Igreja, críticas: estado do Vaticano: por quê?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 394/1995)

 

Em síntese: O Estado do Vaticano tem sua origem em fatos histó­ricos dos primeiros séculos da Igreja. Com efeito; a transferência da capi­tal do Império Romano para Bizâncio no Oriente fez que Roma e o Oci­dente ficassem desabrigados sob a pressão dos bárbaros, que invadiam a Europa. O Bispo de Roma (o Papa) tornou-se então o baluarte da ordem civil na península itálica. Muitos nobres, movidos por especial estima, lhe doaram terras em torno de Roma, as quais foram constituindo o “Patri­mônio de São Pedro”; o Papa as administrava com sabedoria, garantindo a paz e a ordem aos respectivos moradores. Em 756 o rei Pepino o Breve, dos Francos, resolveu oficializar este estado de coisas, reconhecendo o Estado Pontifício independente de Bizâncio; o seu sucessor, Carlos Magno, confirmou o gesto. O Estado Pontifício perdurou até 20/9/1870, quando, sob Pio IX, cedeu à unificação da península itálica, chefiada pela Casa de Savoia. Os Papas subseqüentes não quiseram renunciar ao direito de pos­suir um território independente, pois este lhes parecia condição indispen­sável para que pudessem exercer livremente o seu ministério pastoral. Fi­nalmente em 1929, pelo Tratado do Latrão, foi restaurado o Estado Pon­tifício, com 0,44 km2, o mínimo dentre os Estados independentes, neces­sário, porém, para garantir aos Pontífices a liberdade no cumprimento de sua missão de governar a Igreja espalhada pelo mundo inteiro, sem a inge­rência de poderes estrangeiros.

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Muitos perguntam por que a Igreja Católica possui um Estado territo­rial independente, dito “o Vaticano”, com seus representantes diplomáti­cos e sua participação nas reuniões de nível internacional… Parece desne­cessário que isto aconteça. – A resposta a tal pergunta só pode ser dada a partir da história. A Igreja Católica não arrogou a si o direito de ter um território independente, mas este teve origem na antigüidade por gestos espontâneos de muitos cristãos, que estimavam a figura do Bispo de Roma (o Papa), como se dirá nas páginas subseqüentes.

Passamos a examinar o desenrolar dos acontecimentos que explicam a existência do Estado do Vaticano contemporâneo.

1. OS ANTECEDENTES DO ESTADO PONTIFÍCIO (330-747)

De 306 a 337 reinou no Império Romano Constantino o Grande.

Em 313 pelo Edito de Milão concedeu a paz aos cristãos, pondo fim a duzentos e cinqüenta anos de perseguição.

Muito importante, no reinado de Constantino, foi a transferência da capital de Roma para a pequena cidade de Bizâncio na Ásia Menor; esta passou a ter o nome de Constantinopla ou cidade de Constantino (hoje Istambul). A razão da mudança é a instabilidade a que estava sujeita a ci­dade de Roma e, com ela, o Ocidente por causa das invasões bárbaras. Em conseqüência, Roma foi mais e mais abandonada pelo poder imperial; tor­nou-se sempre mais importante pelo seu valor religioso (nela tinham mor­rido São Pedro e São Paulo e nela vivia o sucessor de São Pedro, o Papa, a quem as populações do Ocidente mais e mais recorriam para conseguir proteção contra os bárbaros). A transferência da capital para Bizâncio con­tribuiu fortemente para que Oriente e Ocidente tivessem cada qual a sua evolução cultural e religiosa própria.

Roma no Ocidente ficou entregue à administração de um conselho municipal, que tinha o nome de Senado, e de funcionários encarregados de julgar as causas judiciárias e cobrar os impostos. Bizâncio mais e mais se esquecia de Roma, descuidando-se do seu reabastecimento e da conserva­ção de seus monumentos; as incursões dos bárbaros na península itálica tornavam as condições de vida da população cada vez mais precárias e do­lorosas. Eis, porém, que, em meio à anarquia, uma figura ia ganhando es­pontânea veneração: a do bispo de Roma, considerado pela população cris­tã como o pai comum, no qual todos depositavam confiança. Correspon­dendo a este afeto filial, os Pontífices Romanos foram-se tornando os tu­tores do bem público não somente no plano espiritual, mas também no temporal e social: em 452, por exemplo, o Papa São Leão Magno dirigiu-se ao encontro de Átila e do exército huno, que se aprestavam para devastar Roma e a Itália meridional, conseguindo detê-los em Mântua. Na ausência ou na incúria dos oficiais do Imperador Bizantino, era no chefe religioso de Roma que os homens depositavam a sua esperança de viver melhores dias.

