Igreja, origem: a igreja e seus modelos

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 240/1979)

por Avery Dulles S. J.

Em síntese: O livro de Avery Dulles expõe cinco concepções de Igre­ja propostas por teólogos dos últimos decênios (fazendo eco, alguns, a anti­gas tradições):

– o modelo institucional, decorrente da organização jurídica da Igreja;

– o modelo místico, que realça a comunhão de amor dos fiéis com Deus e entre si;

– o modelo sacramental, que põe em foco a face sensível e humana da Igreja como sinal que exprime e comunica a vida do próprio Deus;

– o modelo querigmático, que focaliza a Igreja como arauto da Pa­lavra de Deus;

– o modelo diaconal, que considera a Igreja como servidora e pro­motora da justiça, da paz e da fraternidade entre os homens.

A. Dulles julga sabiamente que nenhum desses modelos esgota o con­teúdo da realidade da Igreja, que, em última análise, é um mistério ou algo de transcendental. Para aproximar-se dessa realidade transcendental, o es­tudioso deve combinar entre si os aspectos válidos de cada qual das eclesio­logias apontadas, dando especial ênfase ao modelo sacramental. A Igreja de Cristo realiza simultaneamente os cinco enfoques indicados, sendo, porém, que nenhum destes pode ser aceito de maneira exclusiva e irrestrita.

A Igreja de Cristo assim caracterizada subsiste, de maneira plena, na Igreja Católica Romana; há, porém, elementos da mesma verdadeira Igreja nas comunidades cristãs (protestantes e ortodoxas orientais) separadas de Roma. Estas vêm a ser realizações incompletas ou parciais da única Igreja de Cristo, tendentes a realizar em si de maneira plena ou consumada o mo­delo da verdadeira Igreja.

O livro de A. Dulles se recomenda por sua capacidade de sintetizar elementos diversos e múltiplos. Ajuda a clarear conceitos. Todavia não se devem separar do respectivo contexto as suas afirmações sob pena de falsi­ficar o pensamento do autor, que é lúcido e equilibrado.

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Comentário: Há livros que merecem especial atenção por­que abordam assuntos importantes de maneira original. É o que acontece com a obra do teólogo jesuíta norte-americano: “A Igreja e seus modelos”.[1] – A Igreja é um dos temas mais focali­zados na Teologia do pós-Concílio, de modo que a bibliografia respectiva é muito vasta. Ora o autor em pauta leu boa parte desses estudos e procurou sistematizar as suas linhas em esque­mas ou modelos, oferecendo assim ao leitor sínteses interessan­tes e perspectivas panorâmicas, que lhe facilitam conhecer diver­sas teses sobre a Igreja correntes em nossos dias.

Eis por que vamos, a seguir, procurar apresentar o conteú­do do livro de Dulles, acrescentando algumas observações à sua exposição.

1. O conteúdo do livro

O autor começa registrando as divergências existentes entre conservadores e progressistas na Igreja: enquanto os primeiros se preocupam com mudanças ocorrentes após o Concílio, outros as aplaudem e mais outros julgam que ainda não são suficientes.

Por que este fenômeno?

– Em parte, porque cada grupo de cristãos tem em mente determinada concepção ou determinado modelo[2] de Igreja. Ca­da um desses modelos tenta, de alguma forma, ilustrar o que se­ja a Igreja. Esta, porém, não “cabe” dentro de modelo algum mas ultrapassa, em sua realidade, qualquer tentativa de esque­matização, visto que é um mistério… mistério inserido no gran­de mistério das cartas paulinas. Para S. Paulo, sim, “mistério é o plano divino de salvação que se realizou concretamente na pes­soa de Jesus Cristo” (pp. 13s). O próprio Concílio do Vaticano II utilizou a expressão “O mistério da Igreja” para intitular o

cap. 1 da Constituição sobre a Igreja (“Lumen Gentium”).

Como quer que seja, a teologia se vê obrigada a conceber modelos para falar da profunda realidade da Igreja. Em conse­qüência, A. Dulles julga poder distinguir cinco modelos princi­pais na Eclesiologia contemporânea. Expõe-nos, apresentando seus pontos positivos e negativos:

1.1. Os cinco modelos da Igreja

Cinco são os modelos apresentados por Dulles: Igreja insti­tuição, Igreja comunhão mística, Igreja sacramento, Igreja arau­to, Igreja serva.

