo o povo. O Papa e o Imperador deveriam colaborar entre si para a plena instauração dessa única cidade grande, em que Deus seria reconhecido por todos como o Senhor Supremo; infelizmente, porém, as ambições políticas dificultaram, se não impediram, a efetivação desse nobre ideal; o Imperador germânico tentou sempre cercear a autoridade do Papa.

A Idade Média chega ao seu ponto alto no século XIII, que começa com o Papa Inocêncio III (1198-1216), “o Embaixador do Rei dos reis”. Foi o Pontífice que com mais êxito conseguiu orientar segundo a fé cristã os eventos do seu tempo. A Igreja gozou então de prestígio tal que muitos fiéis se preocuparam com a imponência; foi o que suscitou as Ordens Mendicantes de São Francisco de Assis e São Domingos de Gusmão; queriam lembrar ao mundo a pobreza de Cristo continuada na sua Igreja. O século XIII foi também o das grandes Universidades: Bolonha, Paris, Oxford…

O declínio começou a ocorrer no século XIV, quando despontou o absolutismo dos reis na pessoa de Filipe IV o Belo da França (1285-1314). A tentativa de colaboração e unidade verificada anteriormente foi sendo solapada; o Papa Bonifácio VIII (1294-1303) imaginava poder ainda aplicar os princípios de Gregório VII e Inocêncio III, mas encontrou sérios obstáculos por parte do rei dos francos, obstáculos que se prolongaram durante o século XIV por parte do rei Luís IV da Baviera (1314-47).

Assim foi-se esfacelando o ideal de unidade e colaboração entre Igreja e Estado. Sobreveio a essa desordem política a decadência filosófica com a escola do Nominalismo, que foi antimetafísica e um tanto cética; as normas da Moral dependeriam unicamente da vontade de Deus, que poderia preceituar o inverso do que preceitua nas Escrituras Sagradas.

Os séculos XV e XVI foram o cenário do Humanismo Renascentista, que restaurou a cultura greco-romana pré-cristã como tal e contribuiu para diluir cada vez mais a síntese medieval. É de notar como essa diluição se foi acentuado até chegar ao extremo do ateísmo;

– o século XVI foi o do NÃO dito à Igreja por obra dos reformadores protestantes;

– o século XVIII disse NÃO a Jesus Cristo ou à Revelação sobrenatural (teísmo) para professar a religião natural apenas ou o deísmo;

– o século XIX proferiu o NÃO ao próprio Deus, professando o ateísmo e o materialismo sob diversas modalidades. Completou-se desta maneira a antítese à Idade Média.

Examinemos agora, mais detidamente, as principais notas do período medieval.

1.3. Notas Salientes

Distinguiremos nove traços característicos da Idade Média.

1.3.1. A Cidade de Deus

Uma das principais características do período medieval foi certamente o ideal da Cidade de Deus, em que haveria estrita colaboração entre o poder civil e o poder religioso ou entre o Papado e o Império; seriam os dois olhos do corpo social ou as duas espadas de que fala o Evangelho (Lc 22, 38). Instaurar-se-ia assim o regime de Cristandade, designado pelo próprio termo “Sacro Império Romano”; como se vê, os medievais queriam fazer algo de original e não simplesmente reerguer o Império Romano pagão, sem, porém, perder a continuidade com este.

A aspiração à harmonia entre o temporal e o espiritual teve suas conseqüências importantes:

a) a consciência de que há valores objetivos, não dependentes da subjetividade do homem,… valores que podem exigir o reconhecimento do intelecto humano, por mais ufano que este seja. A Transcendência era um fato indiscutido (ao menos, em teoria) e marcava toda a vida pública com seus feriados, suas festas, seus símbolos…

b) Teocentrismo, e não antropocentrismo, é nota que se deduz da anterior. Estava assim dito que o homem não é a medida de todas as coisas, mas, sim, professava-se que “conhecer a Deus é viver, e servir a Deus é reinar” (Missal Romano);

c) confiança na razão como faculdade capaz de apreender a verdade objetiva. As Sumas Teológicas dos grandes autores medievais têm sido comparadas com as catedrais góticas da época. Sem dúvida, a cultura medieval era mais especulativa do que empirista (por deficiência de instrumentos); era mais metafísica do que psicológica. Platão e Aristóteles foram os grandes mestres sucessivamente evocados pelos medievais. –

Com outras palavras:

