Igreja, origem: a igreja, sua origem e natureza

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 341/1990)

Em síntese: O Cardeal Joseph Ratzinger proferiu palestra pública, no Rio de Janeiro aos 26/07/90, sobre o tema acima. Antes do mais, colocou a pergunta: Quis Jesus fundar a Igreja? Que é a Igreja? – Frente às teorias dos últimos cem anos, inspiradas por fatores filosóficos e culturais contingentes, mostrou que a Igreja tem uma memória, ou seja, tem fontes próprias para re­conhecer sua identidade: é a Ekklesia (= convocação ou assembléia convoca­da, em grego), que corresponde aos anseios do povo de Deus no Antigo

Testa­mento; este, após o exílio babilônico (587-538 a. C), pedia a Deus que reunis­se os segmentos de Israel dispersos entre os diversos povos do Oriente, do Egi­to e do Ocidente; essa reunião seria o cumprimento das profecias do Antigo Testamento referentes à vinda do Reino de Deus. Ora Jesus realizou essa con­vocação, reunindo não só o povo de Israel disperso, mas também os povos pa­gãos, numa assembléia católica, universal. O Reino de Deus não é algo de to­pográfico ou espacial, mas é o próprio Cristo; estar com Cristo é estar no Reino.

O episódio de Pentecostes (At 2, 1-41) concretizou muito vivamente essa convocação, que deu origem ao novo povo de Deus: as línguas foram multiplicadas para que as muitas culturas da humanidade fossem levadas à unidade da Igreja; nesta há uma só fé e uma só Eucaristia, que sela a definitiva Aliança de Deus com os homens. Assim se vê que a Igreja não é o produto da criatividade humana, mas tem origem em Deus; ela vem a ser a realização das expectativas dos Profetas do antigo Israel.

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De 23 a 27 de 1990 realizou-se no Rio de Janeiro um Curso para Bispos sobre “O Munus Petrino (a função de Pedro) no final do milênio, diante dos problemas da Igreja”, com a participação de 96 Bispos brasileiros. A abertura, na noite de 23 de julho, foi feita pelo Cardeal-Arcebispo do Rio de Janeiro, D. Eugenio Sales; pelo Presidente da CNBB, Dom Luciano Mendes de Almei­da; pelo Núncio Apostólico, Dom Carlo Furno; e pelo coordenador do curso, Dom Karl Josef Romer. O objetivo desse Curso foi proporcionar atualização teológica aos Bispos e defender a unidade doutrinária da Igreja. O Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Cardeal Joseph Ratzinger, fez três pales­tras, sempre na primeira sessão da manhã, sobre “Igreja Universal e Igreja Par­ticular”, “Pedro e a Unidade dos Cristãos”, o “Munus do Bispo e a Igreja Par­ticular”. O Cardeal-Arcebispo de Salvador na Bahia e Primaz no Brasil fez duas conferências sobre “Desafios à Igreja no final do 2° Milênio” e “Mensa­gem do Magistério de João Paulo II ao nosso tempo”. O Bispo da Diocese gaúcha de Novo Hamburgo, Dom Boaventura Kloppenburg, falou sobre a “Igreja na América Latina após o Concílio Vaticano II, sinais do Espírito e desafios”. O Bispo da Diocese paulistana de Santo Amaro, Dom Fernando Fi­gueiredo, expôs sobre a “Unidade e Multiformidade na Igreja Apostólica”. O Secretário do Departamento de Ecumenismo do CELAM (Conselho Episco­pal Latino-americano), Padre Luis Eduardo Castaño, dissertou sobre “Ecume­nismo: compromisso e limites na América Latina”. O Bispo Auxiliar de Olin­da e Recife, Dom João Evangelista Martins Terra, falou sobre “Aspectos bíblicos da unidade e diversidade na Igreja”. O Curso terminou ao meio-dia da sexta-feira 27 de julho, após diálogo com os conferencistas.