1.1.1. A Igreja como instituição

1. A visão institucional concebe a Igreja prevalentemente como sociedade visível; dotada de estruturas jurídicas, com defi­nição de direitos e deveres dos respectivos membros. O aspecto institucional sempre existiu na Igreja; é mesmo imprescindível, para que a Igreja, reunindo em si multidões de homens, hetero­gêneas por suas origens, possa cumprir adequadamente a sua missão.

O interesse pelo caráter institucional da Igreja desenvolveu­-se a partir do séc. XVI quando teólogos e canonistas, responden­do aos reformadores protestantes, se viram levados a acentuar certas características da Igreja que os adversários negavam. S. Roberto Bellarmino (+ 1621), seguindo esta tendência, dizia que a Igreja é, por exemplo, uma sociedade “tão visível e palpá­vel como a comunidade do povo romano ou o Reino de França ou a República de Veneza” (De controversiis, tomo 2, lib. 3, cap. 2, Giuliano, Nápoles, 1957, vol. 2, p. 75).

O Concílio do Vaticano I (1869/70) devia estudar a seguin­te proposição, que afinal não chegou a ser promulgada pelo Concilio (interrompido abruptamente pela guerra franco-alemã de 1870):

“Ensinamos e declaramos: a Igreja tem todos os sinais de uma verda­deira sociedade. Cristo não deixou esta sociedade indefinida e sem uma forma estabelecida. Ao contrário, ele próprio lhe deu existência, e sua von­tade determinou a forma de sua existência e lhe deu a sua constituição. Não é a Igreja parte ou membro de qualquer outra sociedade e de modo al­gum se confunde com nenhuma outra sociedade. É tão perfeita em si mes­ma que se distingue de todas as sociedades humanas e paira sobre elas”.

Como dito, esta declaração não chegou a ser aprovada.

2. Que dizer a propósito?

a) É inegável que a Igreja precisa de organização jurídica e caráter institucional. Nenhuma sociedade humana dispensa os fatores de boa ordem e administração. Não se deve confundir “institucionalismo (exagero de instituição), que é abusivo, com “caráter institucional, jurídico, administrativo”, que é um fator positivo de harmonia e eficiência.

b) Acontece, porém, que, por força de circunstâncias histó­ricas, a índole institucional da Igreja foi sendo enfatizada com demasiado interesse no séc. XIX.

c) Leve-se em conta que o Concílio do Vaticano II, logo em suas primeiras sessões solicitado a pronunciar-se sobre um modelo institucionalista da Igreja, rejeitou o que lhe foi apresen­tado, classificando-o de “clericalista, juridicista e triunfalista”. Na verdade, a acentuação da nota institucional da Igreja pode le­var ao exagero de se conceber a Igreja como constituída prepon­derantemente de clérigos, aos quais incumbem as tarefas de ensi­nar e dirigir. A Igreja é então facilmente assemelhada a uma pi­râmide, na qual todo o poder desce do Papa aos bispos e sacer­dotes, enquanto na base o povo fiel desempenha papel passivo e parece ocupar posição inferior. Na verdade, porém, todos os membros da Igreja têm os mesmos deveres e direitos fundamen­tais, de modo que o Papa e os bispos, juntamente com os leigos, devem ser contados como fiéis de Deus.

Aliás, o modelo institucional da Igreja nunca foi proposto, de maneira exclusiva, pelos documentos oficiais eclesiásticos; os textos do Concílio do Vaticano I e as encíclicas de Leão XIII e Pio XII, por muito que tenham insistido sobre a Igreja como “sociedade perfeita”, nunca identificaram essa sociedade exclu­sivamente com os seus elementos institucionais, mas sempre se referiram à imagem do Corpo de Cristo e à comunhão com a graça de Cristo.

Eis por que passamos a considerar.

1.1.2. A Igreja como comunhão mística

1. Certos teólogos têm explanado a distinção entre socieda­de (Gessellschaft) e comunidade (Gemeinschaft). Enquanto so­ciedade lembra organização, autoridade, estruturas (como a es­cola, o hospital, o hotel), a comunidade implica relativa intimi­dade entre os participantes, simpatia mútua, solidariedade.. . como ocorrem na família, no lar, na vizinhança (à moda antiga).

