Igreja, críticas: progresso e tradição no cristianismo

 (Revista Pergunte e Responderemos, PR 181/1975)

Em síntese: O artigo abaixo resume e adapta idéias do Prof. Pe. Hans Pfell, da Universidade de Bamberga (Alemanha) expostas no estudo “Für und wider das Traditionschristentum”, estudo que o mestre desejou fosse divulgado no Brasil.

Entre dois tipos de Cristianismo (Catolicismo) – o extremamente fe­chado ou conservador e o radicalmente reformista ou inovador – colo­ca-se a imagem do Cristianismo que sabe associar entre si harmoniosa­mente Tradição e Progresso. Essa imagem procede da consciência de que

– há elementos essenciais e imutáveis na Igreja: tais os artigos da fé, deduzidos da S. Escritura e da Tradição e autenticamente ensinados pelo magistério da Igreja. É também imutável a constituição episcopal da Igreja, tendo à frente o bispo de Roma ou o Papa, a quem Cristo pro­meteu assistência infalível para confirmar seus irmãos na fé; cf. Mt 16,18s; Lc 22,32; Jo 21,15-17;

– há elementos acidentais e mutáveis na Igreja. Tais são certas expressões das verdades da fé que devem ser formuladas (sem prejuízo do seu conteúdo) de maneira inteligível aos homens de cada época. Tais são também certos costumes e certas normas disciplinares, litúrgicas, jurí­dicas, que dependem de certa cultura, e não podem ser uniformemente impostas aos homens que não compartilhem a mesma cultura.

É inevitável certa renovação das formas acidentais da igreja. Querer impedi-la significa contradizer à realidade da vida. Todavia é preciso que essas reformas acidentais, para ser frutuosas, preencham duas condições: sejam licitas (afetando apenas o acidental) e oportunas (condizentes com as necessidades da Igreja na região e na população em que se dá a reforma em foco). Nem tudo que é lícito é oportuno e desejável, em ma­téria de renovação da Igreja.

É assim que se pode configurar a síntese entre Tradição e Progresso na Igreja de hoje.

***

Comentário: De 14 a 20 de julho de 1974 realizou-se a II Semana Internacional de Filosofia em Petrópolis (RJ), de que participaram grandes mestres nacionais e estrangeiros, entre os quais estava o Prof. Pe. Hans Pfeil, de Bamberga na Alemanha. Este pensador, em palestras e escritos, expôs o seu pensamento a respeito da influência de correntes filosóficas no Cristianismo de nossos dias, exprimindo o desejo de que «Pergunte e Responderemos» se interessasse por divulgar as reflexões do mestre. É o que vamos fazer abaixo, servindo­-nos de um escrito de Hans Pfeil intitulado «Für und wider das Traditionschristendum» [1] (sem data). Esse estudo, distribuído pelo Prof. Hans Pfeil aos semanistas, será por nós abreviado e devidamente adaptado ao público brasileiro, fi­cando, porém, incólume o pensamento do autor alemão.

Tratar-se-á das relações entre Cristianismo e Tradição, entendendo-se «Tradição» em sentido amplo; abrange, no ca­so, tudo aquilo que vinha sendo transmitido de geração a ge­ração no Cristianismo (ou, mais precisamente, no Catolicismo) até o Concílio do Vaticano II (1962-1965): verdades de fé, sen­tenças comuns entre os teólogos, preceitos morais, costumes e usos disciplinares, jurídicos, litúrgicos, etc. O objetivo do presente estudo será averiguar os critérios aptos para se re­solver a tensão hoje vigente entre «conservadorismo» e «pro­gressismo» e se conceber a autêntica face do Cristianismo em nossos dias. – Como se vê, o problema é candente.

1. Dois tipos de Cristianismo

Embora toda esquematização corra o risco de ser uni­lateral, distinguiremos, por motivos metodológicos, dois tipos de Cristianismo a se defrontar: o tradicionalista e o pro­gressista.