A estima devotada ao Bispo de Roma (= Papa) fazia que muitos no­bres, ao morrer ou ao ingressar no mosteiro, legassem seus bens e territó­rios ao Pontífice. Assim teve origem, aos poucos, o chamado “Patrimônio de São Pedro”, que constava de terras na Itália e nas ilhas adjacentes. Esses bens, de extensão cada vez maior, permitiam ao Papa assumir posição de certa independência diante do Imperador bizantino e do representante deste em Ravena: o Pontífice tinha sob a sua jurisdição civil grande núme­ro de cidadãos, que trabalhavam sob a tutela papal ou eram socorridos por esta nos hospitais, asilos e orfanatos pontifícios.

Em conseqüência, durante os séculos IV – VII foi-se afirmando natu­ralmente o poder temporal do Papa, em virtude do desenrolar mesmo dos acontecimentos.

No séc. VIII os acontecimentos se precipitaram.

O Papado se viu premido entre duas potências hostis: no Oriente, os bizantinos favoreciam as heresias (a respeito de Cristo e do culto das ima­gens), os Imperadores subtraíam terras à jurisdição eclesiástica dos Papas. No norte da Itália, os lombardos, pagãos ou arianos (heréticos), ameaça­vam constantemente saquear Roma e os territórios meridionais, consti­tuindo um perigo não somente civil, mas também religioso. Nessas circuns­tâncias, os Pontífices Romanos se lembraram de recorrer ao auxílio de um dos novos povos do cenário europeu: os francos, que, desde o batismo de seu rei Clóvis em 496, constituíam uma nação cristã de crescente valor cultural; em 732, seu mordomo, Carlos Martelo, tinha conjurado o perigo muçulmano, vencendo os árabes em Poitiers. Os francos conservavam fide­lidade à reta fé e possuíam energias novas, enquanto Bizâncio já significava um mundo velho, vítima tanto das sutilezas de seu ingênio (“bizantinis­mo” na arte, na filosofia, na teologia…) como dos exércitos estrangeiros (principalmente dos persas); o verdadeiro esteio da cristandade já não es­tava no Oriente (onde as sutis discussões teológicas debilitavam a fé), mas no Ocidente, em particular no reino dos francos, onde a fé era empreen­dedora. Por que então não apelariam os Papas para estes filhos da Santa Igreja, a fim de propiciar uma ordem de coisas cristã aos povos cristãos?

2. A CRIAÇÃO DO ESTADO PONTIFICIO (756)

1. Em 747, Pepino, homem inteligente e ambicioso, mas religioso e bem intencionado com a Igreja, tornou-se o mordomo do palácio real dos francos (os reis então reinavam, mas não governavam, enquanto os mordo­mos governavam sem coroa). Pepino quis pôr termo à situação ambígua do governo dos francos; por isto recorreu ao Papa Zacarias, pedindo-lhe que recobrisse com a sua autoridade a falta de sangue real e reconhecesse a di­nastia de Pepino e dos seus descendentes (os carolíngios); o Pontífice con­cordou com Pepino, pois este, se não era o rei de direito, era o rei de fato. Em 751 Pepino foi eleito rei dos francos na Dieta (= assembléia política) de Soissons, e, a seguir, ungido por S. Bonifácio e outros bispos. Sucedeu assim ao último rei da dinastia anterior (merovíngia): Quilderico III.

