Igreja, críticas: sexo na Igreja

Em síntese: A revista ISTO É, em sua edição de 16/8/00, publicou longa reportagem sobre transgressões sexuais por parte de padres e freiras. Tais fatos impressionam, mas hão de ser considerados à luz do Evangelho, onde o Senhor conta a parábola do joio e do trigo (Mt 13, 24-30.36-43): o joio é semeado pelo inimigo no campo do Senhor; mas o patrão da parábola não quer que seja arrancado antes do dia da messe. Assim o Senhor permite a permanência do joio na sua Igreja com finalidades providenciais. Em conseqüência deve-se dizer que uma Igreja ideal em que não haja expressões da fragilidade humana não é a Igreja de Cristo; esta terá sempre em seu bojo pecadores, mas nem por isto deixará de ser fonte inesgotável de santidade para quantos participem dos seus sacramentos e da sua vida. Tal verdade é ilustrada outrossim pela distinção entre Pessoa e pessoal da Igreja: a Pessoa é o que São Paulo chama “a Esposa de Cristo sem mancha nem ruga” (Ef 5, 25-27), ao passo que o pessoal da Igreja são os filhos da Igreja, nem sempre fiéis aos preceitos da Mãe Igreja.

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A revista ISTO É, edição de 16/8/00, pp. 53-60, publicou longa reportagem sobre ilícita e escandalosa prática de sexo por parte de clérigos e freiras. Há ai referência ao livro Outros Hábitos da ex-freira Anna França, trechos do Diário de um sacerdote infenso à lei do celibato, menção de sacerdotes egressos que se casaram, notícia de pedofilia, homossexualismo… A leitura de tais páginas pode impressionar o leitor, pois aparece aí uma linguagem baixa, sarcástica e nem sempre muito exata[1]. Os casos relatados merecem reflexão, que passamos a propor.

1. Que diz o Novo Testamento?

No Evangelho encontram-se duas parábolas atinentes ao assunto.

1.1. O joio e o trigo

Em Mt 13, 24-30.36-43 lê-se a parábola do joio e do trigo, que assim pode ser resumida:

Um patrão semeia em seu campo a boa semente ou o trigo. Sobrevém o inimigo, que dissemina joio em meio ao trigo. Quando os servidores do patrão vêem o joio crescer, inquietam-se e propõem ao seu senhor arrancar o joio. Surpreendentemente o patrão o recusa, dizendo: “Não, para não acontecer que, ao arrancar o joio, com ele arranqueis também o trigo. Deixai-os crescer juntos até a colheita. No tempo da colheita direi aos ceifeiros ‘Arrancai primeiro o joio e atai-o em feixes para ser queimado; quanto ao trigo, recolhei-o no meu celeiro'”.

A parábola é muito importante, porque projeta luz sobre o mistério do mal ou da iniqüidade no mundo e na Igreja. O Senhor Jesus não quer que se eliminem os pecadores da sua Igreja; Ele não concebe uma Igreja sem pecadores. Uma comunidade eclesial sem pecadores não seria a autêntica Igreja de Cristo.

Este propósito, surpreendente como é, tem sua explicação: o mal ou o pecado exerce um papel providencial; com efeito, ele deve instigar os bons a ser ainda melhores; é a presença do mal ou do pecado que estimula muitas vezes os justos a ser mais justos. Tal é a conclusão positiva que o bom católico tira dos fatos desastrosos que ele contempla: o trigo deve ser ainda mais trigo; o sal deve ter ainda mais sabor (cf. Mt 5,13), a luz deve ser ainda mais brilhante (cf. Mt 5,14), o fermento há de ser ainda mais forte para levantar a massa (cf. Mt 13, 33). Não se pode negar o escândalo ou o mal quando ocorre, mas importa que o bom cristão não se detenha apenas na constatação dos fatos, mas procure refletir sobre o significado dos mesmos.

1.2. A rede e os peixes

Outra parábola que vem ao caso, é a de Mt 13, 47-50: a rede do Senhor traz à terra peixes bons e maus; somente após terminada a pesca, o Pescador Divino fará a separação de bons e maus. Estes têm que conviver juntos até o fim na mesma rede ou na Igreja do Senhor.

A mensagem do Evangelho assim concebida é aprofundada por São Paulo.