Ora, segundo bons autores, a Igreja é prevalentemente uma comunidade. Tal é a tese dos protestantes Rudolph Sohm, Emil Brunner, Dietrich Bonhoeffer, como também dos católicos Arnold Rademacher, Yves Congar, Jêrome Hamer. Rademacher, por exemplo, sustenta que a Igreja é no seu cerne íntimo uma comunidade (Gemeinschaft) e, no seu cerne exterior, uma sociedade (Geselleschaft). A sociedade é a manifestação exterior da comunidade, e a sociedade existe para promover a realização da comunidade. Congar vê na Igreja dois aspectos inseparáveis um do outro: por um lado, é formada de pessoas que se consorciam com Deus e entre si em Cristo (comunidade de salvação ou, em terminologia alemã, Heilsgemeinschaft). Por outro lado, a Igreja também é a totalidade dos meios através dos quais esse consórcio se produz e mantém (institui­ção de salvação, Heilsanstalt, diriam os autores alemães).

A diferença dos protestantes, os autores católicos não rejei­tam o aspecto institucional da Igreja,[3] nem tencionam definir a Igreja simplesmente como comunidade no sentido sociológico de grupo informal. Ao contrário, admitem na Igreja a dimensão vertical e a horizontal: a vertical é constituída pela vida divina desabrochada em Cristo e comunicada aos homens pelo Espíri­to. A horizontal são os elementos exteriores, visíveis e jurídicos que concorrem para exprimir e assegurar a comunhão de vida interior.

É certo que a S. Escritura fundamenta tal perspectiva, pro­pondo a Igreja como um corpo dotado de vários órgãos e anima­do de um princípio de vida divina; cf. Rm 12 e 1 Cor 12, Ef e CI. Os escritores cristãos antigos desenvolveram essa imagem, destacando-se ente todos S. Agostinho. Na primeira metade do séc. XX, quando muito ainda se estudava a estrutura jurídica da Igreja, o jesuíta belga Emile Mersch contribuiu para restaurar a noção de Corpo Místico mediante estudos que se tornaram fa­mosos. Pio XII em 1943, por sua vez, publicou a sua encíclica sobre o Corpo Místico. O Concílio do Vaticano II (1962-1965) quis apresentar a Igreja como povo de Deus, enfatizando assim os aspectos de comunhão de vida, caridade e verdade.

2. Que dizer desse modelo de Igreja?

a) Não há dúvida, a noção de comunhão atinge muito mais o âmago da Igreja do que a da instituição jurídica. Tem sólida fundamentação bíblica e patrística; além do que, corresponde melhor às aspirações do homem contemporâneo, que estima as relações interpessoais e comunitárias.

b) É preciso, porém, que não se exagere o valor do aspecto íntimo e os bens meramente espirituais da vida cristã a ponto de menosprezar o aspecto visível e institucional da Igreja, como tem acontecido principalmente nos chamados grupos de “Igreja subterrânea” (Underground Church), e, quiçá, em algumas co­munidades eclesiais de base: em tais grupos, a aversão a qualquer norma ou instituição tem favorecido o subjetivismo e a arbitra­riedade nas formulações da fé e nas celebrações da liturgia, cau­sando perplexidade em seus membros e levando ao cisma ou à ruptura da Igreja – o que é de todo lamentável. As normas obje­tivas são indispensáveis para evitar o subjetivismo desenfreado e destruidor de “profetas carismáticos”.

Passemos ao modelo subseqüente:

1.1.3. A Igreja como sacramento

1. No intuito de compor entre si os aspectos externos e in­ternos da Igreja, muitos teólogos católicos do séc. XX têm enfa­tizado o conceito de Igreja-sacramento, conceito que também é caro aos escritores antigos S. Cipriano, S. Agostinho…, bem co­mo a S. Tomás de Aquino (+ 1274) e, mais recentemente, a Ma­thias Josef Scheeben (+ 1888).

O jesuíta Henfi de Lubac foi o arauto de tal concepção nos últimos decênios. O divino e o humano na Igreja nunca se po­dem dissociar, argumenta de Lubac. A Igreja é, pois, a continua­ção da Encarnação do Filho de Deus: através de estruturas hu­manas Ela comunica a vida do próprio Deus. A Igreja não é so­ciedade meramente humana, mas em moldes humanos. Ela traz e comunica tesouros da vida divina. O aspecto institucional e ex­terno da Igreja é essencial, porque, sem ele, a Igreja não seria si­nal; não falaria aos homens, que são naturalmente feitos para a linguagem sensível. Todavia o aspecto estrutural não é suficien­te para constituir a Igreja; para ser sacramento, esta deve ser portadora e transmissora da graça ou dos dons transcendentais que enriquecem os cristãos.