Pepino em breve teve a ocasião de mostrar sua gratidão ao Papa. O rei lombardo Aistulfo (749-56), depois de ter tomado Ravena aos bizan­tinos, ameaçava Roma. De novo abandonado pelo Imperador Constantino V Coprônimo, o Papa Estêvão II pediu auxílio aos francos; foi mesmo à França, aparecendo em 754 no palácio régio em Ponthion (perto de Paris). Pepino recebeu-o com todas as honras e prometeu-lhe proteção contra os lombardos; era movido a isto não por meros interesses políticos, mas por veneração sincera para com o sucessor de S. Pedro. De Ponthion o rei le­vou o Papa para Paris, onde este o ungiu, assim como aos seus dois filhos Carlos e Carlomano, reis dos francos; além disto, conferiu-lhes o título de “patrícios romanos”, título que implicava o dever de proteger Roma e à sua Igreja. Finalmente a amizade entre Pepino e o Papa deu ocasião a novo pacto travado em 754 em Quierzy: Pepino se obrigava não somente a de­fender a Igreja em Roma, mas também a libertar os territórios bizantinos ocupados pelos lombardos. Em duas campanhas militares (755 e 756) Pe­pino venceu Aistulfo e, apesar dos protestos de Bizâncio, doou solene­mente por escrito ao Papa os territórios de Comacchio, o exarcado e a Pentápole (Rimini, Pesaro, Fano, Sinigaglia, Ancona); o documento de doação foi colocado sobre o túmulo de São Pedro. Estava assim fundado o Estado Pontifício (756), praticamente independente de Bizâncio, sob a ju­risdição do Papa e a proteção dos francos. Na verdade, tal gesto correspon­dia ao papel que o Pontífice já vinha exercendo em favor das populações ameaçadas da península itálica.

2. Existe um documento intitulado Constitutum ou Donatio Cons­tantini segundo o qual o Imperador Constantino Magno doava ao Papa S. Silvestre (314-335) e a seus sucessores, em agradecimento pelo batismo e a cura da lepra, poder e dignidade imperiais; além disto, conferia-lhes o do­mínio sobre o palácio do Latrão, sobre Roma e todas as cidades dos terri­tórios ocidentais; pelo quê, Constantino transferia a sua residência para Bi­zâncio. Este documento faz parte de uma coleção falsa de leis – os decre­tais do Pseudo-Isidoro -, que teve origem no século IX. Por toda a Idade Média a Donatio Constantini foi considerada autêntica. Todavia a partir do século XV a sua genuidade foi contestada de modo que hoje em dia é reconhecida como falso documento.

A Pepino o Breve sucedeu seu filho Carlos Magno. O rei Desidério, dos lombardos, resolveu atacar de novo os territórios pontifícios, inclusi­ve marchando sobre Roma. O Pontífice apelou para os francos: em 773, Carlos interveio cercando Pavia, a capital dos lombardos; durante o sítio, na Páscoa de 774 o rei dos francos foi a Roma e lá confirmou a doação que Pepino fizera a Estêvão II; além disto, doou-lhe as cidades de Imola, Bolonha e Ferrara. Carlos Magno recebeu do Pontífice Leão III, em 800, a coroa de Imperador do Império Romano, restaurado no Ocidente com o título de Império sacro ou cristão.

3. Esses fatos têm sido calorosamente comentados pelos historiado­res. Pergunta-se se não houve nisso tudo usurpação de direitos, jogo de in­teresses políticos dos Papas e dos francos.

Após uma reflexão serena, afirmar-se-á que não. Os acontecimentos mencionados não foram senão a “oficialização” de uma situação que de fato já existia: o Papa já exercia as funções de soberano no Patrimônio de São Pedro, sem possuir o título respectivo; os mordomos francos, do seu la­do, já governavam o reino (sob a dinastia dos reis merovíngios ditos “fai­néants”, indolentes), embora não trouxessem as insígnias de monarcas; Pe­pino o Breve e Estêvão II, Carlos Magno e Leão III só fizeram tornar a si­tuação definida e patente aos olhos do mundo. A restauração do Império Romano no Ocidente não pode ser tida como violência cometida contra Bizâncio, nem foi um gesto surpreendente e brusco, mas o remate orgâni­co de um processo histórico iniciado em 330 e lentamente amadurecido no decorrer de mais de quatrocentos anos (até 756, ou melhor, até 800).

