Igreja, críticas: e a censura de livros na Igreja?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 193/1975)

Em síntese : A Igreja sempre se sentiu responsável pela conservação e transmissão da doutrina da fé e da Moral reveladas por Cristo. Desde antigas épocas denunciava e condenava escritos heréticos. Na Idade Média as Universidades assumiram a si o papel de preservar a reta doutrina. Com a invenção da imprensa (1450) essa tarefa tornou-se mais sistemática. Em 1487, o Papa Inocêncio VIII deu as primeiras normas, válidas para a Igreja Universal, relativas ao exame de livros a ser publicados. Os Papas subseqüentes as confirmaram e completaram. O Código de Direito Canô­nico em 1917 deu-lhes a forma mais explícita.

O Concílio do Vaticano II (1962-1965) criou um clima de revisão de tais determinações. Em conseqüência, após prolongados estudos, em março de 1975 foram publicadas as atuais normas para exame prévio de livros. Estão estritamente sujeitas à censura prévia as edições da S. Escritura e suas introduções ou notas, os livros litúrgicos e os de oração particular, os catecismos e outros livros didáticos em uso na catequese de qualquer nível. Além disto, a S. Igreja recomenda que todos os escritos atinentes à fé e à Moral sejam submetidos a prévio exame, embora não o exija juri­dicamente. Isto significa que um leitor católico poderá ter em mãos um livro de doutrina teológica que não corresponda exatamente à mensagem da fé; isto o obrigará a procurar ter uma fé adulta e capaz de discernir entre as proposições do Credo e as hipóteses dos estudiosos.

Quanto ao índice de livros proibidos, já não tem força jurídica desde 1966. Todavia cada fiel católico continua obrigado em consciência a não expor a sua fé ao enfraquecimento e à deterioração mediante leituras deletérias. Cada um avalie diante de Deus se tem ou não motivos para ler qualquer obra concernente à fé e à Moral (ou depravação moral).

***

Comentário: A palavra «censura», na linguagem de hoje significa por vezes repreensão. Não é neste sentido que ela ocorre no presente artigo, mas, sim, em sua significação ori­ginária de «exame, análise, julgamento»; Plínio o Romano falava de «facere censuram» dos vinhos (9.72.2); Plínio (14.8.10) e Horácio (2Ep. 2.109) falavam de «censura» (exame) dos escritos de alguém.

Desde remotas épocas, houve, por parte dos pastores da Igreja, vivo interesse em que não se disseminassem escritos portadores de erros contra a reta fé e os bons costumes; compete, sim, à autoridade velar pela íntegra conservação do depósito entregue por Cristo à Igreja e aos homens. Essa vigilância sobre os escritos exerceu-se de diversos modos de acordo com os diversos períodos da história da Igreja. A última modalidade foi promulgada em março de 1975, modifi­cando notavelmente as normas vigentes até 1966.

A seguir, percorreremos as grandes etapas da história da censura de livros e finalmente nos deteremos sobre o documento da Santa Sé datado de 19/III/1975.

1. Antes de Gutenberg (1450)

O primeiro modelo de Índice de livros proibidos que se conheça, é o chamado «Decreto Gelasiano», atribuído ao Papa Gelásio I e datado aproximadamente do ano 495. Enu­mera Escrituras apócrifas e livros de herejes como obras que não devem ser lidas por fiéis cristãos. Cf. Denzinger­-Schõnmetzer, «Enquirídio dos Símbolos e Definições» nn. 354s (165s).

No século VI, deu-se a condenação de proposições tiradas dos escritos de Orígenes de Alexandria (+ 250 aproximada­mente) por iniciativa de Justiniano I, o «imperador teólogo» de Bizancio. Essa condenação parece ter sido confirmada pelo Papa Vigílio, quando esteve em Constantinopla (547-555). Cf. Denzinger-Schõnmetzer, ESD n. 403-411 (203-211).

Os erros de Pelágio foram condenados pelo Concilio de Cartago XV (ou XVI) em 416. Cf. ESD n. 222-230.

