Igreja, críticas: a igreja e a escravatura

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 356/1992)

Em síntese: Diante da alegação de que a Ordem Beneditina possuía um criatório de escravos no Rio de Janeiro (Ilha do Governador) no século passado, vai publicado um estudo de D. Mateus Rocha O.S.B., que, na base de sólida e minuciosa documentação, dissipa o mal-entendido.

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Tendo em vista a alegação de que a Ordem de São Bento tinha um criatório de escravos no Rio de Janeiro (Ilha do Governador) no século passado, a nossa revista publica um estudo de D.Mateus Rocha O.S.B., a quem a Redação de PR agradece a valiosa colaboração. O artigo há de ser lido em continuação do anterior (neste fascículo), em que tentamos expor a mentalidade da sociedade dos séculos XV-XIX, a influência do padroado, as justificativas e os protestos que o comércio de escravos suscitava entre os pensadores da época.

1. Criatório de escravos?

Em nossos dias, uma das críticas lançadas contra a Igreja Católica em nosso país, no tocante à questão escravista, é a de que até mesmo algumas de suas Ordens Religiosas, por exemplo, “não só tinham escravos como também se dedicaram à reprodução de escravos. [1] As Ordens Religiosas em questão são a dos Beneditinos e a dos Carmelitas, ambas no Rio de Janeiro. Tais autores têm-se baseado sobretudo em Jacob Gorender – este, aliás, muito ponderado em suas afirmações, às quais dá caráter hipotético – e ainda em Manoela Carneiro da Cunha, que deixa de lado o tom cauteloso de Gorender e parte para uma afirmação categórica. Segundo estes dois autores, a Ordem de São Bento teria tido um criatório de escravos na Ilha do Governador, e a de Nossa Senhora do Carmo outro na sua fazenda de Macacu.[3]

J. Gorender e M. Carneiro da Cunha se fundamentam, por sua vez, em Thomas Ewbank, um visitante inglês do século passado, residente nos Estados Unidos, que esteve por alguns meses no Rio de Janeiro em 1846, e publicou em 1856 um relato de sua viagem e observações em terras cariocas. [4]

De inicio convém observar que as informações de ordem econômica e mesmo outras de Ewbank relativas ao Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro não merecem crédito, pois não correspondem aos fatos históricos. Escreve ele, em sua obra, a seguinte passagem (que traduzimos do original, p. 129): “Na Ilha do Governador, a maior da baía do Rio, possuem [os frades beneditinos] grande estabelecimento rural dirigido regularmente por numerosos frades. Numerosa geração[5] de meninos e meninas de cor é ali criada até à idade suficiente de serem enviados ao trabalho nas propriedades do interior”.

Não era um grande estabelecimento o que os beneditinos mantinham na Ilha do Governador, mas uma modesta fazenda de gado, com algumas roças e uma horta. Nem era dirigido por numerosos frades, mas apenas por um deles, que ali residiu sozinho por vários anos, o Abade Titular de Santa Maria de Évora, Frei Luís de Santa Teodora França.[6]

Na mesma propriedade funcionava também uma lavanderia em que se cuidava da roupa dos monges beneditinos residentes na cidade.[7]

A turma de escravos compunha-se de 17 homens, 12 mulheres, das quais uma já velha, 17 meninos e 6 meninas. Os homens cuidavam dos trabalhos do campo, e as mulheres se ocupavam da lavanderia e demais trabalhos da casa.[8]

Este número de apenas 11 mulheres, supostamente novas e fecundas, não pode configurar um criatório de escravos capaz de gerar escravos para abastecer mais oito fazendas e o Mosteiro, que, com os da Ilha do Governador, somavam então um total de 1.157 escravos, assim distribuídos: Mosteiro: 108; Camorim: 66; Vargem Pequena: 88; Vargem Grande: 38; Condê (Iguaçu): 37; Outeiro (Iguaçu): 22; Olaria (Iguaçu): 47; Maricá: 51; Campos dos Goitacases: 655, além dos já referidos da Ilha.[9]

Por este lado cai, portanto, a fantasia de um criatório de escravos do Mosteiro.