4. O Estado Pontifício, fundado em 756, perdurou ininterruptamen­te até 1870, quando cedeu ao movimento de unificação da península itá­lica. Registraram-se, no decorrer desses muitos séculos, obras grandiosas, que a soberania temporal dos Papas possibilitou; mas verificaram-se ou­trossim certos abusos, gestos de prepotência política e de luxo mundano, principalmente no período da Renascença. A Santa Igreja, guiada pelo Es­pírito Santo, é a primeira a reconhecer e condenar tais desvios; ela não se identifica irrestritamente com nenhum de seus membros, mas, na qualida­de de Esposa de Cristo, transcende a todos, até mesmo os mais altamente colocados (pois cada um traz até certo ponto o lastro do pecado); também não se surpreende ao verificar os abusos de seus filhos; estão bem na linha da parábola evangélica do joio e do trigo…

3. A QUEDA DO ESTADO PONTIFICIO

No século XIX desencadeou-se o movimento de unificação da penín­sula itálica, sob a hegemonia do Piemonte-Sardenha. O rei Vítor Emanuel II (1849-1870), do Piemonte, ocupou províncias do Estado Pontifício e foi proclamado “rei da Itália” aos 27/3/1861, com a sua capital em Flo­rença.

Em 1861, portanto, o Estado Pontifício via-se despojado de dois ter­ços do seu território, reduzido a Roma e à parte mais antiga do Patrimônio de São Pedro, praticamente impossibilitado de subsistir em virtude do es­gotamento financeiro.

Finalmente em 1870, assediaram Roma 60 mil piemonteses coman­dados pelo general Cardona. A defesa pontifícia, sob o general Kanzler, só contava 10 mil soldados. Depois de alguns golpes de artilharia piemon­tesa, Pio IX mandou capitular aos 20/9/1870. O poder temporal do Papa assim caía. Em junho de 1871 Vítor Emanuel estabeleceu sua residência no Quirinal, onde outrora haviam morado os Papas, ficando o Pontífice no Vaticano.

A perda do poder temporal teve o mérito de emancipar o Papa das solicitudes e solicitações dilaceradoras da administração de um Estado. Pôde sobressair mais na singularidade da sua missão espiritual.

4. ENTRE A QUEDA E A RESTAURAÇÃO DO ESTADO PONTIFÍCIO

Tendo perdido o poder temporal, os Papas julgaram que em cons­ciência não podiam abrir mão do direito a total autonomia nos planos po­lítico e nacional. Tal autonomia lhes aparecia muito justificadamente co­mo condição impreterível para a fiel realização de seus encargos de pasto­res de alma esparsas por todos os continentes.

É o que afirmava Sua Santidade o Papa Leão XIII em carta escrita aos 15 de junho de 1887:

“A suprema autoridade pontifícia, instituída por Jesus Cristo e con­ferida a São Pedro e aos seus sucessores legítimos, os Pontífices Romanos, não pode, por sua natureza mesma e por vontade do seu Divino Fundador, estar sujeita a algum poder terrestre; ao contrário, ela deve gozar da mais plena liberdade no exercício de suas funções… É necessário que o Sumo Pontífice seja colocado em condições de independência tais que não so­mente a sua liberdade não seja entravada por quem quer que seja, mas se torne mesmo evidente a todos que ela não é tolhida” (“L’Osservatore Ro­mano” 12/02/1929).

O Papa Pio XI disse o mesmo em palavras dirigidas aos professores e estudantes da Universidade de Milão:

“Em virtude da divina responsabilidade de que está investido o Pon­tífice Romano, qualquer que seja o seu nome e qualquer que seja a época em que viva, não pode estar subordinado a poder algum” (“La Documen­tation Catholique” 1929, col. 472).

O mesmo Pontífice, referindo-se ao poder temporal da Santa Sé, declarava:

“Não se conhece, ao menos até nossos dias, outra forma de soberania verdadeira e própria que não seja soberania territorial… A soberania terri­torial, qualquer que seja a sua modalidade, é condição que todos reconhe­cem indispensável à verdadeira soberania jurisdiçional” (“La Documenta­tion Catholique” 1929, col. 469).