São Leão Magno (+ 461), Papa, rejeitou os escritos ma­niqueus e priscilianistas que estavam em curso na sua época, disseminando a crença no destino e no fatalismo, assim como professando a existência de um principio por si mesmo mau. Cf. ESD n. 283-286.

Os escritos dos nestorianos foram condenados pelo Con­cílio de Efeso em 431 e os dos monofisitas pelo de Calcedonia em 451.

No decorrer da Idade Média registrou-se a condenação de obras de herejes por parte de Concílios ecumênicos ou regionais. Todavia a vigilância da Igreja sobre escritos dou­trinários teve que se exercer mais assiduamente através das grandes Universidades da época. Nestas, os textos distribuí­dos aos estudantes sob forma de apostilas se multiplicavam, exigindo atenção especial da parte dos pastores. Assim em 1336 os delegados do Papa Urbano V, na Universidade de Paris determinaram que «nenhum professor ou bacharel no exercício do magistério direta ou indiretamente entregasse o seu texto aos copistas antes que esse texto fosse examinado pelo chanceler e pelos professores da Faculdade de Teologia».

A Faculdade de Teologia de Colônia em 1398 incluiu nos seus Estatutos quase as mesmas palavras : «Os professores não entregarão o texto de suas aulas aos copistas antes que tenha sido examinado e aprovado pela Faculdade de Teologia».

O Concilio de Oxford-Londres (1408-1409) dispunha:

“Os opúsculos ou textos que João Wiclef tenha escrito no passado ou recentemente ou que ele venha a escrever no futuro, doravante não sejam lidos nas escolas se antes não tenham sido examinados;… se não tenham sido aprovados expressamente por nós e por nossos suces­sores;… se em nome e por autoridade da Universidade não tenham sido entregues aos copistas. Estes, depois de exato confronto, os cederão aos compradores por justo preço, ficando os originais guardados para sempre em arquivo especial da mesma Universidade.”

Com a invenção da imprensa, o exame dos escritos a serem dados ao público deixaria de ser prática esporádica e local para tornar-se uma instituição estável e extensiva a toda a Igreja.

Vejamos, pois, o que se deu

2. De Gutenberg ao Código de Direito Canônico (1917)

1. João Gensfieisch, dito Gutenberg (1400-1468), inven­tou a imprensa, de modo a dar novas possibilidades de divul­gação a qualquer tipo de escritos. De passagem note-se que no verão de 1456 Gutenberg imprimiu 180 exemplares da Bíblia.

O primeiro documento eclesiástico que se refira à inven­ção do sábio, é o Breve do Papa Sixto IV «Accepimus litteras» de 1479; neste Breve o Pontífice não faz explícita menção de censura prévia, mas louva o zelo com o qual o Reitor e os decanos da Universidade de Colônia «tinham proibido a lei­tura, a impressão e a venda dos livros contaminados de heresia», e, «a fim de que pudessem levar a bom termo o que tinham iniciado de bem», concedia-lhes «licença e per­missão para reprimir com censuras eclesiásticas e outros re­médios adequados os homens que decidissem imprimir tais livros».

Não se sabe como a Universidade de Colônia utilizou a licença de Sixto IV. Sabe-se, porém, que pouco depois (1486) o arcebispo de Mogúncia Bertoldo de Henneberg instituiu a primeira comissão diocesana encarregada de «examinar os livros destinados à imprensa». No ano seguinte (17/X1/1487), o Papa Inocêncio VIII, pelo decreto «Inter multiplices», es­tendeu à Igreja o que vigorava na diocese de Mogúncia:

– exame prévio obrigatório de todos os escritos a ser entregues ao prelo;

– concessão de licença para impressão («Imprimatur» ) apenas aos escritos não contrários à sã doutrina e aos bons costumes;

– sanções espirituais e financeiras a quem imprimisse algo em contravenção a tais disposições;

– destruição (geralmente pelo fogo) dos escritos con­trários à fé e aos bons costumes.