Também a política de concessão de alforrias largamente praticada pelo Mosteiro desmente os que afirmam que os beneditinos “incentivavam a procriação” e “mantinham criatório deliberado de escravos” (Gorender). Basta apenas referir que em uma única sessão de seu Conselho, no dia 31 de dezembro de 1858, o Mosteiro aprovou requerimento de 98 alforrias, das quais 7 foram concedidas gratuitamente. Das demais, 22 foram do sexo feminino, com idades que iam de 1 ano a 35 anos. E dentre estas, 7 tinham de 15 anos para cima.[10] A pensar em criatório de escravos, de uma só vez o Mosteiro teria perdido 7 matrizes (mais da metade em relação às da Ilha do Governador) e mais 15 futuras.

A documentação manuscrita existente no arquivo do nosso Mosteiro não nos permite afirmar que os beneditinos do Rio de Janeiro “tinham a preocupação sistemática com a reprodução vegetativa da escravaria” [11] ou “se dedicaram à reprodução de escravos” [12]. Se eles incentivavam os matrimônios legítimos, era em obediência às leis da Igreja e às determinações superiores dos Capítulos Gerais, que eram de obrigação para todos os Mosteiros do Brasil. Não se tratava de “uma preocupação sistemática” de nosso Mosteiro. Essas normas gerais tinham por finalidades santificar sacramentalmente as uniões e as famílias e promover a “moralidade cristã e a boa ordem nas fazendas”, como se lê nas Atas dos Capítulos Gerais da Congregação Beneditina do Brasil.[13]

Além do mais, convém lembrar o bom tratamento que os Mosteiros beneditinos do Brasil dispensavam a seus escravos, como no-lo testemunha Koster[14] – e o que este autor diz a respeito dos beneditinos de Pernambuco, se aplica a todos os beneditinos do Brasil, pois o tratamento referido era fruto da orientação do órgão máximo da Congregação. Desse bom tratamento encontramos registros em nossa documentação manuscrita: os escravos, na doença, eram cuidados com o mesmo empenho de que eram objeto os monges: junta médica para os casos mais graves, cuidado especial aos doentes na chamada Enfermaria centralizada na Cidade, para onde eram trazidos os escravos doentes das fazendas próximas do Rio, quando precisavam de tratamento médico. Ali não faltavam os remédios prescritos,[15] nem uma boa e variada dieta, em que estavam presentes (provavelmente em decorrência de prescrição médica) os seguintes itens: carne de galinha (na época reservada só aos doentes: monges ou escravos), de vaca (verde e seca), de porco, de carneiro, toucinho, lombo de porco, mocotó, arroz, feijão, peixe, pão, manteiga, araruta, açúcar grosso e refinado, ervas, vinagre, temperos, leite, roscas, biscoito, pão-de-ló, chocolate, chá mate, cará, couve, abóbora, “vinho generoso” do Porto etc. Por certo não faltará algum historiador ou antropólogo moderno que veja neste tratamento um interesse econômico: a conservação e o aumento (reprodução} do plantel de escravos. E no tratamento consagrado aos monges?

2. Os beneditinos e a emancipação dos escravos

Nestes tempos em que se tem fiscalizado o papel da Igreja em relação ao escravismo, conviria lembrar a atuação pioneira da Ordem beneditina no Brasil no movimento de libertação dos escravos, apontando as datas básicas:

1. Em 1780, a Junta Capitular da então Província do Brasil, celebrada em Portugal, declara “forras aquelas escravas que tiverem tido seis filhos atualmente vivos e de legitimo matrimônio.”[16] Infelizmente, no ano seguinte o Abade Geral da Congregação Beneditina de Portugal (da qual fazia parte o Brasil) anula essa decisão, sob o pretexto de que ela acarretaria “gravíssimos prejuízos… assim aos Mosteiros, como às mesmas escravas”, porque as escravas alforriadas e os filhos nascidos depois da dita alforria ficariam sem o amparo dos respectivos Mosteiros e estes privados de preciosa mão de obra cativa.[17]

2. Em 1822, a pedido do Imperador Pedro I, concedeu o Mosteiro do Rio cartas de alforria gratuita a dez de seus escravos “para sentarem praça e… defenderem a Nação”[18]

3. Em 1863, afinal, o Capítulo Geral da agora Congregação Beneditina do Brasil decreta que todas as escravas que tivessem tido ou viessem a ter seis filhos, mesmo que alguns já houvessem falecido, e estivessem legitimamente casadas na ocasião, teriam direito à alforria plena e gratuita.[19]