Observe-se que, para a Igreja, a plena autonomia do Sumo Pontífice é, em última análise, não uma questão política, mas uma questão religiosa, se bem que tenha suas conseqüências nos setores político e econômico; estes interessam à Igreja apenas na medida em que são necessários ao livre exercício do ministério apostólico e à instauração do Reino de Deus na terra. Em outros termos: a independência territorial é, para a Santa Igreja, apenas o símbolo e a condição da independência religiosa.

Merecem atenção também as ponderações do Papa Pio IX feitas em alocução de 20 de abril de 1849, quando o Estado Pontifício estava pres­tes a sucumbir:

“É evidente que os fiéis, os povos, as nações, os reis nunca se voltarão para o bispo de Roma com plena confiança e obediência quando o virem súdito de um soberano ou de um Governo, e souberem que não está em plena posse de sua liberdade. Pois então poderão sempre suspeitar e recear que o Pontífice, em seus atos, sofra a influência do soberano e do Governo em cujo território ele resida. E, em vista deste pretexto, acontecerá muitas vezes que as determinações do Papa não serão executadas”

As palavras de Pio IX eram realmente sábias e prudentes. É o que se comprova pelo fato de que os filósofos do século XVIII, desejosos de ex­tinguir a Igreja, se mostravam persuadidos de que a queda do Estado Pon­tifício acarretaria a da própria Igreja. Assim, por exemplo, escrevia o Im­perador Frederico II da Prússia ao seu amigo Voltaire em carta datada de 9 de julho de 1777:

“Quando o principado civil dos Papas tiver desmoronado, então sere­mos vitoriosos e a cortina cairá. Daremos uma boa pensão ao Santo Padre. E que acontecerá então? A França, a Espanha, a Polônia, em uma palavra: todas as potências católicas já não haverão de querer reconhecer um Vigá­rio de Jesus Cristo subordinado ao braço do Imperador. Cada qual (desses países) criará um patriarcado em seu próprio território… Aos poucos afas­tar-se-ão da unidade da Igreja, e cada um acabará por ter em seu reino a sua religião própria como tem a sua língua própria” (Voltaire, Oeuvres complètes XII. Paris 1817, pág. 64).

5. A RESTAURAÇÃO DO ESTADO PONTIFICIO

Os Papas Pio IX (1846-1878), Leão XIII (1878-1903), S. Pio X (1903-1914), Bento XV (1914-1922) e Pio XI (1922-1939) sempre disse­ram Non possumus (Não podemos) a qualquer proposta de renúncia à so­berania temporal (as respectivas razões mais adiante explanadas).

Finalmente sob Pio XI ocorreu a solução da famosa “Questão Ro­mana”. Esta se deve à iniciativa pessoal e à grande coragem de Pio XI. Foi possibilitada também pela mudança do Governo italiano: em outubro de 1922 deu-se o advento do Fascismo, que tomou posição favorável à Igreja: o ensino da religião tornou-se de novo obrigatório nas escolas, os clérigos foram dispensados do serviço militar, foi oferecida assistência religiosa às Forças Armadas, os crucifixos foram recolocados nas escolas, nos hospitais e tribunais; igrejas e mosteiros profanados foram, em parte, restituídos, os dias santos católicos reconhecidos… Benito Mussolini, o chefe do Gover­no, percebeu a grande convivência política de reconciliar a Itália com o Va­ticano. As negociações levaram dois anos e meio, terminando com a assina­tura do Tratado do Latrão aos 11/02/1929, que encerrava sessenta anos de querela entre o Vaticano e o Quirinal.

Este Tratado reconhecia a absoluta soberania do Papa sobre a peque­na Cidade do Vaticano, que é o menor de todos os Estados independente: 0,44km2 , quando a República de San Marino tem 61 km2 e a de Andorra 465km2 . Ao Vaticano tocaria o direito de representação diplomática ativa e passiva. O Papa, de seu lado, reconhecia o reino da Itália sob a dinastia de Savoia e com a capital em Roma (reconhecia, portanto, a secularização dos antigos territórios pontifícios). Além da Cidade do Vaticano, o Pontífice dispõe de “lugares extraterritoriais”, como as principais basíli­cas de Roma, edifícios da Cúria, a Vila de Castel Gandolfo… – Num acor­do separado, o Estado italiano se comprometia a pagar à Santa Sé a quan­tia de 1.750 milhões de liras a título de indenização.