O Papa Alexandre VI em 1501 confirmou estas normas por uma Constituição homônima. Leão X em 1515 fez o mesmo pela Constituição «Inter sollicitudines». Em 1753 re­gistrou-se a Constituição «Sollicita ac Provida» de Bento XIV e em 1897 a «Officiorum ac munerum» de Leão XIII, as quais confirmavam a legislação anteriormente estabelecida no tocante à publicação de livros. Compreende-se, porém, que com o passar do tempo já não se podiam aplicar sanções financeiras aos contraventores das normas eclesiásticas nem se podia pensar em destruir pelo fogo as obras proibidas. Ape­nas é de notar que nas bibliotecas de Escolas, Universidades e mosteiros destinadas a estudos de erudição existiam, sem dúvida, as obras proibidas, as quais eram guardadas em lugar próprio chamado «Inferno»; ai os estudiosos as podiam con­sultar.

Finalmente o Código de Direito Canônico em 1917 con­substanciou e reafirmou as normas até então vigentes, as quais foram aplicadas até o Concílio do Vaticano II.

2. Quanto à origem do Índice de livros proibidos, note-se o seguinte:

No século XV as Universidades começaram a redigir catálogos de livros nocivos à fé e aos bons costumes, para orientação dos estudiosos. Essa iniciativa foi assumida pelo Imperador Carlos V, que em 1529 publicou o primeiro Índice oficial de livros proibidos para os habitantes dos Países-Bai­xos. Tal Índice serviu de modelo para outros semelhantes publicados em Veneza e Paris nos anos de 1543 e 1546 res­pectivamente. Considerando essas iniciativas, o Papa Paulo IV procedeu à compilação do primeiro Índice eclesiástico válido para a Igreja universal e promulgado em 1557. Os padres sinodais do Concílio de Trento (1545-1568) insistiram na necessidade de uma revisão desse primeiro Índice – revisão que o próprio Paulo IV empreendeu, levando-a a termo em 1564. A seguinte revisão ocorreu em 1900, por iniciativa de Leão XIII. Nos anos subseqüentes, o Índice foi reeditado; em 1946 o Papa Pio XII mandou acrescentar-lhe um Apêndice, que continha os livros condenados entre 1940 e 1945.

Ao promulgar o Índice em 1557, Paulo IV confiou a vigi­lância sobre os livros à Congregação Romana do Santo Ofício. O Papa São Pio V (1566-1572), porém, instituiu a Congrega­ção do Índice para atender a essa tarefa. Tal Congregação foi extinta pelo Papa Bento XV aos 25/1[1/1917, voltando as incumbências., relativas à censura de livros para a Congregação de S. Ofício.

Vejamos sumariamente o conteúdo dos principais cânones promulgados em 1917.

3. O Código de Direito Canônico (1917)

1. Os cânones 1385-1394 referem-se à censura de livros anterior à publicação dos mesmos. Incluem nesta categoria

– as, edições da S. Escritura; os comentários e as notas relativas a esta;

– as obras concernentes à S. Escritura, à teologia da fé, à história da Igreja, ao Direito Canônico, à teologia natu­ral, à ética e a outras semelhantes disciplinas morais e reli­giosas;

– os livros de preces e de formação religiosa, moral, ascética, mística;

– de modo geral, os escritos portadores de algo que interesse à religião e aos bons costumes;

– as imagens sagradas impressas, com ou sem orações anexas.

2. Os cânones 1395-1399 tratam da proibição de livros. São declarados proibidos, entre outros, pelo próprio Direito Canônico:

– as edições da S. Escritura feitas por acatólicos tanto nas línguas originais bíblicas como em traduções. Todavia o cânon 1400 permite aos estudiosos de teologia e S. Escritura utilizar tais edições, contanto que nelas nada haja que se oponha às verdades da fé católica;

– os livros que propaguem novas visões, revelações, pro­fecias, fatos portentosos, sem ter sido previamente aprovados pela autoridade da Igreja;

– os livros que difundam qualquer tipo de superstição, magia, evocação dos mortos;

– os livros que propugnem o duelo, o suicídio, o divórcio ou a maçonaria.