1.1. Tradicionalismo

Há hoje em dia cristãos que desejam conservar sem dis­tinção todo o patrimônio da Tradição e, conseqüentemente, recusam toda e qualquer inovação, seja no modo de falar, seja no modo de se comportar da Igreja. Rejeitam, por exem­plo, qualquer tentativa de se reformularem as verdades da fé (guardando-se incólume o seu conteúdo), a fim de exprimi­-las no contexto do mundo de hoje ou aprofundá-las em vista de problemas colocados pelo pensamento contemporâneo; de­fendem todas as opiniões ontem vigentes entre os moralistas, sem distinguir entre a Lei de Deus e as normas contingente­mente impostas aos cristãos em conseqüência de determinada fase de cultura ou determinada estrutura da sociedade; opôem-se outrossim às inovações litúrgicas, considerando mesmo alguns ritos ou livros litúrgicos posteriores ao Concílio do Vaticano II como heréticos…

Esses cristãos sofrem profundamente ao verem que certas expressões da Igreja em nossos dias se alteram; têm a impres­são de que o pecado e o sacrilégio se instauram cada vez mais no santuário de Deus. É por isto que se mostram insa­tisfeitos e desgostosos. – Torna-se necessário que os demais cristãos, mesmo que não compartilhem as concepções dos tradicionalistas, reconheçam o zelo «subjetivo» que os move, e saibam prestar-lhes o seu testemunho de amor fraterno e de respeito, que são a única atitude concebível entre cristãos [1].

1.2. Reformismo radical

Frente aos incondicionais adeptos da Tradição, existem os cristãos que, movidos por espírito de reforma incondicio­nal ou pelo gosto da novidade, desdizem o que lhes foi entre­gue, e propõem alterações radicais no testemunho que o Cris­tianismo deve dar aos homens de hoje. A fim de poder encon­trar audiência por parte dos nossos contemporâneos, expõem as verdades da fé de maneira que muda essencialmente o seu sentido originário, ou questionam essas verdades de modo a lhes esvaziar o conteúdo. Desejosos de não «assustar» os que se poderiam interessar pelo Cristianismo, atenuam ou mesmo cancelam certos preceitos da Moral cristã. Para tornar mais atraentes as celebrações da Liturgia, menosprezam os ritos oficiais e tomam a liberdade de fazer experiências de culto divino que confundem ou mesmo escandalizam muita gente.

Reconhecemos que em muitos casos o erro objetivo pode ser sustentado com boa fé e candura subjetivas; só Deus jul­ga a consciência de quem diz ou faz algo de errôneo. Não há dúvida, em muitos dos inovadores radicais existe boa inten­ção e sincero desejo de acertar e tornar o Cristianismo cada vez mais atuante na sociedade contemporânea. Não é menos verdade que em não poucos outros casos existe mais levian­dade e superficialidade do que inspiração teológica e mo­tivação profunda para as inovações. Como os seus irmãos do extremo oposto, muitos inovadores também sofrem, pois sen­tem que nem sempre são compreendidos, passando por infiéis e traidores. .. – É, pois, para desejar que os demais cristãos, ainda que alheios ao seu modo de pensar, os saibam tratar com amor sobrenatural, procurando imitar o Servidor de Javé, que, conforme o profeta Isaías, «não quebraria o caniço ra­chado nem apagaria o pavio ainda fumegante» (Is 42,3).

1.3. Que dizer?

Não há quem não sinta a problemática atrás exposta. Na realidade, todo fiel católico encontra irmãos que defendam, total ou parcialmente, uma ou outra das duas posições ex­tremas.