2. Que dizer de tal esquema?

a) É realmente apto para unir em síntese o modelo institu­cional e o modelo místico da Igreja. Serve também para relacio­nar a Igreja com o mistério da Encarnação e os sete sacramentos comunicadores da graça; Cristo, Igreja e os sete sinais rituais aparecem assim como etapas do SACRAMENTO ou da comuni­cação de Deus aos homens mediante realidades sensíveis.

Esta concepção dá margem também aos anseios de purifi­cação e conversão que devem caracterizar os membros da Igreja, pois é certo que a Igreja se há de tornar sempre mais eloqüente sinal de Cristo.

Estes títulos positivos explicam tenha o Concílio do Vati­cano II apresentado a Igreja como “sacramento da íntima união com Deus e da unidade de todos os homens entre si” (cf. Const. “Lumen Gentium” n° 1. 9. 48; “Gaudium et Soes” n° 42; “Sa­crosanctum Concilium” n° 26; “Ad gentes” n9 5).

b) Contra tal modelo, porém, há quem objete que não põe suficiente ênfase sobre a missão ou o serviço que toca à Igreja prestar neste mundo. Pode levar a uma atitude de esteticismo narcisista, que dificilmente se concilia com o pleno compromis­so do cristão em favor dos valores éticos e sociais.

Examinaremos agora outro modelo:

1.1.4. A Igreja como arauto

1. Esta perspectiva concebe a Palavra de Deus como ele­mento principal e o sacramento como elemento secundário da Igreja. Vê a esta como assembléia convocada e formada pela Pa­lavra de Deus, tendo como precípua missão a de proclamar o que ouviu e acredita. A fé e a pregação são assim mais valoriza­das do que a comunhão mística, que o segundo modelo põe em relevo.

O principal proponente deste tipo de eclesiologia no séc. XX é o teólogo calvinista Karl Barth, que se inspira em S. Paulo e Lutero: o que constitui a Igreja, afirma, é ser a Palavra procla­mada e fielmente ouvida. A Bíblia, segundo ele, julga a Igreja, concitando-a ao arrependimento e à reforma. Hans Küng, teólo­go católico, segue de perto a eclesiologia de Barth: a Igreja, diz ele, não é algo que esteja fundado uma vez por todas, mas Ela se faz em cada assembléia que se congrega para ouvir a Palavra de Deus e adorar o Senhor. Rudolf Bultmann, por sua vez, adota estas concepcões: para ele, é a Palavra que constitui a Igreja (= ekklesia, convocação), reunindo os homens e formando a congregação. A Igreja está completa em cada congregação local; a Igreja não depende, para existir, de estruturas universais.

2. Que dizer a respeito?

a) Não há dúvida, este modelo realça bem o sentido da mis­são da Igreja, chamada a proclamar a Boa-Nova de Jesus Cristo contra toda idolatria. Leva à humildade, à obediência e ao arre­pendimento, pois a palavra proclamada incessantemente exorta a estas atitudes.

b)Todavia levantam-se dificuldades contra o modelo em foco. Na verdade, o Cristianismo é essencialmente encarnação – Deus que se faz homem -, e não apenas, nem primeiramente, proclamação de Palavra. Cristo não veio apenas trazer uma men­sagem, mas uma vida, que se torna presente e patente na Igreja, Corpo de Cristo prolongado. Ser cristão é ser inserido em Cristo (cf. Rm 6) e comungar na vida do Pai, que se manifestou e co­munica através da humanidade de Jesus.

A Palavra deve levar o cristão a essa inserção sacramental em Cristo, como também há de alimentar essa inserção realiza­da. A palavra, sem sacramentos, faria do Cristianismo uma esco­la de sabedoria e de morigeração, nunca, porém, cumpriria o âmago da missão intencionada por Jesus Cristo, que veio comu­nicar a vida eterna aos homens mediante uma regeneração ou nova natividade.

O Concílio do Vaticano II, por muito que tenha valorizado a Palavra da Escritura, ainda enfatizou mais a presença de Cristo nos sacramentos e, em especial, na S. Eucaristia.