Os cânones 1400-1405 prevêem a concessão de licença para a leitura de tais livros, licença a ser concedida ou pelo bispo diocesano ou pela Santa Sé a pessoas que a peçam legi­timamente. Tais pessoas, usando livros proibidos pelo Direito Canônico, são obrigadas a evitar que tais escritos passem a mãos alheias.

3. O cânon 2318 § 1 estabelece a excomunhão reser­vada «de modo especial» à Santa Sé para os editores de livros de apóstatas, herejes e cismáticos que defendam a apostasia, a heresia ou o cisma. A mesma pena é instituída para todos aqueles que defendam, leiam cientemente e retenham esses livros ou outros proibidos nominalmente por decreto da Santa Sé.

Essa disciplina, minuciosamente severa, passou por re­visão em conseqüência do Concílio do Vaticano II, como se verá abaixo.

4. A nova disciplina

1. Durante o Concílio do Vaticano II (1962-1965), os padres sinodais insistiram na necessidade de se reestruturar a Congregação do S. Ofício. Tal solicitação foi sendo atendida por etapas.

Já aos 7 de dezembro de 1965 Paulo VI publicou a Carta Apostólica «Integrae Servandae», em que mudava o nome do Santo Ofício para o de «Congregação para a Doutrina da Fé»; estabelecia outrossim que nenhum livro fosse condenado sem que tivesse sido ouvido o seu autor e sem que se tivesse dado a este a oportunidade de se defender.

Aos 16 de janeiro de 1966, a S. Congregação para a Doutrina da Fé publicou uma comunicação referente ao índice de Livros Proibidos, onde se lê o seguinte:

“Esta S. Congregação para a Doutrina da Fé informa que o índice conserva sua obrigatoriedade moral, enquanto ensina aos fiéis cristãos que, de acordo com as exigências do direito natural, devem precaver-se contra os escritos que possam constituir um perigo para a fé e os bons costumes. Todavia o índice em si mesmo com as penas anexas não tem mais força de lei eclesiástica”.

Este texto quer dizer que não há mais livros proibidos pelo Direito da Igreja, nem, por conseguinte, excomunhão para as pessoas que depois de junho de 1966 tenham lido os livros outrora proibidos. Todavia o cristão há de consultar a sua consciência moral; esta lhe diz que não deve ler, sem motivo muito sério, livros que constituam perigo para a sua fé e os seus bons costumes. Ainda que abolida a força legal do índice, fica de pé o imperativo moral, que é anterior à prescrição jurídica.

A declaração de Roma referente ao índice foi, por muitas pessoas, entendida como abolição (de fato, se não de direito) das normas de censura e aprovação vigentes para a publicação de livros teológicos na Igreja. Com efeito, após junho 1966, foram editadas sem aprovação ou imprimatur muitas obras que deveriam ter sido previamente censuradas e aprovadas, conforme o cânon 1385. Diversos bispos manifestaram as difi­culdades que experimentavam para aplicar a lei do Imprimatur, embora se sentissem conscientes do dever que lhes incumbia, de vigiar sobre a doutrina da fé e da Moral católicas. O Car­deal F. Marty, arcebispo de Paris, em fevereiro 1974, teve ocasião de se manifestar publicamente contra o livro «Les fils dépossédés» do Pe. Bernard Feillet; escrevia então ao Pe. Feillet, da capela de S. Bernard de Maine-Montparnasse (Paris):

“Se, como expressamente pedi a todos, V. S. tivesse submetido seu texto ao Imprimatur, não teríamos chegado a este ponto. O Imprimatur é, antes do mais, um serviço fraterno e um aviso para os leitores. É mani­festa a sua utilidade para o bem da comunidade Inteira” (“La Documen­tation Catholique” 16/II/75, n° 1670, p. 194s).