1.3.A Pessoa da Igreja

Em Ef 5, 25-27 lê-se:

“Cristo amou a Igreja e se entregou a ela, a fim de purificá-la com o banho da água e santificá-la pela Palavra, para apresentar a si mesmo a Igreja gloriosa, sem mancha nem ruga ou coisa semelhante, mas santa e irrepreensível”.

São Paulo aí fala da Igreja Esposa de Cristo e, por isto, santa; é o que se poderia chamar “a Pessoa da Igreja”. Essa Esposa santa é Mãe, Mãe de filhos nem sempre fiéis aos preceitos de sua Mãe; tais são os católicos, que constituem a face visível da Igreja; vêm a ser o que se chama “o pessoal da igreja”.

Na Igreja, portanto, existem a Pessoa (o elemento santo, indefectível, porque Cristo lhe assiste infalivelmente) e o pessoal (as criaturas que, tendo recebido o Batismo, se esforçam, com maior ou menor empenho, por corresponder à beleza da sua Mãe).

Conseqüentemente, quem vê falhas na Igreja (elas podem ser mesmo muito notórias), não as atribua sem mais à Igreja, mas impute-as ao pessoal ou aos filhos da Igreja, sujeitos à fragilidade humana. Apesar de tudo, a Mãe Igreja continua a ser santa e fonte inextinguível de santidade para quantos a procuram em seus sacramentos e sacramentais. A história da Igreja revela tal paradoxo através dos séculos, paradoxo que não impede seja a Igreja até hoje a consciência viva da humanidade, portadora da palavra da sabedoria que o Senhor lhe comunica para que a apregoe ao mundo.

A distinção entre Pessoa e pessoal da Igreja explica por que o Papa João Paulo II, aos 12/03/00, pediu perdão pelos pecados dos filhos da Igreja, e não pelos “pecados da Igreja”. A formulação das preces de perdão foi concebida com precisão, como se pode depreender de quanto está publicado em PR 459/2000, pp. 338-343.

A reflexão se prolongará sob o subtítulo seguinte.

2. Santidade e Pecado na Igreja

2.1. Conforme a Escritura

Os membros da Igreja santa têm a obrigação de levar uma vida santa ou isenta de pecado: “Sede santos, porque eu sou santo” é norma do Antigo Testamento, que ressoa no Novo:

“Como é santo aquele que vos chamou, tornai-vos também santos em todo o vosso comportamento, porque está escrito: ‘Sede santos, porque eu sou Santo’ (Lv 17, 1)” (1Pd 1, 15s)

O cristão é chamado a ser, por todo o seu teor de vida, uma hóstia santa e agradável a Deus; a vida do cristão é um culto, cuja lei é a pureza:

“Exorto-vos, irmãos, pela misericórdia de Deus a que ofereçais vossos corpos como hóstia viva, santa e agradável a Deus; este é o vosso culto espiritual” (Rm 12, 1).

Assim a Igreja é a comunidade dos santos, ou seja, de pessoas consagradas e pertencentes a Deus pelo batismo e que se esforçam por viver fielmente a sua consagração batismal e a sua qualidade de membros do Corpo de Cristo.

A Igreja nascente era muito exigente no tocante ao teor de vida dos seus fiéis. Todavia desde os tempos dos Apóstolos se registravam desvios dessa vocação sublime: tal foi o caso do incestuoso de Corinto (1Cor 5, 5), o do homem que injuriou Paulo (2Cor 2, 5-11), o dos apóstatas (Hb 6, 4-8; 10, 26-31). O Apóstolo aplicava sanções, até mesmo a excomunhão, aos delinqüentes, a fim de os trazer de volta ao bom caminho (cf. 1Cor 5, 3-5; 2Cor 2, 6-8).

Quem percorre os escritos do Novo Testamento, verifica que já no tempo dos Apóstolos havia graves falhas morais nas respectivas comunidades (cf. Gl 1, 6; 3, 1; 5, 4); o Apocalipse, cc. 2 e 3, censura severamente o esfriamento do fervor inicial. Isto se compreende bem se se leva em conta a pregação do próprio Cristo: a parábola do joio e do trigo (Mt 13, 24-30), a da rede que capta peixes bons e maus (Mt 13, 47-50); só no fim dos tempos será feita a definitiva separação de bons e maus.