Para os medievais, o mundo era obra de um Deus sábio e lógico, por conseguinte, o mundo lhes parecia como algo que pode ser conhecido pelo homem mediante a sua razão; não é um fantasma nem uma armadilha. Dizia no século XII o teólogo francês Guilherme de Conches: “Deus respeita as próprias leis”. E no século seguinte Santo Alberto Magno (+1280) afirmava: “Natura est ratio. A natureza é a razão ou é racional”. Em conseqüência, os estudiosos medievais se aplicaram ao raciocínio e à pesquisa (como a podiam realizar na sua época) com plena confiança no acume da razão, sem, porém, cair no racionalismo, pois acima da razão admitiam as luzes e as verdades da fé…

Um dos exemplos mais clássicos deste tipo de estudiosos é o inglês Rogério Bacon (1214-1294), chamado “Doutor Admirável”. Ingressou na Ordem dos Franciscanos em 1257 e pôs-se a comentar as obras de Aristóteles. Posteriormente dedicou-se à pesquisa científica, recorrendo a um método experimental, que foi precursor do método adotado por Francis Bacon (1561-1626); assim procedendo, fez descobertas no setor da ótica. Planejou diversas invenções mecânicas: máquinas a vapor, barcos, outras máquinas … Em seus escritos encontrou-se uma fórmula da pólvora, que ele pode ter tomado dos árabes numa época em que os europeus quase não a conheciam. Deixou obras famosas: Opus Majus, Opus Minus e Opus Tertium.

Os resultados dessa confiança dos medievais na razão humana fizeram-se sentir nos séculos subseqüentes: em 1608 contavam-se mais de cem Universidades na Europa e nenhuma no resto do mundo (exceto na América Latina, onde os espanhóis expandiam a sua cultura). Dessas Universidades, mais de oitenta tiveram origem na Idade Média, como genuína expressão da cultura medieval. Diz-se com razão que as Universidades e as catedrais exprimem autenticamente a Idade Média; na verdade, os medievais atingiram o seu auge de altura de cúpula na catedral de Amiens (1221), com 42,30 metros. A flecha da torre da catedral de Estrasburgo, terminada em 1439, mede 142 metros de altura: só foi ultrapassada pela Torre Eiffel de Paris em 1889, com 320 metros.

1.3.2. Produções e Invenções

Tenha a palavra o Prof. Léo Moulin, que foi por cinqüenta anos docente da Universidade Maçônica de Bruxelas, Universidade fundada para fazer frente à Católica de Louvam. Filho de família agnóstica, anticlerical, voltada para o Socialismo, Moulin falou como agnóstico, respondendo ao jornalista italiano Vittorio Messori, que o entrevistou[1]. Eis o que declarou:

“O século XIII, vértice da sociedade medieval, é um dos pontos mais altos e luminosos da história do Ocidente ou mesmo da humanidade. Em poucos decênios, tivemos Giotto, Dante, Tomás de Aquino, mil catedrais…”

Moulin ri-se do mito dos “séculos obscuros”:

“Eis um breve e incompleto elenco das invenções tecnológicas (obras, quase todas, de monges beneditinos) do homem medieval, que, como diz a lenda, vivia na ignorância e na penitência, apenas à espera do fim do mundo: o moinho de água, a serra hidráulica, a pólvora preta, o relógio mecânico, o arado, a relha, o timão, a roda, o jugo para o cavalo, o canal com reclusas e portas, a canga múltipla para os bois, a máquina para enovelar a seda, o guindaste, a dobadoura, o tear; o cabrestante complexo, a bússola magnética, os óculos. Acrescentemos a imprensa, o ferro fundido, a técnica de refinação, a utilização do carvão fóssil, a química dos ácidos e das bases, etc. Esse impulso ao conhecimento científico e tecnológico continuou nos séculos seguintes: no início do século XVII a Europa contava 108 Universidades, enquanto no resto do mundo não havia uma só… isto põe um problema para o historiador. Por que é que o desenvolvimento ocorreu somente em área cristã, e não fora desta? Por que, hoje ainda, entre os dez países mais evoluídos e ricos do mundo, nove são de tradição cristã? Não há outra explicação senão a que já expus em livros dedicados à questão: há na mensagem cristã alguma coisa que leva os germens do desenvolvimento e do progresso. A antropologia da Bíblia exalta o homem e o põe no centro do universo. Além disto, pregando igualdade, ela cria uma sociedade livre, sem barreiras sacrais ou de castas; não há, pois, como se surpreender se, alimentado por tal mensagem, o homem europeu conquistou o mundo… Por que as suas naves lhe permitiam dominar os mares? Por que ele, e ele só, sentiu a necessidade de expandir-se sobre a terra inteira, enquanto a África, a Ásia, a América pré-colombiana permaneciam imóveis nos seus confins? Sem esta nossa maravilhosa Europa, o mundo, como o conhecemos, não existiria. Mas não existiria nem mesmo esta Europa recoberta de glórias, sem as suas raízes cristãs e sem os seus monges”.