Entrementes em Roma desde 1969 o problema foi sendo estudado pela Congregação para a Doutrina da Fé; esta, enquanto reconsiderava a questão, não deixava de reafirmar a validade das normas do Código de Direito Canônico relativas à prévia censura de livros.

Finalmente, após numerosas consultas feitas à Comissão de revisão do Código e a bispos de metrópoles onde o movi­mento editorial é mais intenso, a S. Congregação para a

Doutrina da Fé submeteu ao S. Padre Paulo VI uma nova legislação sobre o assunto, legislação que foi aprovada pelo Pontífice aos 7/III/1975 e assinada pelo Cardeal Seper, Pre­feito daquela Congregação, aos 19 de março de 1975. O texto, sob forma de Decreto, foi publicado, em primeira mão, pelo jornal «L’Osservatore Romano» aos 10 de abril de 1975, tendo por título «A respeito da vigilância dos Pastores da Igreja sobre os livros».

2. Percorramos os principais traços dessa nova dispo­sição legislativa:

Preâmbulo

O Decreto se abre com uma justificativa de si mesmo.

“Para conservar e defender a integridade das verdades da fé e dos costumes, compete aos Pastores da Igreja o dever e o direito de vigiar para que a fé e os costumes dos fiéis não sejam prejudicados por escritos e, por isso também, de exigir que a publicação de escritos relativos à fé e aos costumes seja submetida à sua aprovação prévia. Compete-lhes também reprovar livros e escritos que ataquem a reta fé ou os bons costumes”.

Aliás, a conservação das verdades da fé e da integridade dos costumes sempre foi o princípio inspirador de todas as Constituições papais relativas ao Imprimatur. Tal solicitude se compreende bem desde que se leve em conta o fato de que a missão de interpretar autenticamente a Palavra de Deus toca tão somente aos bispos, como lembra a Constituição «Dei Verbum», n° 10, do Concílio do Vaticano II

“O oficio de interpretar autenticamente a Palavra de Deus escrita ou transmitida (oralmente) foi confiado unicamente ao magistério vivo da Igreja, cuja autoridade se exerce em nome de Jesus Cristo. Tal magistério evidentemente não está acima da palavra de Deus, mas a seu serviço; não ensina senão o que foi transmitido; por mandato divino e com a assis­tência do Espírito Santo, piamente ausculta aquela palavra, santamente a guarda e fielmente a expõe”.

Artigos 2, 3 e 4: que livros ? [1]

Os artigos 2, 3 e 4 do Decreto dizem respeito ao tipo de livros que hão de passar pela censura da Igreja antes de serem publicados.

Como dito atrás, o Código de Direito Canônico (cân. 1385 § 1) abrangia grande número de publicações sob a exigência da censura. Aliás, essa disposição do Direito Canônico já significava um notável abrandamento das leis que durante cerca de trezentos e cinqüenta anos vigoraram na Igreja. Sim; até 1848 todos os escritos publicados por fiéis católicos deviam ser submetidos a censura prévia; foi em 1848 que o Papa Pio IX resolveu restringir a censura aos livros que direta ou indiretamente tocassem a fé e a Moral, pois o número de publicações naquela época já era tão volumoso que os censores não davam conta da tarefa. O Código de Direito Canônico em 1917 ficou dentro do âmbito traçado por Pio IX.

Quanto às novas disposições promulgadas em 1975, elas enunciam apenas três categorias de livros para as quais se requer a aprovação prévia da autoridade eclesiástica

1) Os exemplares da S. Escritura, tanto em língua ori­ginal como em qualquer tradução. Ao magistério da Igreja não compete controlar a Palavra de Deus com o seu Impri­matur, mas verificar a autenticidade e integridade do texto a ser publicado. Ademais requer-se que qualquer tradução da Bíblia destinada ao grande público seja acompanhada de notas explicativas.