Ambas labutam em erro[3], como é fácil reconhecer.

a) Com efeito, aos conservadores extremados pode-se lembrar que os tempos mudam, acarretando novas culturas e novos tipos de civilização. Em particular, os tempos atuais são marcados por notáveis transformações nos mais varia­dos setores; fala-se mesmo da «idade do átomo e da auto­mação». Ora a Igreja que se compõe de homens (embora não somente de homens…) seria a única sociedade a não querer sentir a realidade dessas mudanças?. Poderia Ela pre­tender ignorar que os homens, a quem Ela deve dirigir a mensagem do Evangelho, trazem pressupostos, preocupações e anseio diversos daqueles que caracterizavam as gerações ante­riores? [4] Poderia Ela deixar de levar em conta as novas cir­cunstâncias, que exigem não mudança da mensagem, mas a das formas de expressão dessa eterna mensagem?

Ademais todo ser vivo está em continuo desabrochar, ti­rando de suas virtualidades novas energias e manifestações… Quem tenciona impedir o ser vivo de se desenvolver, condena-o a definhar e a morrer. Ora a Igreja é uma realidade viva, sujeita às leis da vida temporal, embora nela haja, sem dúvida, elementos eternos; a lei da Encarnação, que afetava o Filho de Deus feito homem [5], afeta também o Corpo Místico de Cristo ou a S. Igreja.

b) Aos inovadores extremistas deve-se recordar que em qualquer setor (na sociedade, na cultura, como também na Igreja) as reviravoltas bruscas e as guinadas de 180° são ge­ralmente perigosas ou mesmo mortais. Na doutrina e na vida da Igreja existem limites que não é licito violar, porque o pró­prio Deus os estabeleceu. Quem queira «vender» o Cristia­nismo a preço sempre mais barato e em roupagem sempre va­riante, contradiz ao Espírito de Cristo e não conseguirá o in­tento, pois suscitará em torno de si ou tristeza e aflição ou escárnio e derisão; ridículo viria a ser tal Cristianismo.

Mais: seria leviano e utópico pretender derrubar o legado do passado para recomeçar a construir o Cristianismo. Quem o pretendesse, já não construiria Cristianismo, mas, sim, obra humana, inspirada por filosofias humanas e transitórias. O Cristianismo remonta necessariamente a Cristo e aos Após­tolos, de modo que qualquer ruptura (violenta ou suave e “ele­gante”, pouco importa) com o passado é morte para o Cris­tianismo.

Antes que se derrube qualquer coisa, é preciso que se pense bem nas possibilidades e nas dificuldades de construir algo de melhor em seu lugar. Se este problema não está resol­vido, a sabedoria manda que não se toque na realidade exis­tente.

Diante das duas posições extremas que acabam de ser esboçadas, preconiza-se um Cristianismo que associe, ao mes­mo tempo, Tradição e Progresso, adesão aos valores antigos e abertura para novos valores. – É esse tipo de Cristianismo que as páginas seguintes apresentarão.

2. O Cristianismo renovado

Para descrever o Cristianismo assim apregoado, distin­gam-se na Igreja elementos essenciais e elementos acidentais.

2.1. Elementos essenciais

É essencial na Igreja o depósito da Revelação Divina, co­municada aos homens desde os tempos do Patriarca Abraão, até Jesus Cristo e a geração dos Apóstolos. Esta Revelação se encontra nas Escrituras Sagradas e na Tradição oral, am­bas autenticamente interpretadas e transmitidas pelo magis­tério da Igreja, a quem Jesus Cristo prometeu a sua assistên­cia infalível (cf. Mt 16,18s; 18,18; 28,18-29).

Diz o Concílio do Vaticano II na sua Constituição «Lu­men Gentium» referente à Igreja:

“Deve de modo particular ser prestada religiosa submissão da von­tade e da inteligência ao autêntico magistério do Romano Pontífice, mesmo quando não fala ex-cathedra. E isso de tal forma que o seu magistério supremo seja reverentemente reconhecido, suas sentenças sinceramente acolhidas, sempre de acordo com a sua mente e vontade. Esta mente e vontade constam principalmente da índole dos documentos ou da fre­qüente proposição de uma mesma doutrina ou de sua maneira de falar” (“Lumen Gentlum” n° 25).