1.3.3. Regime feudal

Feudalismo, para muitos, quer dizer prepotência, arbitrariedade de um senhor absoluto; para outros, significa anarquia ou falta de um poder central. – Vejamos como surgiram e o que eram os feudos.

O Império Romano era regido por um Governo centralizado, tanto quanto possível, no início da era cristã. Roma, porém, caiu sob os golpes dos godos em 476 – o que deu origem à confusão nas terras do Império ou no Ocidente da Europa, invadido por diversas tribos bárbaras. Não havendo mais poder central que garantisse a ordem pública, pequenos poderes foram surgindo: cada senhor de uma porção de terra procurava assegurar a si mesmo e aos seus servidores aquilo que o Estado não oferecia, isto é, paz, defesa contra os invasores, possibilidade de cultivar a terra, colher seus frutos para se alimentar e para permutá-los num pequeno comércio; este se tornava difícil porque os transportes eram precários; não havia exército para fiscalizar as estradas ameaçadas por bandidos. A terra era a única fonte de subsistência para o homem. Compreende-se então que os camponeses, incapazes de garantir a si e à sua família a segurança respectiva, tenham procurado a proteção de vizinhos mais poderosos, que os defendessem com suas armas em troca de uma parte das colheitas desses camponeses. Havia assim entre o homem do campo e o senhor (senior, em latim, quer dizer ancião) um contrato firmado por juramento (que naquela época tinha valor sagrado). Tanto o senhor como o agricultor se beneficiavam desse contrato. Foi desta maneira que tiveram origem os feudos ou territórios feudais: constavam de um nobre (conde, barão…), que tinha a possibilidade de manter um pequeno exército e que abrigava em seus territórios várias famílias de camponeses. Cada um desses pequenos Estados feudais era mais ou menos autônomo ou tinha sua legislação própria. Podia haver reis ou senhores de territórios maiores, nos quais existiam senhores feudais; esses reis, porém, não gozavam de autoridade centralizada como a do Império Romano; nem Carlos Magno, que em 800 se tornou o Imperador do Sacro Império Romano da Nação Franca, nem os Imperadores Otos, que no século X governaram o Sacro Império Romano da Nação Germânica, restauraram o poder central do antigo Império; entre o monarca e os senhores feudais havia pactos, alianças… observância de costumes, que constituíam um liame ora mais tenaz, ora mais fraco.

O servo da gleba era tratado como pessoa, à diferença do escravo romano, que era considerado rés, coisa. O senhor feudal não tinha direito sobre a vida deles, como tinha o senhor do escravo romano. O servo da gleba pactuava com o seu senhor espontaneamente, isto é, isento de coação por parte de algum chefe: o senhor não o poderia expulsar do seu território, nem ele poderia fugir; o servo devia cultivar a terra, cavando-a, semeando-a e colhendo os frutos, tanto em seu proveito como em proveito daquele que lhe dava tutela. Fora disto, o servo gozava de todos os direitos do homem livre: podia casar-se e fundar uma família; a sua terra passaria para os filhos após a sua morte, assim como os bens que ele pudesse adquirir. O senhor feudal tinha obrigações correspondentes: não lhe era licito vender, alienar ou abandonar a terra do servo.

O rei, nos tempos feudais, era senhor entre outros senhores; governava o seu feudo pessoal, administrando a justiça, defendendo os seus súditos e recebendo as taxas a que tinha direito; os outros senhores deviam-lhe auxílio militar e se comprometiam a entrar em guerra com ele, caso o reino fosse ameaçado. Devia procurar manter o equilíbrio entre seus vassalos e entre estes e o próprio soberano, servindo-se, para isto, do sistema de casamentos e heranças.

O regime feudal, que teve o seu surto nas circunstâncias sócio-geográficas do século V, foi-se espalhando e firmando até o começo do novo regime: o das monarquias absolutas, das quais a primeira foi a de Filipe IV o Belo, da França (1285-1314). A volta dos governos centralizados se deve, em grande parte, à restauração do Direito Romano, que começou no século XIII.