Apesar de tudo, houve nos primeiros séculos tendências rigoristas, que não admitiam o perdão dos graves pecados da apostasia, do homicídio e do adultério; assim pensavam Tertuliano (+220 aproximadamente), Novaciano (+225 aproximadamente), os donatistas nos séculos IV e V. S. Agostinho (+430) disse a respeito a palavra final, lembrando a parábola do joio e do trigo; a Igreja não consta apenas de Santos; ela inclui também os pecadores entre os seus membros, como o joio existe ao lado do trigo no mesmo campo.

Estes fatos iniciais da história da Igreja tiveram significado definitivo. A Igreja reconhece ser indefectivelmente santa, porque é o Corpo de Cristo prolongado, mas ela tem filhos pecadores, que ela carrega em seu bojo e para os quais ela traz os meios de reconciliação, entre os quais o sacramento da Penitência.

2.2. Fala a Teologia

A Igreja é santa, porque indissoluvelmente unida a Cristo, que nela habita e por ela age. Todavia essa santidade não atinge igualmente todos os membros da Igreja, que, mesmo depois do Batismo, trazem em si resquícios do velho homem ou do paganismo. O fato de que Cristo habita na Igreja distingue do povo de Deus do Antigo Testamento o novo povo de Deus; com efeito, a Igreja não é apenas a soma de seus membros humanos; ela é o Cristo prolongado, revestido da face humana de seus membros.

A dialética entre santidade e pecado na Igreja se exprime por diversas fórmulas:

“A Igreja não existe sem pecadores, mas ela mesma é sem pecado” (Charles Journet, L’Église du Verbe Incarné, II, Paris, 1954, p. 904).

Jacques Maritain distingue na Igreja a pessoa e o pessoal. A pessoa é o sujeito-Igreja unida a Cristo como Corpo Místico ou Esposa indefectível; o pessoal seriam os membros da Igreja, sujeitos à fragilidade humana[2]. O pensamento é assim desenvolvido, com outras palavras, por Maritain:

“Os católicos não são o Catolicismo. As falhas, as lerdezas, as carências e as sonolências do católico não comprometem o Catolicismo… A melhor apologética não consiste em justificar os católicos quando erram, mas, ao contrário, em caracterizar esses erros e dizer que não afetam a substância do Catolicismo e só contribuem para melhor trazer à tona a força de uma religião sempre viva apesar deles… Não nos considereis a nós, pecadores. Vede, antes, como a Igreja sana as nossas chagas e nos leva trôpegos para a vida eterna… A grande glória da Igreja é ser Santa com membros pecadores” (Religion et Culture, Paris, 1930, p. 60).

Em conseqüência, afirma-se, com razão, que as fronteiras da Igreja não passam em torno dos países pagãos, mas passam no íntimo de cada cristão, onde há uma porção já cristianizada e uma faixa ainda pagã, que se exprime no pecado.

Aprofundando um pouco mais, diremos: é certo que não se pode atribuir à Igreja como tal o pecado, como se ela cometesse o pecado; sujeito do pecado só pode ser uma pessoa individual. Ela consta de seres humanos na sua realidade histórica, que são pecadores: são membros da Igreja, mas o pecado que eles cometem não brota do bojo da Igreja nem é ensinado pela Igreja, que, ao contrário, o combate. Por isto na Igreja existe a Penitência como remédio para o pecado. É o que diz a Constituição Lumen Gentium nº 8:

“Enquanto Cristo santo, inocente, imaculado (Hb 7, 20), não conhece o pecado (2Cor 5, 21), mas veio para expiar os pecados do povo (Hb 2, 17), a Igreja, reunindo em seu próprio seio os pecadores, ao mesmo tempo santa e sempre na necessidade de purificar-se, busca sem cessar a penitência e a renovação”.

Em sua encíclica Mystici Corporis Pio XII exorta os fiéis a amar a Igreja, servindo-se de palavras muito calorosas:

“Julgamos conforme à nossa missão pastoral estimular as almas a amar esse Corpo Místico com uma caridade tão ardente que se traduza não somente em pensamentos e palavras, mas também em obras…

Com efeito; nada se pode conceber de mais glorioso, mais nobre, mais honroso do que pertencer à Igreja Santa, Católica, Apostólica e Romana, pela qual nos tornamos membros de um Corpo tão santo, somos dirigidos por um chefe tão sublime, somos penetrados por um único Espírito divino, enfim somos alimentados, neste exílio terrestre, por uma só doutrina e um só Pão celeste até que finalmente tomemos parte da única e eterna bem-aventurança nos céus” (nº 90).