O Decreto nota ainda que «as traduções da S. Escritura, acompanhadas das convenientes explicações, podem, com o consentimento do Ordinário do lugar, ser preparadas e publi­cadas pelos fiéis católicos também em colaboração com os irmãos separados». Esta cláusula faz eco ao texto da Consti­tuição «Dei Verbum» n° 22 do Concílio do Vaticano II; repre­senta certamente grande novidade em relação ao texto do Código de Direito Canônico e se explica como conseqüência do intenso trabalho de aproximação realizado pelo Secretariado para a União dos Cristãos.

2) Os livros litúrgicos e as suas traduções em línguas modernas hão de ter a aprovação da autoridade da Igreja. O mesmo se diga dos devocionários e outros livros que se destinam à oração particular. Entende-se tal prescrição pelo fato de que as fórmulas de oração devem estar em consonân­cia com as da fé; através de textos de piedade pouco crite­riosos podem-se difundir proposições ou atitudes de fé errô­neas ou ridículas.

3) Os livros de conteúdo religioso ou moral (S. Escritura, Teologia sistemática, Direito Canônico, História da Igreja, disciplinas religiosas ou morais…) são distribuídos em duas categorias:

– os catecismos, os escritos destinados à educação da fé, de qualquer nível desde o primário até o universitário, só podem ser utilizados nas escolas caso tenham aprovação da competente autoridade eclesiástica;

– os livros que abordam matérias teológicas e, mais amplamente, os que se relacionam com a religião e a hones­tidade dos costumes, se não são destinados às escolas, não precisam, a rigor, da autorização eclesiástica para ser publi­cados. Todavia o Decreto recomenda sejam previamente sub­metidos à aprovação da Igreja; trata-se, pois, de um conselho de peso, não, porém, de uma imposição – o que é novidade em relação à legislação anterior.

Artigo 5: Que autores ?

Depois de haver considerado a matéria sujeita a censura, o Decreto passa em revista os autores de escritos: clérigos, Religiosos, leigos.

As disposições do Direito Canônico eram assaz severas, como se depreende do texto do cânon 1386:

“§ 1. Aos clérigos seculares sem licença do Ordinário respectivo, aos Religiosos sem a permissão do Superior maior e do Ordinário do lugar, não é lícito publicar nem mesmo livros que tratem de assuntos pro­fanos, nem escrever em jornais, folhas ou periódicos, nem dirigir tais periódicos.

§ 2. Em jornais ou em periódicos que costumam combater a religião católica ou a Moral, não escrevam coisa alguma nem mesmo os leigos católicos, a menos que para isto haja causa justa e razoável aprovada pelo Ordinário do lugar”.

As novas normas diferem notavelmente do cânon acima. Não falam dos livros de conteúdo profano. Mesmo para os de índole religiosa e moral, apenas «recomendam vivamente que os clérigos procurem ter a aprovação do seu Ordinário e os Religiosos a do seu Superior maior para publicar seus escritos (a menos que as Constituições dos Religiosos obriguem a pedir a licença do Superior Religioso) ».

Estas disposições, na prática, significam que um leitor católico poderá ter em mãos obras de autores católicos que não correspondam exatamente à doutrina da fé e da Moral católicas; deverá, pois, procurar informar-se sobre o valor de tais obras ou confrontá-las com outras, a fim de não se iludir sobre a autoridade das teses ou hipóteses que tais escritos transmitam. Em suma, o fiel católico deverá saber que hoje em dia nem tudo o que é publicado por membros da Igreja – clérigos, Religiosos ou leigos – em matéria de fé e de Moral tem o mesmo grau de ortodoxia; há, sim, obras publi­cadas por eruditos para o público iniciado em questões teoló­gicas e destinadas a provocar o debate e o possível progresso da teologia. A S. Igreja permite a publicação de tais obras para não entravar a pesquisa e o colóquio dos estudiosos; Ela assim indiretamente põe seus filhos não iniciados em teo­logia na contingência de procurar ter uma fé madura, adulta, ciente do que professa, e não dependente de tal ou tal autor famoso.