4. Em 1866, o Capítulo Geral declara que, a partir de 3 de maio daquele ano, os filhos das escravas dos Mosteiros nasceriam livres, e os respectivos Mosteiros ficariam obrigados a sustentá-los, a proporcionar-lhes instrução primária, a ensinar-lhes uma “arte mecânica” e a dar-lhes futuramente preferência nos arrendamentos de suas terras.[20]

5. Em 1867, o Mosteiro do Rio de Janeiro, por solicitação do Governo Imperial, concedeu alforria inteiramente gratuita a quinze dos 29 escravos “que se ofereceram para Voluntários do Exercito”, para a guerra do Paraguai, sendo os demais “julgados incapazes” (não pelo Mosteiro, mas pelo serviço competente do Exército).[21]

6. Em 12.7.1869, resolve o mesmo Mosteiro conceder carta de liberdade gratuita a seus escravos que tivessem ou viessem posteriormente a alcançar a idade de 50 anos. Foi uma espécie de Lei dos Quinquagená­rios.[22]

7. Por fim, em 29 de setembro de 1871, todos os Mosteiros benediti­nos do Brasil decidem, pela voz de seus Abades, que, a partir daquela data, todos os seus escravos,[23] num total de 4.000,[24] entrando o Mosteiro do Rio com quase a metade, estavam livres e receberiam carta de alforria plena­mente gratuita, o que foi feito já no mesmo ano, de modo que em 1872 já não havia um só escravo nos Mosteiros e em suas propriedades.

Autores há, como Richard Conrad,[25] que acreditam haver o exemplo dos beneditinos influenciado também o movimento abolicionista em sua segunda fase.

Seria muito de desejar que aqueles que se comprazem em criticar e por vezes mesmo em denegrir a Igreja por sua posição em relação ao escravismo e seu alheamento à causa da Abolição, tomassem conhecimento do papel de muitos bispos nesta campanha, com suas cartas pastorais e seus ensinamentos, mas particularmente do que tez a Ordem Beneditina do Brasil, silenciosamente, mas de forma muito concreta e direta, na libertação dos escravos.

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NOTAS:

[l] Dom Mateus Rocha OSB é monge sacerdote do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, formado em Teologia, antigo professor de Português, Latim e Grego, tradutor, pesquisador de História, Bibliotecário, Necrologista e Arquivista do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro e Arquivista-mor da Congregação Beneditina do Brasil.

[2] BOJUNGA, Claudio. ‘O maio de ontem”, em Jornal do Brasil: Caderno 8 Especial de 8 de maio de 1988, p. 4.

[3] GORENDER, Jacob, O Escravismo Colonial, 7; edição, São Paulo, Editora Ática, p 349-350; CUNHA, Manuola Carneiro da, Neyrus, Estrangeiros. Os Escravos Libertos ~ Volta à África, São Paulo, Brasiliense, 1985, p.16; Antropologia do Brasil, São Paulo, EDUSP/Brasiliense, p. 129-130. – Utilizamos a 1ª edição de GORENDER, por não nos ter sido possível consultar a 5ª., saída logo depois. A passagem indicada permanece inalterada ao longo de todas as edições, que reproduzem o texto da primeira. Na 4ª, apenas a expressão “dos seus planteis” foi substituída por “da escarvaria” (p. 319)).

[4] EWBANK, Thomas, Life in Brazil: or a Journal of a Visit to the land of the Cacoa and Palm, Nova Iorque, 1856).

[5] Numerous brood – no singular! A tradução publicada pela Editora da Universidade de São Paulo/Livraria Italiana Editora se revela tendenciosa em algumas passagens.

[6] Cf. Livros de Gastos ou do Mordomia do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro: l 842-1854 (Códices 60-67 do AMR – Arquivo do Mosteiro do Rio), passim.

[7] Cf. Códices 28 30-32, 64-ó8 e /48 do AMR, passim.