Mais: na concepção católica, o magistério da Igreja não está acima da Palavra de Deus, mas, diga-se bem, é dotado por Cristo de autoridade própria para interpretar a Palavra. Segundo algu­mas correntes protestantes, o magistério da Igreja está sujeito a ser corrigido pela Palavra de Deus tal como é entendida por este ou aquele crente em particular; ao contrário, na concepção cató­lica, os exegetas e estudiosos estão sujeitos ao magistério da Igreja, que goza de especial assistência, da parte do Senhor, para expor e definir o sentido das Escrituras.

Por último, ainda se deve notar que o modelo em foco, en­fatizando excessivamente a missão de pregar, não realça devida­mente a ação que a Igreja deve desempenhar em prol de um mundo mais humano e mais cristão.

Faz-se assim a transição para o quinto modelo:

1.1.5. A Igreja como serva

1. Em todos os modelos até aqui considerados, a Igreja as­sume uma posição primacial ou privilegiada em relação ao mun­do: Deus vem a este através da Igreja e o mundo vai a Deus me­diante a mesma.

Ora no quinto modelo a Igreja aparece qual servidora do mundo. Como Cristo se fez o servidor dos homens, “o homem para os outros”, a Igreja também o deve ser; Ela se assemelha ao bom samaritano, que se inclina para o homem em suas neces­sidades e lhe oferece, com amor, os seus préstimos. Assim pen­sam os protestantes Dietrich Bonhoeffer, Gibson Winter, Harvey Cox, John A. T. Robinson… Entre os católicos, Robert Adolfs escreveu a obra “O túmulo de Deus”, em que desenvolve a no­ção paulina de kénosis (esvaziamento): Jesus “esvaziou-se”, to­mando a condição de servo (cf. FI 2,7). Isto quer dizer, segundo Adolfs, que a Igreja deve esvaziar-se como Cristo, renunciando a todas as reivindicações de poder e honra, para empenhar-se em prol da reconciliação dos homens entre si; Ela deve servir à jus­tiça, à paz, à liberdade, à compaixão… O Concílio do Vaticano II, em sua Constituição “Gaudium et Spes” sobre a Igreja no mundo moderno, declara repetidamente que a Igreja se deve in­teressar pelos problemas da humanidade, compartilhando os in­teresses de todos os povos: assim como Cristo veio ao mundo não para ser servido, mas para servir, a Igreja há de procurar ser­vir ao mundo, fomentando a fraternidade entre os homens (GS n° 3).

2. Que pensar desta eclesiologia de serviço?

a) Por certo, procura dar à Igreja um relevo e uma missão que a põem em diálogo com todos os homens. Se muitos se afas­taram do Catolicismo por julgarem-no alienado e ultrapassado, voltam a considerá-lo com respeito e simpatia por verem-no in­teressado em colaborar na solução dos grandes problemas da hu­manidade. Mais: o esforço dos fiéis católicos por sair de si e ser­vir altruistamente os pobres e oprimidos há de beneficiar os pró­prios católicos servidores dos seus semelhantes.

b) Todavia pode-se observar que tal modelo carece de sóli­da fundamentação bíblica. Embora o Novo Testamento se refira freqüentemente às diakoníai ou serviços que se prestam nas co­munidades cristãs, verifica-se que os escritos neotestamentários dão pouca atenção à ordem temporal; não se preocupam com as estruturas da sociedade, talvez por causa da expectativa de pró­ximo fim do mundo que prevalecia nas primeiras gerações cris­tãs. No Novo Testamento o serviço a ser prestado pelos cristãos é principalmente de caráter pessoal.

Dado, porém, que a Igreja como tal deva contribuir para a instauração de uma ordem sócio-econômico-política mais huma­na, é preciso não identificar toda a missão da Igreja com esse ob­jetivo temporal. Mesmo que a Igreja não consiga debelar os ma­les físicos que acometem a humanidade, a sua missão não está fracassada, pois esta compreende, antes do mais, o anúncio de Jesus Cristo, que, através da cruz e da morte, abriu aos homens o caminho para a casa do Pai. A salvação que a Igreja tem para oferecer ao mundo, não consiste em valores impessoais, mas é, em primeiro lugar, o próprio Cristo, que, conforme 1 Cor 1, 30, se fez “sabedoria, justiça, santificação e redenção” para os ho­mens.