Quanto aos demais bispos, declara o Concílio que, individualmente considerados, não gozam de infalibilidade; todavia, «mesmo quando dispersos pelo mundo, guardando, porém, a comunhão entre si e com o sucessor de Pedro, podem ensinar autenticamente sobre assuntos de fé e de moral; é o que acon­tece quando, concordes, propõem aos fiéis alguma sentença em termos definitivos; então enunciam infalivelmente a dou­trina de Cristo. Isto aparece ainda mais claramente quando, reunidos em Concílio Ecumênico, são mestres e juízes da fé e da moral para toda a Igreja. Nestes casos é necessário ade­rir às suas definições com o obséquio da fé» (ib.).

A infalibilidade do bispo de Roma (S S. o Papa) e do colégio dos bispos unidos ao Papa não se estende a todas as proposições que deles procedam; mas «ela vai tão longe quanto o exige o depósito da Revelação Divina, que deve ser conser­vado integro e transmitido com fidelidade» (ib.).

Visto que tal doutrina nos últimos anos vinha sendo discutida e contestada, a Congregação para a Doutrina da Fé, órgão oficial da Santa Sé, publicou aos 5/Vll/1973 uma De­claração em que reafirma a assistência do Espírito Santo aos pastores da Igreja no desempenho das suas funções pasto­rais. Eis a passagem desse documento que mais interessa ao presente estudo:

“O Espírito Santo, com providente sabedoria e com a unção da sua graça, guia a igreja para a verdade plena até a vinda gloriosa do seu Senhor…

Por instituição divina, ensinar os fiéis autenticamente, isto é, com a autoridade de Cristo, participada de diversas maneiras, é da competência exclusiva dos Pastores, sucessores de Pedro e dos outros Apóstolos. Por isso também os fiéis não podem limitar-se a ouví-los simplesmente como peritos da doutrina católica, mas estão obrigados a acatar os seus ensinamentos, ministrados em nome de Cristo, com um grau do adesão proporcionado à autoridade de que estes estão revestidos e que ten­cionam exercer…

Embora o sagrado Magistério da Igreja se aproveite da contempla­ção, do comportamento e das investigações dos fiéis, a sua função não se reduz simplesmente a confirmar o consentimento já expresso pelos fiéis; mas, mais do que isto, o mesmo Magistério pode antecipar-se a esse consentimento ou exigí-lo, na explicação e na interpretação da Pa­lavra de Deus escrita ou transmitida de outros modos. O Povo de Deus, aliás, tem necessidade da intervenção e do auxilio do Magistério, parti­cularmente quando no seu selo se levantam e se difundem divergências a respeito de uma doutrina que deva ser acreditada ou professada. Assim as intervenções do Magistério tem por finalidade evitar que, no seu inte­rior, o único Corpo de Cristo venha ã ficar privado da comunhão numa única fé” (texto transcrito da revista REB, vol. 33, setembro de 1973, pp. 693s).

Por conseguinte, quem se professa membro da Igreja Ca­tólica não pode deixar de aceitar o magistério da mesma e o que este ensina como objeto de fé (há, sem dúvida, proposi­ções da Igreja que orientam apenas e não definem propria­mente, ao lado de proposições que têm caráter definitivo e irreformável). Por conseguinte, não será falta de caridade fraterna, mas simples verificação de um fato, dizer-se que se separou da Igreja, ao menos em sua consciência ou em seu íntimo, o cristão que não aceite o magistério da Igreja nos termos atrás assinalados ou recuse professar, por exemplo, a Unidade e Trindade de Deus, Jesus como Deus e Homem, a virgindade da Santa Mãe de Deus, o pecado dos primeiros pais, a morte expiatória e a ressurreição corporal de Jesus, a fundação e a constituição hierárquica da Igreja por obra de Jesus, a real presença de Cristo na Eucaristia, a existência dos anjos… Tais proposições, entre outras, integram o depó­sito da Revelação confiado por Deus á sua Igreja; esta as transmite aos fiéis em nome do próprio Deus.