1.3.4. A Mulher

A figura da mulher, na Idade Média, tem sido mal entendida ou cercada de preconceitos, como se tivesse sido relegada para uma posição de desprezo. Eis alguns dados que desmentem tal concepção:

Nos tempos feudais a rainha era coroada como o rei, geralmente em Rheims ou, por vezes, em outras catedrais. A coroação da rainha era tão prestigiada quanto a do Rei. A última rainha a ser coroada foi Maria de Medicis em 1610, na cidade de Paris. Algumas rainhas medievais desempenharam amplas funções, dominando a sua época; tais foram Leonor de Aquitânia (+1204) e Branca de Castela (+1252); no caso de ausência, da doença ou da morte do rei, exerciam poder incontestado, tendo a sua chancelaria, as suas armas e o seu campo de atividade pessoal.

Verdade é que a jovem era dada em casamento pelos pais sem que tivesse livre escolha do seu futuro consorte. Todavia observe-se que também o rapaz era assim tratado; por conseguinte, homens e mulheres eram sujeitos ao mesmo regime.

A Igreja lutou contra essa imposição de casamentos; exigiu e exige que os nubentes dêem livre consentimento à sua união matrimonial e formulou impedimentos diversos que, opondo-se à grandeza e à santidade do casamento, o tornam nulo. De passagem observe-se que nem mesmo em nossos dias a legislação muçulmana garante à mulher a liberdade de escolha do seu marido.

Precisamente por causa da valorização prestada pela Igreja à mulher, várias figuras femininas desempenharam notável papel na Igreja medieval. Certas abadessas, por exemplo, eram autênticos senhores feudais, cujas funções eram respeitadas como as dos outros senhores; administravam vastos territórios como aldeias, paróquias; algumas usavam báculo, como o bispo… Seja mencionada, entre outras, a abadessa Heloisa, do mosteiro do Paráclito, em meados do século XII: recebia o dízimo de uma vinha, tinha direito a foros sobre feno ou trigo, explorava uma granja…

É surpreendente ainda notar que a enciclopédia mais conhecida no século XII se deve a uma mulher, ou seja, à abadessa Herrade de Landsberg. Tem o título “Hortus Deliciarum” (Jardim das Delícias) e fornece as informações mais seguras sobre as técnicas do seu tempo. Algo de semelhante se encontra nas obras de S. Hildegardis de Bingen.

Notemos ainda a figura de Joana d’Arc (1412-1431): a audiência que conseguiu da parte do rei da França e dos seus cortesãos para desempenhar as suas façanhas heróicas, é realmente algo de extraordinário.

1.3.5. 0 Ensino

As escolas na Idade Média eram fundadas e mantidas geralmente pela Igreja: havia as escolas das paróquias, as das catedrais e as dos Mosteiros. Em 1179 o Concílio do Latrão III impôs a todas as igrejas a obrigação de ter uma escola agregada. Além disto, os senhores feudais podiam fundar suas escolas, como também os habitantes de um lugarejo se podiam associar entre si para sustentar um professor encarregado de ensinar às crianças. Conservou-se até hoje a petição de alguns pais solicitando a demissão de um professor, que, não tendo sabido fazer-se respeitar pelos alunos, foi por estes desrespeitado; sim, haviam-no ferido com os seus estiletes (grafiones) destinados a escrever sobre tabuinhas revestidas de cera.

As crianças eram admitidas na escola com sete ou oito anos de idade; o ensino, que preparava para os estudos da Universidade, estendia-se por uma dezena de anos. Os meninos eram separados das meninas, que tinham seus estabelecimentos próprios, menos numerosos talvez, mas muito ativos. A Abadia de Argenteuil, por exemplo, onde foi educada Heloisa, ensinava às alunas a S. Escritura, as letras, a medicina e mesmo a cirurgia, sem contar o grego e o hebraico, que Abelardo lá ensinou. Em geral, as pequenas escolas proporcionavam aos seus alunos as noções de gramática, aritmética, geometria, música e teologia que lhes permitiam chegar às Universidades; é possível que algumas tenham ministrado um ensino técnico.

Os estudantes mais dotados tomavam o caminho da Universidade, de acordo com as suas preferências. Em Montpellier, ensinava-se a medicina; em Orleães, o Direito Canônico; em Bolonha, o Direito Romano. Paris, porém, atraía de modo especial, pois lá se aprendiam as artes liberais e a teologia por parte de estudantes provenientes da Alemanha, da Itália, da Inglaterra, da Dinamarca, da Noruega.

1.3.6. As Universidades

As Universidades, que eram obras da Igreja, dependiam diretamente do Papa e não do Bispo do lugar. Cada Universidade formava um corpo livre – o que quer dizer que estava isenta da jurisdição civil ou dos tribunais do rei. Professores, alunos e até os servidores destes estabelecimentos dependiam apenas dos tribunais eclesiásticos – o que era considerado um privilégio; professores e alunos administravam a sua tesouraria sem ingerência do Estado. É esta a característica essencial da Universidade medieval e aquela que mais a distingue da de hoje.