Uma vez expostos ao cinco modelos da Igreja, A. Dulles aborda as concepções de escatologia, ministérios e revelação di­vina mais freqüentes na teologia contemporânea, pois cada uma destas contribui, do seu modo, para completar os diversos mo­delos de Igreja propostos anteriormente.

A explanação das cinco eclesiologias suscita as perguntas capitais: afinal, qual o genuíno modelo de Igreja? E onde se en­contra a verdadeira Igreja de Cristo?

Vejamos como A. Dulles responde sucessivamente a estas interrogações.

1.2. Qual o genuíno modelo de Igreja?

Para esta questão o autor se volta no capítulo final de seu livro, usando de sabedoria notável.

Primeiramente, pondera que cada um dos modelos propos­tos encerra afirmações válidas e importantes:

“O modelo institucional torna claro que a Igreja deve ser uma comu­nidade estruturada e que deve permanecer o gênero de comunidade que Cristo instituiu. Tal comunidade precisa incluir um ofício pastoral dotado de autoridade para presidir o culto da comunidade como tal, para prescre­ver os limites do dissentimento tolerável e representar oficialmente a co­munidade. O modelo comunitário mostra à evidência que a Igreja precisa ser unida a Deus pela graça, e que pela força dessa graça os seus membros devem estar amorosamente unidos uns aos outros. O modelo sacramental nos faz perceber que a Igreja precisa, nos seus aspectos visíveis – especial­mente na sua oração e culto comunitários -, ser um sinal da permanente vitalidade da graça de Cristo e da esperança da redenção que ele promete. O modelo querigmático acentua a necessidade de que a Igreja continue a proclamar o Evangelho e a incitar os homens a porem a sua fé em Jesus, Senhor e Salvador. O modelo diaconal indica a urgência de fazer a Igreja contribuir para a transformação da vida secular do homem e de impregnar a sociedade humana como um todo dos valores do reino de Deus” (p. 221 F.

Todavia não se pode aceitar, de maneira exclusiva e sem restrição alguma, nenhum dos cinco modelos. Tomado isolada­mente, cada qual dos tipos eclesiológicos poderia levar a sérias distorções. Na verdade, cada um dos mesmos afirma facetas au­tênticas da Igreja, mas nenhum abrange adequadamente toda a realidade eclesial, pois esta é um mistério. Para que o estudioso se aproxime tanto quanto possível desse mistério, faz-se mister combinar entre si os cinco modelos, integrando numa síntese harmoniosa tudo que haja de válido em cada um. Mais: essa sín­tese poderá ser feita da melhor maneira, caso se dê ao modelo sacramental uma certa primazia:

“Para incorporar os valores existentes nos vários modelos, o tipo sa­cramental de eclesiologia tem, a meu ver, mérito especial. Preserva o valor dos elementos institucionais porque a estrutura oficial da Igreja lhe confe­re contornos claros e visíveis, de sorte que pode ser um sinal vívido. Preser­va o valor comunitário porque, se a Igreja não fosse uma comunhão de amor, não poderia ser um sinal autêntico de Cristo. Preserva a dimensão da proclamação porque, só confiando em Cristo e rendendo-lhe testemunho, quer seja a mensagem bem acolhida, quer não, pode a Igreja apontar eficaz­mente em Cristo o portador da graça redentora de Deus. Preserva este mo­delo, finalmente, a dimensão do serviço secular, porque sem ele não pode­ria a Igreja ser um sinal de Cristo, o servidor” (p. 225).

De resto, observa muito sabiamente o autor, “somente a iluminação interior do Espírito Santo provê o homem do neces­sário tato e discrição para poder ver tanto os valores como os li­mites dos diversos modelos” (p. 226). Também se deve admitir que em cada fase da história a Igreja dê ênfase a um de seus de­terminados modelos a fim de poder dialogar melhor com os ho­mens de tal época: “O fato de que a Igreja de certo século possa ter sido prevalentemente uma instituição, não impede que a Igreja em outra geração seja sobretudo uma comunidade de gra­ça, um arauto, um sacramento, uma serva” (p. 226).