Como se compreende, nem todas as verdades da fé são da mesma pujança e importância; dentre elas, algumas são primordiais (assim, as que se referem ao mistério da vida divina e ao seu plano salvifico realizado em Cristo), a ponto de servirem de esteio ou ilustração para outras verdades da fé (a existência dos anjos, o culto dos santos…). É o que diz o citado documento da S. Congregação para a Doutrina da Fé publicado aos 5/VII/73:

“Existe certamente uma ordem e uma como que hierarquia dos dog­mas da igreja, dado que é diverso o nexo dos mesmos com o fundamento da fé. Esta hierarquia, porém, significa apenas que alguns desses dogmas se fundam sobre outros, como principais, e por eles são ilumi­nados. Mas os dogmas todos, porque revelados, devem ser igualmente acreditados com uma mesma fé divina” (REB, vol. 33, setembro de 1973, pp. 895s).

Também se coloca em contradição ao magistério da Igre­ja quem adere a posições filosóficas relativistas, agnósticas, modernistas, … recusando a existência de verdades e normas absolutas, rejeitando a espiritualidade da alma e o livre arbítrio, ou ainda a possibilidade de se reconhecer Deus mediante a razão humana.

Está igualmente em oposição ao magistério da Igreja e separado desta (ao menos interiormente) quem entende a re­novação e atualização da Igreja em nossos tempos como revo­lução em sua estrutura hierárquica, como transformação da fé em cosmovisão humanitária, como troca do culto de Deus na liturgia por ação social, em suma,… quem professa a inter­pretação dos valores transcendentais segundo critérios mera­mente imanentistas, como faz a «teologia da morte de Deus exposta em PR 99/1968, pp. 101-110; 103/1968, pp. 282-291; 112/1969, pp. 137-147; 115/7969, pp. 275-286.

Todavia a exigência de se conservarem os valores essen­ciais do Cristianismo nos termos atrás propostos nada tem que ver com estagnação ou imobilismo; como foi dito, toda estagnação de valores vivos significa ruína e morte. Para que o Cristianismo seja fiel a Cristo e autêntico, exige-se outrossim que esteja aberto às novas interpelações dos tempos e procure tirar de sua virtualidade as respostas adequadas àquelas.

É por isto que não se poderia deixar de acrescentar aqui

um novo subtítulo:

2.2. Elementos mutáveis

Distingamos o setor das verdades da fé e o da disciplina da Igreja.

2.2.1. Verdades da fé

No tocante às verdades da fé, não se pode conceber que se multipliquem ou que se proclamem novos artigos de fé, visto que a Revelação Divina se encerrou com Cristo e a ge­ração dos Apóstolos. Todavia pode-se e deve-se desejar que sejam mais e mais penetrados e esclarecidos mediante a me­ditação e o estudo dos cristãos. É o que afirma o Concílio do Vaticano II em sua Constituição sobre a Divina Revelação:

“A Tradição, oriunda dos apóstolos, progride na Igreja sob a assistência do Espírito Santo; cresce, com efeito, a compreensão tanto das realidades como das palavras transmitidas, seja pela contemplação e o estudo dos que crêem, os quais as meditam em seu coração (cf. Lc 2,19.51), seja pela intima inteligência que experimentam das coisas espirituais, seja pelo precônio daqueles que, com a sucessão do episcopado, receberam o carisma autêntico da verdade. É que a Igreja, no decorrer dos séculos, tende continuamente para a plenitude da verdade divina, até que se cumpram nela as palavras de Deus” (“Dei Verbum” n° 8).