Tal liberdade favorecia a emulação entre as diversas Universidades; os estudantes de Paris iam fraudulentamente a Orleães a fim de concluir a sua licenciatura, porque lá os exames eram mais fáceis; realizavam seus movimentos de contestação e greve… a tal ponto que a Universidade medieval era um mundo turbulento, quase tanto quanto em nossos dias. – Era também um mundo cosmopolita; os estudantes de Paris estavam repartidos em quatro nações: os Picardos, os Ingleses, os Alemães e os Franceses. Os professores também vinham de diversas partes do mundo: havia Sigério de Brabante (Bélgica), João de Salisbury (Inglaterra), Alberto Magno da Renânia, S. Tomás de Aquino e São Boaventura da Itália. A língua comum, única falada na Universidade, era o latim; esta permitia aos sábios comunicar-se de um ponto a outro da Europa Ocidental e contribuía para salvaguardar a homogeneidade de pensamento. Os problemas que apaixonavam os filósofos, eram os mesmos em Paris, em Oxford, em Edimburgo, em Colônia ou em Pavia.

O mundo estudantil era também um mundo itinerante: os jovens saiam de casa para alcançar a Universidade de sua escolha; voltavam para sua terra nas festas. Punham-se a caminho para aproveitar as lições de um mestre de nomeada ou estudar uma matéria na qual determinada cidade se especializara. Como dito, havia os que “fugiam” para Orleães para fazer os exames de Direito Canônico em termos facilitados. Assim percorriam as estradas a cavalo e, mais freqüentemente, a pé, caminhando léguas e léguas e dormindo em abrigos de viandantes. Com os mercadores e os peregrinos, foram os estudantes os que mais contribuíram para a grande animação das estradas medievais.

O ensino era ministrado em latim. Compreendia o trivium ou as artes liberais (Gramática, Retórica, Lógica) e o quadrivium ou as ciências (Aritmética, Geometria, Música e Astronomia). Além disto, havia as Faculdades de Teologia, Direito e Medicina. Assim era abrangido todo o ciclo de conhecimentos da época. Cada ramo de saber era colocado dentro do conjunto dos conhecimentos relativos ao homem; com outras palavras, os medievais procuravam ministrar sempre cultura geral representada principalmente pelo trivium e o quadrivium. É o que explica o caráter enciclopédico de muitos sábios e letrados da época: Rogério Bacon, João de Salisbury, Alberto Magno…, que podiam entregar-se sucessivamente a diversos assuntos sem perder a visão do conjunto. A Universidade aplicava também com freqüência o método da disputa filosófico-teológica (quaestiones disputatae), que seguiam regras estritas, aptas a garantir a boa ordem e o progresso do pensamento.

A propósito faz-se mister dissipar um mal-entendido: o número de iletrados era, sem dúvida, maior na Idade Média do que em nossa época (ainda que menor do que se tem dito). Acontece, porém, que ser iletrado não significava ser ignorante ou inculto na Idade Média; sim, os homens medievais, aprendiam mais pelo ouvido do que pela leitura (o que se compreende, pois, antes da invenção da imprensa, poucos e caros eram os livros); por muito estimados que fossem os códigos, eles não podiam ser tão utilizados e aplicados quanto a palavra viva; lembremo-nos, por exemplo, de que as ordens dos reis e dos governantes eram muito mais freqüentemente proclamadas e apregoadas de viva voz do que transmitidas por escrito. Estes elementos explicam que nos Estatutos municipais da cidade de Marselha, datados do século XIII, sejam enumeradas as qualidades exigidas de um bom advogado – ao que se acrescenta litteratus vel non litteratus (quer seja letrado, quer não); isto significa que alguém podia ser um bom advogado e não saber ler nem escrever; podia conhecer o Direito Romano, a jurisprudência e o uso da linguagem e, apesar de tudo, ignorar o alfabeto. Tal noção é de difícil compreensão para um cidadão do século XX, mas torna-se de importância capital para se entender a Idade Média.