A abertura que tais normas representam, exigiu uma res­trição expressa no final do art. 4 do Decreto em foco:

“Nas igrejas e nos oratórios, não é lícito expor, vender ou distribuir livros ou outros escritos que tratem de questões religiosas ou morais, desde que não tenham sido publicados com a aprovação da competente autoridade eclesiástica”.

Esta cautela é justificada: é preciso que os fiéis possam ter a garantia de que, ao menos nos lugares sagrados, só lhes são oferecidos livros indiscutidos, aptos a confirmá-los e ilus­trá-los em sua fé.

Quanto aos jornais ou periódicos que costumem combater manifestamente a religião católica ou a Moral, não é permitido aos leigos escrever neles a não ser por justo e razoável mo­tivo; não se requer, para tanto, licença alguma da autoridade eclesiástica. Os clérigos e Religiosos só o poderão fazer com a permissão do Ordinário do lugar. Note-se nesta norma um abrandamento em relação ao cânon 1386 § 2; merece especial atenção o advérbio da frase «que costumem combater mani­festamente…»; tal advérbio falta no cânon citado.

Artigos 1 e 6: A autoridade que aprova

Pergunta-se agora: quais são as pessoas juridicamente competentes para aprovar a publicação de algum escrito ?

A resposta se desenvolve em duas partes, das quais uma diz respeito ao Ordinário que autoriza, e a outra ao censor que examina o manuscrito.

1) Quanto à primeira parte, o autor de livro ou artigo poderá dirigir-se ou ao Ordinário do lugar em que ele reside, ou ao Ordinário do lugar em que o escrito deve ser publicado (o cânon 1385 enumerava também o Ordinário do lugar em que a obra seria impressa – o que já não é possível). Está claro que, se um dos dois prelados em foco recusa a aprovação a determinado livro, ao respectivo autor não é lícito pedi-la ao outro sem o informar da recusa antecedente. Cf. artigo 1 do Decreto.

2) Quanto ao censor, o Decreto prevê:

– ou que cada Ordinário designe pessoas de sua confiança para proceder ao exame de livros e outros escritos,

– ou que as Conferências Episcopais em cada país designem censores aptos a realizar tal tarefa. – Este alvitre é, certamente, de grande utilidade às dioceses menos providas de pessoal disponível para tão delicada missão.

O censor há de ser pessoa «eminente por sua ciência, reta doutrina e sabedoria». Ponha de lado «todo tipo de parciali­dade ou de acepção de pessoas, e tenha em vista apenas a doutrina da Igreja referente à fé e à Moral como ela é pro­posta pelo Magistério da Igreja» (art. 6, 2).

A atitude de um censor de livros é sabiamente descrita pelo Papa Bento XIV (1740-1758), que, cioso do Direito dentro de espírito notoriamente cristão, estipulou as seguintes normas:

“III. Saiba o censor que é chamado a julgar várias opiniões e sen­tenças contidas nos livros com ânimo isento de preconceitos. Por isto livre-se de qualquer propensão em favor de alguma nação, família, escola ou instituto. Remova de si qualquer partidarismo; tenha os olhos abertos tão somente à doutrina que é comum aos católicos: doutrina contida nos decretos dos Concílios ecumênicos, nas Constituições dos Pontífices Ro­manos, no consentimento dos Padres ortodoxos, e nos doutores. Quanto ao mais, é pacífico que não poucas opiniões parecem mais do que certas a uma escola, instituto ou nação e todavia, sem algum dano para a fé ou para a religião, são refutadas e impugnadas por outros católicos, que defendem as posições contrárias, com o conhecimento e a comunhão da Sé Apostólica, a qual deixa cada uma dessas opiniões no seu próprio grau de probabilidade.