Em nossos dias, sabemos que as ciências naturais (Fisica, Química, Cosmologia… ), as ciências históricas (arqueologia, paleografia, paleontologia…) e a filosofia apresentam novas e novas interrogações à teologia; o mesmo acontece por parte dos ateus e dos fiéis de outras crenças religiosas. Tenham-se em vista as questões referentes à origem do mundo, à sua idade, as dúvidas concernentes à aparição do homem e das raças humanas,… concernentes à história do povo bíblico e às suas relações com a história da civilização (Egito, Assíria, Babilônia…) … Para essas indagações ou objeções, a teolo­gia tem que encontrar em seu depósito a resposta ou a tenta­tiva de solução adequada (na medida em que tais assuntos tocam a fé). Também em relação aos cristãos (católicos, protestantes ou ortodoxos) o teólogo católico tem que exprimir as verdades da fé de maneira lúcida e inteligível para o homem de hoje. Esta tarefa, por certo, não é fácil, pois exige clareza de linguagem tal que não altere em absoluto o sentido das proposições da fé, como lembrava o S. Padre Paulo VI aos bispos do mundo inteiro aos 8/XII/1970:

“Temos que nos empenhar decididamente para que a doutrina de fé conserve o seu pleno conteúdo e o seu significado genuíno ainda que enunciada de modo a poder atingir o espírito e o coração dos homens a quem eia é dirigida”.

Esta exortação de S. Santidade não exclui, por exemplo, que se reconheçam na S. Escritura diversos gêneros literários lá realmente existentes,[6] nem exclui que os teólogos procurem investigar questões a respeito das quais a Igreja não tenha pro­fessado alguma definição (a existência do limbo, a sorte das crianças que morrem sem batismo, a consumação do universo, com céus novos e terra nova, a existência de habitantes em outros planetas… ) nem proíbe que dêem nova ênfase a ver­dades sempre professadas pela Igreja, mas menos realçadas no próximo passado: tais as proposições concernentes ao sacer­dócio comum dos fiéis, à vocação de todos à santidade, ao valor da leitura da Bíblia…

Mas não somente a teologia deve progredir no esclareci­mento das verdades da fé… Também cada cristão há que empenhar-se por adquirir uma fé mais lúcida e consciente. É-lhe necessário estudar mais a fundo as verdades que o Ca­tecismo propõe de maneira esquemática; procure perceber a harmonia dessas verdades no conjunto da Revelação e o signi­ficado das mesmas no mundo de hoje frente a outras corren­tes de pensamento religioso ou filosófico. Não seja a fé um fardo pesado que o cristão arrasta como herança tradicional sem apropriar ou assimilar à sua vida pessoal.

2.2.2. Disciplina da Igreja

Nem tudo o que na Igreja, antes do Concílio do Vatica­no II, era proferido e praticado, pertencia ao imutável depó­sito da fé. Muitas normas disciplinares, jurídicas, litúrgicas eram contingentes; haviam sido concebidas em vista da cul­tura e das necessidades de uma época, de tal modo que, ces­sando tais circunstâncias, poderiam ser retocadas. É por isso que nos últimos decênios vimos assistindo a mudanças na orga­nização, na disciplina e no Direito da Igreja: tenham-se em vista a instituição das Conferências Episcopais, dos Sínodos Pastorais, dos Conselhos pastorais diocesanos, as transforma­ções na arquitetura das igrejas (altar-mor de frente para os fiéis, poucos altares laterais, menos imagens de santos), na liturgia (introdução do vernáculo, participação mais intensa dos fiéis), as celebrações ecumênicas (orações, leituras, e pre­gações sem Eucaristia. ..) .

Sabemos quanto essas inovações têm interessado os fiéis católicos e não católicos, não raro dividindo os ânimos; en­quanto alguns só aceitam tais reformas, outros só aceitam tais outras; alguns as julgam precipitadas demais, outros as têm por lentas e morosas…

Na verdade, cada uma dessas inovações, considerada em si mesma, não afeta o essencial da Igreja e da sua mensagem. Por que então tanto dividem os fiéis, provocando por vezes acirradas divergências?