“Não basta amar esse Corpo Místico por causa da sua Cabeça Divina e dos celestes privilégios que são o seu apanágio; é preciso amá-lo igualmente com ardor eficaz tal como se manifesta em nossa carne mortal, constituído, como é, por elementos humanos e débeis, mesmo se estes, por vezes, são indignos do lugar que ocupam nesse Corpo venerável” (nº 91).

Por sua vez, no Credo do Povo de Deus escreve Paulo VI:

«A Igreja é santa, não obstante compreender no seu seio pecadores, porque ela não possui em si outra vida senão a da graça; é vivendo de sua vida que os seus membros se santificam; e é subtraindo-se à sua vida que eles caem no pecado e nas desordens que ofuscam o brilho da sua santidade. É por isso que ela sofre e faz penitência por estas faltas, tendo o poder de curar delas os seus filhos, pelo Sangue de Cristo e pelo dom do Espírito Santo».

3. “Minha Igreja”

Em seu livro “Minha Igreja”, o grande teólogo Frei Boaventura Kloppenburg tece valiosas considerações sobre o paradoxo da Igreja divino-humana:

«Bem sabemos por experiência própria, uns mais, outros menos, e alguns até com sofrimento e amargura, que a Igreja visível foi confiada a homens que, todos eles, sem exceção, nasceram em pecado original, e que suas seqüelas continuaram neles também depois do Batismo e de outros sacramentos, inclusive da Ordem em seu mais alto grau. Entre os doze apóstolos que o Senhor escolhera a dedo, um (quase 10% do total) se tornou traidor; outro, que depois seria o chefe, o negou; e os demais se dispersaram quando o Senhor foi preso. Deixaram-no sozinho e sem defesa. São os elementos humanos da Igreja para provar nossa fé nas vicissitudes da vida. Mas podemos constatar que, em nossos dias, a grande maioria dos que estão à frente da Igreja são pessoas excelentes, razoavelmente bem formadas e cuidadosamente preparadas. Porém são apenas instrumentos vivos e oxalá sempre afinados da Igreja, mas não são a parte principal de minha Igreja. Se ela fosse só isso, não lhe daria minha vida, nem ela mereceria meu desinteressado amor.

É ilusório afirmar que queremos Cristo, não a Igreja. Cristo e a Igreja são de fato inseparáveis. Crer em Cristo significa aceitar o que ele ensinou, instituiu e mandou. Jesus podia ser duro e exigente, como na sinagoga de Cafarnaum (cf. Jo 6, 59-70). Se queremos apenas Cristo, mas não sua Igreja, que faríamos com tão grande número de textos inspirados do Novo Testamento (o NT escrito não é constituído apenas pelos quatro Evangelhos) que nos falam precisamente da Igreja e de sua necessidade? Quem nos daria os Sacramentos que o Senhor nos deixou? Que fariam os Apóstolos que Jesus convocou, nomeou e enviou? O NT nos apresenta a Igreja como Corpo de Cristo ou sua Esposa. Pretender um Jesus sem seu Corpo seria como querer uma Cabeça sem Corpo ou um Esposo sem Esposa.

Querer Cristo sem a parte visível e social de sua Igreja seria ignorar a missão de Jesus e a natureza da Igreja. Mas ver na Igreja de Cristo (a “minha Igreja”, disse o Senhor) só o elemento perceptível e humano, seria desconhecer o Verbo que se fez carne e habitou entre nós; e seria não reconhecer precisamente aquilo que foi estabelecido por Deus Pai para ser na terra o sacramento do Filho Unigênito e o instrumento do Espírito Santo» (p. 13).

O autor tece um paralelo entre o mistério da Encarnação e o da Igreja:

«A natureza humana de Jesus é… o sacramento ou o sinal e o instrumento do Filho Único e da salvação que ele traz. O Logos como tal, ou a natureza divina encarnada em Jesus de Nazaré, era invisível para os que viviam ou estavam com ele. Tão invisível que seus adversários o mataram. Se o tivessem reconhecido, “não teriam crucificado o Senhor da glória” (1Cor2, 8). O que se via ou percebia era sua natureza humana, em tudo igual à nossa, que ocultava sua natureza divina, indiscutivelmente a parte mais importante do Senhor; mas unicamente reconhecível e amável à luz da fé. Porém, sem a natureza humana de Jesus não teríamos nem a Encarnação nem a Redenção. É uma atrevida analogia que nos pode ajudar a conhecer as dificuldades de nossas relações de afeição e amor com a Igreja, também ela, como no caso do Verbo Encarnado, simultaneamente humana e divina, com o elemento divino tão bem escondido que pode ser ignorado ou até desprezado, como de fato também se deu com o Senhor Jesus» (p. 14).