1.3.7. Trabalho e Lazer

A duração da jornada de trabalho variava segundo as estações. Era o sino da paróquia ou do mosteiro vizinho que chamava o artesão à oficina e o camponês aos campos. As pessoas deitavam-se e levantavam-se, em princípio, ao mesmo tempo que o sol: no inverno, o trabalho começava por volta das oito ou nove horas, para terminar às cinco ou seis; no verão, porém, a jornada tinha início às cinco ou seis da manhã para só terminar às sete ou oito da noite. Consideradas as duas pausas para refeições, a jornada durava oito ou nove horas no inverno, e doze, treze ou quinze no verão. Registravam-se, porém, numerosas interrupções no calendário de trabalho, isto é, cerca de noventa dias anuais de feriado completo e setenta ou mais dias de feriados parciais. O calendário litúrgico regulava o ano inteiro; era pelas suas datas, e não pelos dias do mês, que se designava o tempo: assim falava-se do “dia de Santo André”, e não de 30 de novembro; dizia-se “três dias após São Marcos”, de preferência a 28 de abril.

A organização dos lazeres era de base religiosa: todo dia de festa começava pelas cerimônias de culto; estas prolongavam-se em espetáculos, que apresentavam cenas da vida de Cristo ou dos Santos. Havia também o teatro inspirado por romances e crônicas. Depois do espetáculo, o divertimento mais apreciado era a dança: dança dos donzeis nos castelos, ronda em torno da árvore de maio ou ao redor da fogueira de São João… Havia os jogos do interior da casa, entre os quais era preferido o de xadrez, a respeito do qual se encontraram tratados manuscritos em bibliotecas medievais.

Eis as palavras com que a historiadora medievalista Régine Pernoud conclui seus estudos sobre os costumes dos cidadãos da Idade Média:

“Do conjunto sobressai uma confiança na vida, uma alegria de viver de que não encontramos equivalente em mais nenhuma civilização. Essa espécie de fatalidade que pesa sobre o mundo antigo, esse teor do Destino, deus implacável ao qual os próprios deuses estão submetidos, o mundo medieval ignorou-a totalmente” (Luz Sobre a Idade Média, p. 203).

1.3.8. Inquisição

Não é necessário ao católico justificar tudo que, em nome de Deus, foi feito. É preciso, porém, que se entendam as intenções e a mentalidade que moveram a autoridade eclesiástica a instituir a Inquisição. Estas intenções, dentro do quadro de pensamento da Idade Média, eram legítimas, diríamos até: deviam parecer aos medievais inspiradas por santo zelo. Podem-se reduzir a quatro os fatores que influíram decisivamente no surto e no andamento da Inquisição:

1) os medievais tinham profunda consciência do valor da alma e dos bens espirituais. Tão grande era o amor à fé (esteio da vida espiritual) que se considerava a deturpação da fé pela heresia como um dos maiores crimes que o homem pudesse cometer (note-se o texto de S. Tomás de Aquino abaixo citado)[2], essa fé era tão viva e espontânea que dificilmente se admitiria viesse alguém a negar com boas intenções um só dos artigos do Credo.

2) As categorias de justiça na Idade Média eram um tanto diferentes das nossas: havia muito mais espontaneidade (que às vezes equivalia a rudez) na defesa dos direitos. Pode-se dizer que os medievais, no caso, seguiam mais o rigor da lógica do que a ternura do sentimento; o raciocínio abstrato e rígido neles prevalecia por vezes sobre o senso psicológico (nos tempos atuais verifica-se quase o contrário: muito se apela para a psicologia e o sentimento, pouco se segue a lógica; os homens modernos não acreditam muito em princípios perenes; tendem a tudo julgar segundo critérios relativos e relativistas, critérios de moda e de preferência subjetiva).

3) A intervenção do poder secular exerceu profunda influência no desenvolvimento da Inquisição. As autoridades civis anteciparam-se na aplicação da força física e da pena de morte aos hereges; instigaram a autoridade eclesiástica para que agisse energicamente; provocaram certos abusos motivados pela cobiça de vantagens políticas ou materiais. De resto, o poder espiritual e o temporal na Idade Média estavam, ao menos em tese, tão unidos entre si que lhes parecia normal, recorressem um ao outro em tudo que dissesse respeito ao bem comum. A partir dos inícios do séc. XIV a Inquisição foi sendo mais explorada pelos monarcas, que dela se serviam para promover seus interesses particulares, subtraindo-a às diretivas do poder eclesiástico, até mesmo encaminhando-a contra este; é o que aparece claramente no processo dos Templários, movido por Filipe o Belo da França (1285-1314) à revelia do Papa Clemente V. Note-se também o processo de Joana d’Arc, condenada pela Inquisição, sob a instigação dos ingleses.

4) Não se negará a fraqueza humana de Inquisidores e de oficiais seus colaboradores[3]. Não seria lícito, porém, dizer que a suprema autoridade da Igreja tenha pactuado com esses atos de fraqueza; ao contrário, tem-se o testemunho de numerosos protestos enviados pelos Papas e Concílios a tais ou tais oficiais, contra tais leis e tais atitudes inquisitoriais. As declarações oficiais da Igreja concernentes à Inquisição se enquadram bem dentro das categorias da justiça medieval; a injustiça se verificou na execução concreta das leis, e não na legislação como tal.