A razão disto é que não raro essas inovações vêm a ser a expressão de novas atitudes de espírito, que através de tais práticas tendem a exprimir-se e difundir-se; assim diversas mentalidades ou concepções se defrontam por ocasião de certas reformas disciplinares. Lembremos, por exemplo, a prática da confissão sacramental, que alguns mestres querem espaçar mais e mais, enquanto outros desejam mantê-la freqüente; a solução dependerá dos conceitos de pecado, reconciliação eclesial, graça sacramental, ascese e mortificação que os mestres tenham em mente[7]… Outro exemplo é a instituição de con­selhos assessores do Sumo Pontífice, dos bispos diocesanos ou dos párocos; envolve de certo modo os conceitos de autori­dade, responsabilidade pessoal, corresponsabilidade comunitária na Igreja, conceito que os mestres nem sempre entendem do mesmo modo… Mais outro exemplo são as inovações na ca­tequese ministrada a crianças e adultos: dependem não so­mente de técnicas pedagógicas modernas muito válidas, mas também de certa filosofia, de certa dosagem de sobrenatural e natural, de teologia e antropologia, que os mestres não rea­lizam sempre identicamente.

2. Que dizer do valor de tais reformas disciplinares e contingentes na Igreja?

Deve-se responder que mudanças meramente disciplinares são necessárias de modo geral ou em tese na Igreja, pois esta é uma realidade viva que existe no tempo e na sociedade; a coexistência da Igreja com as instituições deste mundo exige adaptação das expressões da Igreja para que possa haver diá­logo com o mundo e comunicação dos valores eternos aos ho­mens de nossos dias.

Todavia qualquer inovação, para preencher autenticamente a sua finalidade, deve satisfazer a duas condições: 1) seja lícita; 2) seja oportuna. O respeito a estas duas exigências poderá tranqüilizar os ânimos e evitar as divisões na Igreja.

a) Seja licita… A liceidade de determinada reforma na Igreja dependerá da conformidade da mesma com as leis canônicas vigentes. Assim são lícitos o uso do vernáculo na liturgia, a redução do prazo do jejum eucarístico, a celebra­ção da Missa vespertina (mesmo que a Liturgia do domingo seja antecipada para o sábado à tarde).

Isto, porém, não quer dizer que qualquer alteração do acidental na Igreja seja desejável. Leve-se em conta outros­sim o critério seguinte:

b) Seja oportuna… Para que se proceda à reforma de determinada disciplina na Igreja, é preciso, antes do mais, que se tenha certeza de que os usos vigentes são ineptos ou inadequados e de que se poderão estabelecer em seu lugar outras normas mais consentâneas com a santificação dos fiéis e a missão da Igreja. Diz muito sabiamente a Constituição «Sacrosanctum Concilium» do Vaticano II, referindo-se à Li­turgia: «Não se introduzam inovações a não ser que as exija o autêntico proveito da Igreja» (SC 23).

Caso não se observe este critério, praticar-se-ão reformas levianas, aptas a causar descontentamento e divisões entre os fiéis. Constantes reformas, empreendidas unicamente para sa­tisfazer a um mal entendido «dinamismo dos tempos», sem que exista finalidade que justifique tais alterações, contribuem para a autodestruição da Igreja, à qual se referiu, com exato conhecimento de causa, o S. Padre Paulo VI. Toda reforma na Igreja deverá ser avaliada segundo as suas possibilidades de tornar a avivar a fé, a esperança e o amor nos fiéis, tor­nar o Evangelho mais compreendido e vivido dentro das cir­cunstâncias da época e do lugar em que se deseje introduzir tal reforma. Pode mesmo acontecer que em determinada re­gião em nossos dias uma reforma parcial da disciplina da Igreja se torne necessária para que haja mais fidelidade a Cristo, ao passo que em outra região a mesma reforma será totalmente desaconselhável: assim a entrega da S. Eucaristia nas mãos do comungante pode ter sentido lúcido e positivo em certas regiões, ao passo que poderia ocasionar sacrilégios e profanações em outros ambientes… O uso do hábito clerical ou religioso em certos territórios, em que o ateísmo ou o secularismo impera, não seria recomendável, pois provocaria es­tranheza, se não escárnio, ao passo que em outros territórios o povo cristão pode desejar ver o hábito próprio das pessoas consagradas a Deus.