Quanto ao modelo que a Igreja assumirá no futuro, diz A. Dulles que depende não só da iniciativa dos homens, mas, ainda mais, das livres inspirações do Espírito Santo. Por conseguinte, para desempenhar a sua missão na Igreja, os cristãos devem abrir-se “ao que o Espírito diz às Igrejas” (Ap 2,17). Sob a guia do Espírito, as imagens e formas da vida cristã continuarão a mudar acidentalmente, como mudaram nos séculos passados; is­to será sinal de vitalidade e vigor espirituais. Todavia é preciso lembrar que “o que é novo na Igreja sempre nasce do passado e lança as suas raízes na Escritura e na Tradição” (p. 231). Com outras palavras: toda mudança será o desabrochamento homogê­neo do potencial de riquezas espirituais já contidas na semente da Palavra e da vida lançada por Cristo à terra durante a sua existência mortal. Nenhuma mudança genuína poderá implicar ruptura com as raízes da Tradição cristã ou com a essência da realidade eclesial.

Para terminar, colocamos com A. Dulles a pergunta:

1.3. E qual a verdadeira Igreja?

No decorrer da história, o surto de comunidades eclesiais encabeçadas por profetas diversos levou os cristãos a procurar os critérios que distinguiam das igrejas espúrias a verdadeira e úni­ca Igreja de Cristo.

Principalmente a partir do séc. XVI os teólogos se esmera­ram por enunciar tais notas distintivas da autêntica Igreja: Lute­ro (+ 1546) enumerava sete, ao passo que o cardeal Roberto Be­larmino (+ 1621) compôs uma lista de quinze notas. Contudo permaneceram clássicas através de todos os tempos as quatro notas já enumeradas pelo Credo: a Igreja de Cristo é una, santa, católica e apostólica. Dulles não explana o significado preciso destas notas (nem é o caso de o fazermos aqui). Chama a aten­ção, porém, e muito oportunamente, para a maneira como o Concílio do Vaticano II utilizou as quatro mencionadas caracte­rísticas a fim de definir a Igreja de Cristo. Na verdade, os padres conciliares, na Const. “Lumen Gentium” n° 8, reafirmaram o aspecto visível ou humano e o aspecto espiritual ou divino’ da Igreja de Cristo, dizendo:

“Assim como a natureza assumida pelo Verbo Divino lhe serve de ór­gão vivo de salvação, a Ele indissoluvelmente unido, semelhantemente o or­ganismo social da Igreja serve ao Espírito de Cristo, que o vivifica para fa­zer progredir o corpo místico (cf. Ef 4,16)” (Const. “Lumen Gentium” n° 8).

Logo a seguir, continua o texto conciliar:

“Esta é a única Igreja de Cristo que no Símbolo confessamos una, santa, católica e apostólica e que nosso Salvador depois de sua ressurreição entregou a Pedro para apascentar (Jo 21,17), confiando-a a ele e aos de­mais apóstolos para a propagarem e regerem (cf. Mt 28,18ss), levantando-a para sempre como coluna e fundamento da verdade (1 Tim 3,15). Esta Igreja, constituída e organizada neste mundo como uma sociedade, subsis­te na Igreja Católica, governada pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos em comunhão com ele, embora fora de sua visível estrutura se encontrem vá­rios elementos de santificação e verdade. Estes elementos como dons pró­prios à Igreja de Cristo, impelem à unidade católica” (ib.).

Os comentadores deste texto – e Dulles com eles – obser­vam o emprego propositado do termo “subsiste na Igreja Católi­ca”, em lugar de “é a Igreja Católica”. Note-se que o verbo é se encontrava nas redações iniciais desta passagem, tendo sido in­tencionalmente substituído por “subsiste na Igreja Católica”.

O verbo subsiste, no caso, indica que a Igreja de Cristo se realiza na igreja Católica Romana (governada pelo sucessor de Pedro) e, ao mesmo tempo, permite dizer que, fora da Igreja Católica Romana, se encontram elementos da verdadeira Igreja de Cristo. Com outras palavras: a verdadeira Igreja se realiza plenamente na Igreja Católica Romana e parcial ou incompletamente em ca­da denominação cristã (protestante ou ortodoxa) que contenha algum ou alguns dos elementos constitutivos da Igreja de Cristo. Vê-se, pois, que o modelo da Igreja de Cristo se realiza dentro dos moldes das comunidades cristãs em graus diversos: dentro da própria Igreja Católica Romana, se existem todos os elemen­tos divinos constitutivos da Igreja, pode haver maior ou menor fidelidade dos católicos a esses elementos divinos; pode haver, sim, uma face humana ora mais ora menos fiel à santidade in­trínseca ou divina da Igreja de Cristo. Assim a própria Igreja Ca­tólica Romana é chamada a renovar constantemente o seu sem­blante humano, a fim de não trair a presença de Cristo que ela deve transmitir ao mundo.