O Papa Pio XI, por ocasião do Tratado do Latrão, quis explicar o porquê da insistência de cinco Pontífices em não aceitar simplesmente a perda do Estado da Igreja:

“Podemos dizer que não há uma linha, uma expressão do Tratado (do Latrão) que não tenham sido, ao menos durante uns trinta meses, objeto particular de nossos estudos, de nossas meditações e, mais ainda, de nossas orações, que pedimos outrossim a grande número de almas santas e mais amadas por Deus.

Quanto a nós, sabíamos de antemão que não conseguiríamos conten­tar a todos, coisa que geralmente nem o próprio Deus consegue..

… Alguns talvez achem exíguo demais o território temporal. Pode­mos responder, sem entrar em pormenores e precisões pouco oportunas, que é realmente pouco, muito pouco; foi deliberadamente que pedimos o menos possível nessa matéria, depois de ter refletido, meditado e orado bastante. E isso, por vários motivos, que nos parecem válidos e sérios.

Antes do mais, quisemos mostrar que somos sempre o Pai que trata com seus filhos; em outros termos: quisemos manifestar nossa intenção de não tornar as coisas mais complicadas e, sim, mais simples e mais fáceis.

Além disto, queríamos acalmar e dissipar toda espécie de inquieta­ção; queríamos tornar totalmente injusta, absolutamente infundada, qual­quer recriminação levantada em nome de… iríamos dizer: uma supersti­ção de integridade territorial do país (Itália).

Em terceiro lugar, quisemos demonstrar de modo peremptório que espécie nenhuma de ambição terrestre inspira o Vigário de Jesus Cristo, mas unicamente a consciência de que não é possível não pedir, pois uma certa soberania territorial é a condição universal reconhecida como indis­pensável a todo autêntico poder de jurisdição.

Por conseguinte, um mínimo de território que baste para o exercício da jurisdição, o território sem o qual não poderia subsistir… Parece-nos, em suma, ver as coisas tais como elas se realizavam na pessoa de São Fran­cisco: este tinha apenas o corpo estritamente necessário para poder deter a alma unida a si. O mesmo se deu com outros Santos: seu corpo estava re­duzido ao estrito necessário para servir à alma, para continuar a vida hu­mana e, com a vida, sua atividade benfazeja. Tornar-se-á claro a todos, es­peramo-lo, que o Sumo Pontífice não possui como território material se­não o que lhe é indispensável para o exercício de um poder espiritual con­fiado a homens em proveito de homens. Não hesitamos em dizer que Nos comprazemos neste estado de coisas; comprazemo-Nos por ver o domínio material reduzido a limites tão restritos que… os homens o devem consi­derar como que espiritualizado pela missão espiritual imensa, sublime e realmente divina que ele é destinado a sustentar e favorecer” (trecho da alocução publicada por “L’Osservatore Romanode 13 de fevereiro de 1929).

A comparação ilustra fielmente a verdade. Tenha-se em vista que a Igreja, por definição, exerce autoridade não apenas sobre os corpos e o comportamento exterior dos homens, mas também sobre o setor mais ínti­mo e importante dos indivíduos: sobre as almas; e exerce-a independente­mente de fronteiras nacionais, abrangendo centenas de milhões de fiéis do mundo inteiro: onde quer que esteja comprometido o espírito do homem, mesmo nos planos aparentemente mais indiferentes à religião, como o esporte, o cinema, a medicina, o comércio, a Igreja tem que estar aí pre­sente, a fim de orientar a conduta das almas que assim entram em contato com o mundo material.

Tal autoridade é realmente colossal. Em conseqüência, os filhos da Igreja e os homens que compreendem o que essa autoridade significa, não podem deixar de desejar que tanto poder não sofra influência de alguma força estranha, não se torne joguete nas mãos de soberanos políticos, mais ou menos arbitrários. Por isto, cedo ou tarde havia de aflorar à consciên­cia dos cristãos a idéia de que o governo e o Chefe Supremo da Igreja de­vem ser independentes de qualquer soberano político nacional, devem en­fim ser tão livres quanto qualquer governo deste mundo. Em caso contrá­rio, estaria frustrada a sua missão.