Quanto à autoridade oficial da Igreja, tem-se-lhe objeta­do ser demasiado conservadora, a ponto de frear indevida­mente o desenvolvimento da vida da Igreja. – Tal objeção, porém, carece de fundamento. Sejam apontadas as numero­sas mudanças empreendidas por iniciativa da Santa Sé tanto na Liturgia como no Direito da Igreja. Registre-se também a paciência com que as autoridades eclesiásticas suportam a exposição de teses chocantes antes de as condenar, ou com que toleram certas injúrias feitas à autoridade na Igreja… A liberdade de que têm usufruído os teólogos vem ocasionando não somente o pluralismo teológico, mas até mesmo a plura­lidade de teologias, em conseqüência da qual numerosos fiéis estão inseguros quanto à sua fé, arrefecem em seu fervor, a catequese ou o ensino da religião está em crise, etc. É, pois, para desejar que se dê o máximo de atenção às autoridades oficiais da Igreja, a fim de se conservarem os valores essen­ciais do Cristianismo e promover a autêntica evolução de suas expressões, sem prejuízo para a fé e o fervor do povo de Deus.

Em suma, vê-se que o Cristianismo em nossos dias tem de saber associar entre si Tradição e progresso, evitando qual­quer radicalismo ou extremismo. As fórmulas «Somente a tra­dição» e «Somente o progresso» são falsas e nocivas à autêntica missão da Igreja; cedam à fórmula «Tanto a Tradição como o progresso». A teologia muitas vezes repele o «Somente» e lhe substitui o “tanto… como … ”; ela ensina, por exemplo, que depreendemos as verdades da fé não somente da Escritura Sagrada, mas da Escritura, da Tradição e do magistério da Igreja;… que somos santificados não somente pela fé, mas pela fé e as boas obras… Conseqüentemente ela apregoa: leve-se em conta não somente a Tradição, mas tam­bém o progresso e a evolução dos tempos, de modo que as perenes verdades do Cristianismo possam ser encarnadas, transmitidas e vividas dentro das circunstâncias próprias de cada época da história!

***

____

NOTAS:

[1] “A favor ou em contrário do Cristianismo de Tradição”.

[2] Dizia Jesus: “Nisto reconhecerão todos que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros… Assim como eu vos amei, também vós deveis amar uns aos outros” (Jo 13,34s).

[3] Falamos de erro objetivo, erro de matéria ou de conteúdo.

[4] Dizia o Imperador Lotário (840-855): “Tempora mutantur, nos et mutamur In illis. – Os tempos mudam, e nos mudamos imersos neles”.

[5] “Jesus crescia em sabedoria, em estatura e em graça diante de

Deus e dos homens” (Lc 2,52).

[6] Em conseqüência, explicam-se os primeiros capítulos do Gênesis (referentes à criação do mundo, do homem, da mulher, ao paraíso. ao dilúvio, à torre de Babel…) de maneira diversa da clássica. Tal mudança exegética não somente é lícita, mas é necessária para se guardar fidelidade , ao texto original e não lhe atribuir o que o autor sagrado não quis dizer.

[7] Seja lícito acrescentar que a Santa Sé, com boas razões, insiste em que a confissão sacramental (auricular) amiudada tem pleno sentido e muito se recomenda como meio de tender à perfeição espiritual.