Eis, em grandes linhas, as teses do livro de Avery Dulles que nos propusemos apresentar. Resta dizer uma palavra de re­flexão sobre os méritos dessa obra.

2. Avaliando a obra…

O estudo de Dulles nos sugere três considerações principais:

1) O autor goza de notável capacidade de esquematizar ou de compreender elementos múltiplos e diversos em síntese har­moniosa. Isto torna a leitura do livro profícua e esclarecedora. Precisamos de sínteses, que relacionem entre si elementos dos quais vamos tomando conhecimento isoladamente, sem perce­ber de imediato o fio condutor que os perpassa.

Verdade é que toda esquematização corre o risco de ser ar­tificial ou de enquadrar violentamente em modelos realidades que ultrapassam os termos desses modelos. O próprio Dulles re­conhece que a Igreja é um mistério ou que ela transcende, pela riqueza de sua vida e de seu potencial, os limites de qualquer es­quema dentro do qual a queiramos emoldurar. – É por isso que se deve ler o livro de Dulles de modo a não isolar as respectivas frases ou secções; antes, tenha-se sempre em vista a conclusão final do autor (cap. 12: Avaliação dos modelos, pp. 216-231), que, aliás, vai enfatizada nas linhas abaixo.

2) O autor propõe a combinação dos diversos modelos da Igreja entre si, dando-se prevalência ao modelo “Igreja sacra­mento” (p. 225).

Ora julgamos que Dulles foi um tanto tímido ao propor es­ta afirmativa. Ela podia ser mais acentuada no decorrer da obra, pois inegavelmente a Igreja é o sacramento que prolonga a en­carnação do Verbo; por seu aspecto humano, Ela continua a fa­ce humana de Jesus de Nazaré, face através da qual se exprimia e comunicava a realidade divina do mesmo Senhor Jesus: assim também pelas estruturas sensíveis da Igreja (no que estas têm de essencial), transmite-se a graça, que santifica os homens. – Por sua vez, o sacramento da Igreja atinge todo e qualquer homem mediante os sete ritos sacramentais; na sua insignificância ou po­breza aparente (água, pão, vinho, óleo, palavras), estes expri­mem e infundem valores transcendentais ou divinos.

Em torno do conceito de sacramento que, como se vê, é central na mensagem cristã, alinham-se os demais aspectos da Igreja:

– o institucional ou jurídico, sem o qual nenhuma socieda­de composta de homens pode subsistir;

– o místico ou a comunhão íntima com Deus, que é, sem dúvida, o aspecto interior do sacramento da Igreja (ou a res sa­cramenti);

– o querigmático ou proclamador, que é o meio de chamar todos os homens a comungar no sacramento do Corpo de Cristo;

– o diaconal ou aspecto “serviço”, que redunda do fato de que Cristo veio trazer aos homens uma mensagem de amor e jus­tiça, que não pode ser meramente teórica, mas há de ser encar­nada na história dos homens.

3) Parece-nos que A. Dulles foi assaz feliz ao considerar o quinto aspecto da Igreja.

Procurou mostrar que o serviço às rea­lidades temporais não deve absorver toda a atenção da Igreja, mas, ao contrário, há de ser decorrência da assimilação de valo­res transcendentais. Em especial, enfatiza a necessidade de que o clero se abstenha de militancia ativa em favor de determinado partido político (pp. 197s).

É, pois, para desejar que a obra de Dulles se torne objeto de leitura e estudo de grupos cristãos interessados em crescer na fé. Ela se presta a tanto, desde que lida com o senso de equilí­brio que animou o seu autor.

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NOTAS:

[1] AVERY DULLES, S.J., A Igreja e seus modelos. Tradução de Alexandre Macintyre. – Ed. Paulinas, São Paulo, 130 x 200 mm, 239 pp.

[2] O autor assim entende “modelo”:

“Quando uma imagem é empregada refletida e criticamente para aprofundar a compreensão teórica de uma realidade, torna-se o que hoje se denomina ‘um mode­lo’ ” (p. 21).

A. Dulles reconhece que o vocábulo foi usual principalmente no setor das ciên­cias físicas e sociais (ib.).

[3] Sohm e Brunner julgam que o institucional na Igreja é ilegítimo.