Diz-se, de resto, que cada época da história apresenta ao observador um enigma próprio: na antigüidade remota, o que surpreende são os desumanos procedimentos de guerra. No Império Romano, é a mentalidade dos cidadãos, que não conheciam o mundo sem o seu Império (oikouméne – orbe habitado – Imperium), nem concebiam o Império sem a escravatura. Na época contemporânea, é o relativismo ou ceticismo público; é a utilização dos requintes da técnica para “lavar o crânio”, desfazer a personalidade, fomentar o ódio e a paixão. Não seria então possível que os medievais, com boa fé na consciência, tenham recorrido a medidas repressivas do mal que o homem moderno, com razão, julga demasiado violentas?

1.3.9. As Cruzadas

As Cruzadas tiveram por objetivo libertar o Santo Sepulcro de Cristo na Terra Santa, que estava sob o domínio dos muçulmanos.

1) Abstração feita de pessoas e episódios particulares, as Cruzadas têm sua inspiração fundamental na fé dos homens da Idade Média, no seu amor aos valores sagrados e no seu espírito cavaleiresco, corajoso e magnânimo.

A fé e o amor dos cristãos, na Idade Média, recorreram às armas para se exprimir concretamente… Hoje muitos cristãos hesitariam diante de tal expressão; seriam até propensos a condená-la. Atualmente os homens têm meios de confrontar suas divergências mediante reuniões, assembléias, concordatas; por isto rejeitam (ao menos em teoria…) as soluções violentas (na prática, porém, não faltam as guerras também em nossos dias, suscitadas pelos mais diversos motivos). Contudo na Idade Média as distâncias geográficas, culturais, filosóficas constituíam barreiras quase intransponíveis, que dificultavam aos homens a aproximação física e a superação de suas divergências; julgavam em muitos casos ter que recorrer às armas para preservar seus valores e garantir o bem comum. Assumir as armas em tais circunstâncias era tido como louvável; fugir delas mereceria censura.

Verdade é que o movimento das Cruzadas não conseguiu devolver aos cristãos, de maneira duradoura, a posse da cidade de Jerusalém e da Terra Santa em geral. Todavia ele se prolongou por dois séculos, à custa de ingentes sacrifícios, que revelam notável espírito de heroísmo. Sucessiva e tenazmente, as gerações de cristãos despertaram as suas energias para recomeçar a grande façanha que outros não haviam conseguido realizar plenamente. Assim deixaram eles à posteridade o testemunho de sua fé.

Não se poderiam silenciar outrossim os benefícios acarretados pelas Cruzadas no plano cultural e científico. O contato entre latinos, gregos (bizantinos) e árabes ocasionou incremento para a matemática, a medicina, a indústria, o comércio e outros ramos das atividades humanas; desenvolveu a navegação e modificou as condições econômicas da sociedade feudal. Em suma, preparou o grande surto das artes e das ciências ditas “exatas” nos séculos XV/XVI.

2) Também se apontam falhas morais no procedimento dos cruzados: rapina, abuso de mulheres e outros males, que já os pregadores e o Concílio de Lião I censuravam…

O historiador sincero há de reconhecer tais erros. Todavia não se deveria fazer dessas falhas a nota característica ou uma das notas características das Cruzadas. Elas ocorreram com os cruzados como geralmente ocorrem nas expedições militares. Todo soldado é sujeito a procurar suas “compensações” depois de haver sofrido os rigores da fome, da sede, do frio e de severa disciplina durante a respectiva campanha. Não poucos cruzados chagavam finalmente à costa da Palestina doentes, vitimas de febres, e facilmente aceitavam ser tratados em clima de moleza, bem-estar e gozo. – Nem por isto tais “compensações” são legítimas.

Em suma, pois: recolocadas no seu contexto medieval, as Cruzadas não são mancha negra, mas, ao contrário, atestam (naturalmente segundo as categorias e possibilidades da época) a unidade e a homogeneidade dos povos da Alta Idade Média, que encontraram na sua fé – valor que eles não discutiam – o estimulo e o dinamismo para realizar façanhas heróicas, ao mesmo tempo marcadas pela virilidade, pela poesia e pelas limitações humanas…

2. Prospectivas

A Idade Média caracterizou-se pela tendência a construir a Cidade de Deus, em que a autoridade civil e a religiosa colaborariam harmoniosamente para o bem comum. Isto implica uma mensagem para os dias atuais. Como?