[8] Cf .Livro dos Provimentos do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro: l819 a 1865 (Códice /48 do AMR), O. 174v. Em 1848, o “plantel” de escravos da Ilha do Governador tinha variado para 9 homens, 12 mulheres, 6 meninos e 6 meninas (CF. Ibiden, fls. 181v-182). O chamado Livro de Deposito do triênio de 1818-1851 (Códice 31 do AMR), Il. 58v, traz o seguinte registro: “Desta Fazenda tirou-se a maior parte dos escravos, por ali não darem proveito algum: vieram uns poucos para o Mosteiro e outros foram para outras fazendas, assim que se mudaram as lavadeiras para a Fazenda de Iguaçu, afim de evitar a grande demora que havia na lavagem da roupa.” Esta transferência se deu em começo de 1850, de forma que em l8 de maio desse ano, do “grande criatório de escravos” hoje tão propalado, restavam apenas 2 homens, 5 mulheres e uma criança de sexo não especificado, a serviço do único monge ai residente, o já referido Frei Luis de Senta Teodora (Cf. Livro da Mordomia de 1848-1851 [Códice 68 do AMR], fl. 293v et passim). Em 1829, antes da instalação da lavanderia na Ilha, havia naquela fazenda apenas I8 escravos: 4 homens, 3 mulheres, 6 meninos e 3 meninas (Cf. Livro dos Provimentos do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro: 1819-18[55 [Códice 148 do AMR], fl. 142v.143). Era muito pouco para um criatório!

[9] Cf. Códice 148 do AMR, fls. 169v e Livro dos Recibos e Despesas da Fazenda de São Bento de Campas: 1846-1874 (Códice 608 do AMR), fls. 2-7v.

[10] f. Ata da Sessão do Conselho do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro de 31.12.1858 (Códice 1149 do AMR, fls. 13-ISv).

[11] GORENDF.R, op. cie., p, 349.

[12] Veja-se acima, nota l0.

[13] Ct: Códice 1143 do AMR, fls. lSav, e Códice 92 do Arquivo do Mosteiro da Bahia (Livro das Visitações: 1830-1837), tis. 3v, e 12v.

[14] Cf. KOSTER, Henry, Viagens ao Nordeste do Brasil, São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1942, p.511-514

[15] Cf Livros de Gastos ou da Mordomia do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro de 1777 a 1871 (Códices 55-77 do AMR, passim na rubrica Enfermaria).

[16] Cf. Ata da Junta Geral da Província Beneditina do Brasil de 7.1.1780. em Códice 19 da Arquivo do Mosteiro Beneditino de São Paulo, fl. S9v.

[17] Cf. Carta do Abade Geral da Congregação Beneditina de Portugal, de 3.8.1781, ao Provincial beneditino do Brasil (Doc 1599-1 do AMR).

[18] Cf. Livro do Conselho do Mosteiro de São Bento do Rio de janeiro: 1760-1835(Códice1148 do AMR), fl. 73.

[19] Cf. Ata do Capítulo Geral da Congregação Beneditina do Brasil de 5.5.1863 (Códice 1143 do AMR, fl.212v)

[20] Cf. Ata do Capítulo Geral da Congregação Beneditinos do Brasil de 5.5.1866 (Códice I l43 do AMR, fl. 234s.)

[21] Cf. Ata da Sessão do Conselho do Mosteiro Beneditino do Rio de 20.3.1867 (Códice 1149 do AMR, fl. S 1v-32) e lista dos “homens oferecidos pelo Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro para servir no Exército Nacional “, enviada pelo Abade Fr. José da Purificação Franco aos Mosteiros de Olinda e Paraíba, em Códice 160 do Arquivo do Mosteiro de Olinda, documento avulso, s/d. e s/n.

[22] Cf. Ata da Sessão do Conselho do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro de 23.8.1869 (Códice 1149 do AMR, fl. 62).

[23] Cf. Ofício de 8 de outubro de 1871 dirigido pelo Abade do Mosteiro do Rio de Janeiro ao Ministro dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas: Doc 1379-3 do AMR (Veja-se também em LUNA, Dom Joaquim Grangeiro de. Os Monges Beneditinos no Brasil, Rio de )arteiro, Edições “Luram Christi”, 1947, p.93-94).

[24] Cf. LUNA, Dom Joaquim Grangeiro de, Op. cie., p. 93, nota.

[25] Cf. Os últimos anos da escravatura no Brasil, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1973, p. 140.