Esta última conclusão, a história se encarregou de a comprovar. Com efeito, não faltaram no decurso dos séculos tentativas das autorida­des civis que visavam a submeter o Soberano Pontífice à jurisdição do mo­narca de tal ou tal pais (que ótimo jogo não seria utilizar a autoridade mo­ral dos Papas em favor de interesses nacionais!). Quando o conseguiram, a tarefa religiosa da Igreja se viu enormemente prejudicada. Foi o que se deu, por exemplo, durante o chamado “Exílio de Avinhão”: de 1309 e 1376, os monarcas franceses obtiveram que os Papas residissem em Avi­nhão (França), onde, carecendo de soberania temporal, ficaram sujeitos à influência do governo civil. Nesse período, os Pontífices foram perdendo parte da sua autoridade perante a opinião pública internacional; os cristãos de fé (o rei Carlos IV da Alemanha, o poeta Petrarca, Sta. Brígida, nobre viúva sueca, Sta. Catarina de Sena) se alarmavam, percebendo que, se a si­tuação se prolongasse por muito tempo, o Papado deixaria de ter o prestí­gio sobrenatural e católico (universal) que deve ter. Basta recordar que o Pontífice João XXII (1316-1334) entrou em conflito com o rei Luís IV da Baviera, animado de pretensões cesaropapistas; excomungado pelo Papa, o monarca respondeu que João XXII servia aos interesses da dinastia dos Valois de França; por isto não hesitou em criar um antipapa (Nicolau V), alegando que a França tinha “seu” Papa.

Tais idéias e fatos evidenciam quão conveniente à missão religiosa da Igreja é a soberania política (por muito limitada que seja) de que os Pon­tífices têm tradicionalmente usufruído.

6. E AS “RIQUEZAS” DO VATICANO?

Quanto às propaladas “riquezas” do Vaticano é preciso dizer que os rumores a seu respeito ultrapassam de muito a realidade.

Como dito, a Cidade do Vaticano é, do ponto de vista territorial, a mínima do mundo. Quando após 1870 se discutia a “Questão Romana”, diziam muitos que, em caso de restauração da soberania temporal, um Es­tado do tamanho da República de São Marinho (60,57km2) seria suficien­te para os Pontífices; ora o Estado Pontifício ressurgiu com 0,44km2 apenas — o que no século passado parecia incrível. Esse Estado constitui a simples carcaça de uma alma e tem por exclusiva função possibilitar o exercício das atividades da respectiva alma ou da Igreja.

As obras de arte que se encontram no Vaticano, são, em grande par­te, a expressão da fé de pintores e arquitetos cristãos, que quiseram glori­ficar a Deus mediante o seu talento. Os Papas – alguns com prodigalidade talvez excessiva – os incentivaram, porque a Igreja só pode favorecer as artes que contribuam para a exaltação do Criador.

Os objetos contidos nos Museus do Vaticano foram, em grande parte, doados aos Pontífices por cristãos sinceros (reis, cruzados, viajantes, ex­ploradores, etc.), em testemunho de fé. Pertencem ao patrimônio do gêne­ro humano; os Papas não vêem motivo para não os conservar para o bem da cultura universal.

Ademais, é notório que a Santa Sé tem estado em deficit financeiro nos últimos anos. Os diversos encargos assumidos em prol da evangelização dos povos e em favor do diálogo com todos os homens tem-na obrigado a despesas cujo montante ultrapassa o seu limitado erário. Daí o recurso anual do Sumo Pontífice às nações católicas para que o ajudem no cumpri­mento da missão evangelizadora da Igreja. Sem dinheiro é impossível de­sempenhar a ingente tarefa confiada por Cristo aos seus discípulos.

Não há razão, pois, para que o mundo se detenha sobre as apregoadas “riquezas” materiais do Vaticano. Volte, antes, a sua atenção para os imensos tesouros espirituais que daquele recanto territorial emanam para o gênero humano. Queiram-no ou não os homens, é ainda da Santa Sé que se faz ouvir a palavra da Verdade e da Vida em meios às vicissitudes da hora presente.

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