Seria falso pleitear o retorno ao contexto do passado. Os tempos são outros. Mas em nossa época mesma a humanidade parece conceber o anseio de certa unidade, capaz de abarcar a multiplicidade das culturas. É o que se depreende da Declaração dos Direitos Humanos promulgada em 1948 pela Organização das Nações Unidas após os desastres da segunda guerra mundial; o subjetivismo e individualismo de governantes ditatoriais provocou genocídios, campos de concentração, lavagem de crânio… Verificou-se, em represália, que todos os homens são iguais entre si no tocante aos seus direitos básicos.

Eis, porém, que a Magna Carta dos Direitos Humanos está fadada a ser vã, se não se lhe confere uma justificativa religiosa. Afinal, para que os homens tomem consciência de que são irmãos entre si, requer-se tenham noção de que há um Pai no céu. Se não há Pai, é inútil falar de irmãos. Ora o Papa João Paulo II procurou concretizar esta verdade no famoso Encontro de Assis realizado aos 27/10/1986: congregaram-se os chefes das mais diversas correntes religiosas da Terra para rezar, pedindo ao Pai do céu a PAZ (Shalom), que é a súmula das aspirações mais espontâneas de todo ser humano. Por ocasião desse evento, o Santo Padre lembrava que todos os homens têm em comum três planos, que justificam a sua convergência entre si e na procura de Deus:

1) foram todos (brancos, pretos, amarelos, índios…) criados à imagem e semelhança de Deus;

2) foram todos indistintamente (até os ateus) remidos pelo sangue de Cristo; custam todos um preço valiosíssimo;

3) são todos chamados à mesma bem-aventurança final, ou seja, à visão de Deus face-a-face.

Vê-se assim que é desejo da Igreja contemporânea aproximar os homens entre si a partir de qualquer parte do globo e dentro das premissas das respectivas culturas, ajudando-os a se reconhecer membros da grande família dos filhos de Deus.

Quem compreende o valor deste programa, há de se colocar a serviço do mesmo com a graça do Pai celeste, atualizando a aspiração dos antepassados a construir uma Cidade mais semelhante à Cidade de Deus.

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NOTAS:

[1] Ver revista JESUS, setembro 1987, pp. 68-71: “Questo meraviglioso Crístianesimo in cui non riesco a credere“.

[2] “É muito mais grave corromper a fé, que é a vida da alma, do que falsificar a moeda, que é um meio de prover à vida temporal. Se, pois, os falsificadores de moedas e outros malfeitores são, a bom direito, condenados à morte pelos príncipes seculares, com muito mais razão os hereges, desde que sejam comprovados tais, podem não somente ser excomungados, mas também em toda justiça ser condenados à morte” (Suma Teológica II/II, 11, 3c). A argumentação do S. Doutor procede do princípio (sem dúvida, autêntico em si) de que a vida da alma mais vale do que a do corpo; se, pois, alguém pela heresia ameaça a vida espiritual do próximo, comete maior mal do que quem assalta a vida corporal; o bem comum então exige a remoção do grave perigo (veja-se também S. Teol II/II, 11, 4c).

[3] As táticas utilizadas pelos Inquisidores são-nos hoje conhecidas, pois ainda se conservaram Manuais de instruções práticas entregues ao uso dos referidos oficiais. Quem lê tais textos, verifica que as autoridades visavam a fazer dos juízes inquisitoriais autênticos representantes da justiça e da causa do bem. Bernardo de Gui (séc. XIV), por exemplo, tido como um dos mais severos Inquisidores, dava as seguintes normas aos seus colegas: “O Inquisidor deve ser diligente e fervoroso no seu zelo pela verdade religiosa, pela salvação das almas e pela extirpação das heresias. Em meio às dificuldades permanecerá calmo, nunca cederá à cólera nem à indignação… Nos casos duvidosos, seja circunspecto, não dê fácil crédito ao que parece provável e muitas vezes não é verdade; também não rejeite obstinadamente a opinião contrária, pois o que parece improvável freqüentemente acaba por ser comprovado como verdade… O amor da verdade e a piedade, que devem residir no coração de um juiz, brilhem nos seus olhos, a fim de que suas decisões jamais possam parecer ditadas pela cupidez e a crueldade” (Prática VI, ed. Douis, p. 232s). Já que mais de uma vez se encontram instruções tais nos arquivos da Inquisição, não se poderia crer que o apregoado ideal do Juiz Inquisidor; ao mesmo tempo eqüitativo e bom, se realizou com mais freqüência do que comumente se pensa?