4. O celibato voluntário

Na mesma obra, Frei Boaventura apresenta o significado do celibato:

«À doutrina do matrimônio restaurado (Mt 19, 1-10), Jesus acrescenta um discurso misterioso, que declara até ser incompreensível sem um dom de Deus e que parte de uma situação nova suscitada pela vinda do Reinado de Deus: os que resolveram permanecer solteiros ‘por amor do Reino dos céus’. Com esta recomendação Jesus não critica o casamento, mas abre perspectivas para uma exceção não obrigatória: certas pessoas ficam de tal modo empolgadas pelo Reino de Deus que resolvem não casar para poderem dedicar-se mais generosamente à sua causa. Quando se refere positivamente aos que decidiram permanecer solteiros por amor de Deus, Jesus faz certamente uma afirmação autobiográfica: ele mesmo era um exemplo de ‘solteiro por amor do Reino de Deus’, isto é: para uma total dedicação ao Reino.

São Paulo, outro solteiro por amor ao Reinado de Deus, declara por isso: ‘Quisera que todos os homens fossem como eu: mas cada um recebe de Deus o seu dom particular: um deste modo; outro daquele modo’ (1 Cor 7, 7). Pouco adiante explica: ‘Quem não tem esposa, cuida das coisas do Senhor e do modo de agradar ao Senhor. Quem tem esposa, cuida das coisas do mundo e do modo de agradar à esposa, e fica dividido. […] Digo-vos isso em vosso próprio interesse, não para vos armar ciladas, mas para que façais o que é mais nobre e possais permanecer junto ao Senhor sem distração’ (1 Cor 7, 32-35). Por isso, ele se considera um ‘segregado para o Evangelho’ (Rm 1, 1).

A renúncia ao matrimônio é, pois, testificada no Novo Testamento como autêntica, elevada e santa possibilidade da existência cristã. Porém, quando anunciou o ideal do celibato por amor de Deus, Jesus declarou também que ‘nem todos são capazes de compreender estas palavras, mas só aqueles a quem é concedido’. Com razão já se disse que o celibato é um capítulo que não pode ser ensinado na cátedra, nem transmitido com belos discursos, ou mediante conversas habituais das reuniões de padres: ele permanece uma parte da teologia que se ajoelha e reza.

Procurar primeiro o Reino de Deus e sua santidade (Mt 6, 33) vale para todos; alguns, porém, terão a missão de, em santa ousadia e dedicação, irem ao extremo de renunciar ao seu destino humano de plena realização sexual. Estará assim desimpedida toda a força vital do homem para se dedicar ao serviço de Deus e de seu Reinado. São os que receberam o dom de ‘compreender’ o valor daquela renúncia. E, mais que entender, de engajar-se nesta outra vocação. Sem tal compreensão prévia, ninguém estará talhado para tão generosa abdicação. A palavra de Jesus fica pairando como que a meio-termo, apelando a ouvintes atentos: “quem for capaz de entender; entenda…” (Mt 19, 12). A vida da Igreja atesta através dos séculos que tão nobre ousadia continuamente se vai realizando. Também em nossos dias, com mais de um milhão de vocacionados que atenderam ao chamado.

«Como conciliar esta livre opção pelo celibato cristão com a conhecida lei do celibato para o ministério sacerdotal na Igreja Católica? Trata-se, na verdade, de duas vocações (ao celibato e ao ministério) que, embora distintas, se complementam mutuamente a serviço do Reinado de Deus. O sentido da lei do celibato é este: só serão ordenados padres os que fizerem uma autêntica e responsável opção pessoal e livre pelo celibato cristão. Por esta lei eclesiástica não se quer que os padres renunciem ao casamento, mas que celibatários voluntários por amor de Deus possam ser ordenados presbíteros…

É certo que há padres com problemas por causa do celibato, como há gente casada com conflitos por causa do matrimônio. Mas ter problemas faz parte da vida. E em qualquer profissão é preciso cumprir árduos deveres e suportar a monotonia do cotidiano. O pó da rotina atinge tudo… Não são poucos os casamentos que malograram e terminaram em adultério. A dor e o contratempo fazem parte da vida humana. Nesta terra, toda sinfonia permanece inacabada. Padres que procuraram evasão no matrimônio não demoraram em descobrir que, para não fracassarem também no casamento, tinham que praticar virtudes com as quais poderiam ter feito de seu celibato uma vida cheia de sentido humano e de amor a Deus e ao próximo» (pp. 177s).