IV. Outro ponto de grande importância: não se pode emitir um juízo objetivo sobre o pensamento de um autor, se o livro não é lido por inteiro em todas as suas partes, se não se confrontam entre si os assuntos dispostos e expostos em lugares diversos do livro, se não se consideram atentamente em seu conjunto o pensamento e a intenção do autor. Por isto o juízo sobre o livro há de ser proferido não a partir de uma ou outra proposição avulsa e independentemente de outras proposições con­tidas no mesmo livro…

V. Se a algum autor, conhecido como católico e de boa fama pela sua religião e cultura, escapa alguma expressão ambígua, a justiça pede que, com as devidas explicações, o seu pensamento seja entendido no sentido aceitável” (transcrito do artigo de E. Baragli, citado na bibliografia).

Como se vê, o papel do censor, neste espelho de normas, é descrito em termos dignos e magnânimos. Se a Igreja sempre julgou dever interessar-se pelas publicações de livros, Ela o fez (e faz) unicamente por fidelidade à missão que Cristo lhe confiou, de depositária e transmissora da verdade revelada por Deus. Assim como o poder civil tem a obrigação de pre­servar a saúde física dos cidadãos de um país, controlando alimentos e remédios, denunciando medicamentos e víveres deteriorados ou águas poluídas, assim à S. Igreja toca o dever de zelar pela saúde espiritual e moral de seus filhos, evitando lhes sejam oferecidas publicações que deturpem ou debilitem a fé dos mesmos. Assim como os cidadãos são gratos ao Estado que desempenhe autenticamente a sua função, também os fiéis católicos não podem deixar de reconhecer com gra­tidão o papel de vigilância exercido pela Igreja sobre as publi­cações de livros e artigos.

Dir-se-á: os homens – mesmo os fiéis católicos – dese­jam hoje sentir-se adultos, de modo a exprimir tudo o que pensam ou a ler tudo que possa ser escrito.

A esta objeção dá-se a seguinte resposta

1) É precisamente por isto que a S. Igreja vem mais e mais abrandando as suas normas referentes à censura e proi­bição de livros. Quem considera a legislação hoje vigente, não pode deixar de verificar a grande diferença para com as deter­minações do Código de Direito Canônico e de épocas anterio­res. A Igreja tem, pois, consciência da ânsia de tratamento adulto que caracteriza os homens de nossa época, sejam lei­tores de livros, sejam pesquisadores e escritores de teologia, filosofia e outras disciplinas.

2) A S. Igreja não julga ter o direito de abrir mão, por completo, da censura de livros, porque na verdade Ela sabe que o número de pessoas adultas e maduras na fé é relativa­mente exíguo; mesmo as pessoas de notável erudição pro­fissionalizante ou técnica são despreparadas ou pouco forma­das no que diz respeito às doutrinas da fé e da Moral. Sendo assim, o controle exercido pela Igreja vem a ser um autêntico serviço prestado a quem disto precisa; como observamos, é justamente no setor dos livros fundamentais (de Bíblia, Litur­gia e Catequese) que se exerce a vigilância da Igreja; os demais, que não são de primeira necessidade, não estão sujei­tos a censura obrigatória.

Em última análise, pode-se dizer que as novas disposições da Igreja relativas à publicação de impressos dão mais uma vez a reconhecer a sabedoria da Igreja, Mãe e Mestra.

À guisa de bibliografia

E. Baragli, “Una costante preoccupazione pastorale della Chiesa (‘Imprimatur”, em “La Civiltà Cattolica” 2999, 7/VI/75, pp. 436-449.

G. Caprile, “Nuove Norme per (‘Imprimatur”, em “La Civiltà Cattolica” 2997, 31V/1975, pp. 263-267.

F. Panini, “O indice dos livros proibidos e seu atual significado”, em REB 26, set. 1966, pp. 657-660.

SEDOC 84, set. 1975, cols. 135-137 (texto do Decreto analisado neste artigo).

PR 138/1971, pp. 278-285 (normas para o exame de doutrinas suspeitas de heresia, datadas de 15/I/1971).

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NOTA:

[1] O artigo n° 1 será estudado juntamente com o 6°; cf. p. 36.