5. A Igreja Santa

O mal faz sempre grande alarde; é o escândalo que corre de boca em boca. Ao contrário, o bem é discreto e, muitas vezes, invisível. Todavia neste ano jubilar o Santo Padre João Paulo II houve por bem celebrar os mártires do século XX, vítimas do comunismo, do nacional-socialismo, da maçonaria, das etnias africanas… A investigação efetuada nos diversos países do mundo chegou a averiguar um total de 12.782 mártires assim distribuídos:

Os continentes que mais testemunharam com sangue

Continente – Mártires

Europa – 8.760

Ásia – 1.706

Ex-Urss – 1.111

África – 746

Américas – 333

Oceania – 126

Total – 12.782

Categorias dos mártires do século 20

Leigos – 2.441

Clero diocesano – 5.343

Religiosos(as) – 4.872

Bispos – 126

Total – 12.782

Fonte: Fídes e Avvenire

A lista não está completa. Os números reais são mais elevados. Por isto ainda estão sendo feitas pesquisas para apurar o martírio de muitos fiéis anônimos, que morreram nos campos de concentração e alhures, não por motivos políticos, mas por sustentarem intrepidamente a sua fé. – No domingo 7 de maio pp. [2000] junto ao Coliseu o Santo Padre presidiu à solene comemoração dos mártires do século XX, que, como se pensa, são mais numerosos do que os que morreram pela fé em dezenove séculos do Cristianismo.

Estes fatos honram a Igreja e tornam santamente ufanos os fiéis católicos, que tomam consciência de pertencer a uma família de heróis e grandes Santos. Verifica-se assim que as sombras na face humana da Igreja não definem essa instituição, pois há muitos pontos brilhantes nessa mesma face. A Igreja é indefectível fonte de santidade, que pode chegar a quem a procura sinceramente.

6. Conclusão

São estas algumas ponderações aptas a projetar luz sobre os fatos relatados pela revista ISTO É. Os acontecimentos parecem exigir, da parte da autoridade da Igreja, grande vigilância para que não se repitam os casos e, da parte dos fiéis, uma tomada de consciência de que são vasos comunicantes, de modo que, se algum vaso é carente, os outros vasos hão de se encher de mais valores espirituais para os fazer transbordar sobre os vasos ou os irmãos carentes. As falhas de uns interpelam os outros e pedem-lhes mais santidade a fim de suprir as lacunas abertas pelo pecado.

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NOTAS:

[1] Por exemplo, à p. 56 diz o texto da revista que o celibato só se tornou obrigatório no século XVI por obra do Concílio de Trento. – A realidade é um tanto diferente. Com efeito; é de notar que, desde os primeiros séculos, o celibato foi abraçado espontaneamente pelos clérigos. O Concílio regional de Elvira (Espanha), por volta de 306, foi o primeiro a promulgar tal praxe em âmbito regional; no decorrer dos séculos subseqüentes, Concílios regionais confirmaram o celibato dos clérigos. O Concílio Geral de Latrão I em 1123 não criou a lei do celibato, mas apenas corroborou a legislação vigente nas diversas regiões da Igreja, usando os seguintes termos: “Proibimos expressamente aos presbíteros, diáconos e subdiáconos viver com concubinas e esposas, como coabitar com outras mulheres. Excetuam-se apenas aquelas com as quais o Concílio de Nicéia permitiu habitar unicamente por motivo de necessidade, a saber: mãe, irmã, tia paterna e outras a respeito das quais não pode haver suspeita”. As decisões do Concílio de Latrão I foram confirmadas pelo Papa Calisto II. Assim já no século XII o celibato tornou-se obrigatório para clérigos da Igreja inteira, não por motivos sócio-econômicos, como alega Eduardo Cruz em ISTO É (p. 59), mas pelos motivos bíblicos assinalados às pp. 492s deste artigo.

[2] Ver Jacques Maritain, A Igreja de Cristo. A Pessoa da Igreja e seu Pessoal. Ed. Agir; Rio de Janeiro, 1972.