Aos 26 de julho o Sr. Cardeal Joseph Ratzinger proferiu uma palestra pu­blica sobre “A Igreja: sua origem e sua natureza”. Perante um auditório super­lotado discorreu serenamente sobre um tema hoje controvertido, visto que há estudiosos que negam tenha Jesus fundado a Igreja; esta seria criação dos Apóstolos após sofrerem a decepção de não verem o fim dos tempos; por con­seguinte, dizem, se os Apóstolos fundaram a Igreja, os sucessores dos Apósto­los podem hoje reformá-la radicalmente ou extinguir a instituição existente para fundar outra (oriunda do povo e moldada segundo os traços de uma re­pública democrática contemporânea).

Eis, em síntese, o teor da magistral conferência do Cardeal Joseph Ratzinger:

1. Um pouco de história recente

Que é a Igreja? Donde provém? Será expressão da vontade de Jesus Cristo?

Para elucidar tais perguntas, há tantas teorias entre os exegetas e teólo­gos que parece impossível dar uma resposta segura a tais indagações. Devere­mos, então, desistir da pesquisa? … e passar simplesmente para a vivência do Evangelho segundo os critérios individuais de cada cristão? – Tal atitude seria grave infidelidade a Cristo. Ao estudioso cristão não é lícito fechar-se no ce­ticismo.

Como então proceder para chegar a uma elucidação dos quesitos pro­postos?

O melhor ponto de partida há de ser a procura de uma visão de conjun­to das teorias existentes. Uma vista aérea panorâmica das mesmas permitirá descobrir caminhos que levem a uma solução do aparente impasse.

Ora podem-se distinguir três camadas de teorias sobre Jesus e a Igreja propostas pelos teólogos dos últimos anos:

1) A exegese dita “liberal” concebia Jesus como um pregador liberal, que reduzia a Religião à ética cristã. Opunha-se às instituições existentes em sua época; por conseguinte, não terá fundado alguma instituição ou Igreja, mas haverá despertado nos homens o desejo de experiência de Deus mera­mente pessoal ou subjetiva.

2) Tais concepções perderam sua voga após a primeira guerra mundial (1914-18). Os povos perceberam que o cientificismo e muitos esteios de uma falsa auto-afirmação do homem haviam fracassado; a guerra incitou os homens a reconhecer sua fragilidade. Isto os levou a procurar estimar de no­vo os valores sagrados. Tomaram consciência de que Jesus era avesso ao cul­to de Deus e à Liturgia, como fora dito pelas gerações anteriores.

Conse­qüentemente o protestantismo na Alemanha, na Inglaterra, na Escandinávia restaurou com novo interesse a prática da oração e os ritos sagrados. Entre os católicos a Eucaristia foi mais reconhecida como centro da vida cristã; o movimento litúrgico tomou vulto e reavivou a piedade. Nesta fase tiveram certa influência os teólogos ortodoxos russos exilados em Paris, que contri­buíram notavelmente para a elaboração de uma Eclesiologia eucarística mais densa e profunda. Tornou-se forte a consciência de que o Messias deixou as linhas fundamentais da constituição de um povo santo ou messiânico.

3) Sobreveio a segunda guerra mundial, que por sua vez deslocou o fo­co de atenção dos estudiosos. Uma das mais notáveis conseqüências do con­flito foi a abertura de um fosso crescente entre povos ricos (liberais) e povos pobres; no Ocidente os povos do bem-estar restauraram a antiga filosofia li­beral, que por sua vez ressuscitou a teologia liberal, segundo a qual Jesus foi tão somente um moralista, desligado de instituições. Alguns teólogos apela­ram para a distinção, existente no Antigo Testamento, entre sacerdotes e profetas; aqueles teriam representado a Lei e as instituições de Israel, ao pas­so que estes significavam o carisma e a oposição às instituições; ora Jesus se terá alinhado do lado dos Profetas, contra os sacerdotes; por conseguinte, não terá fundado Igreja alguma. Mais, diziam tais estudiosos: Jesus julgava que o mundo acabaria em breve ou com a geração do próprio Cristo, de mo­do que lhe era alheia a idéia de criar uma instituição duradoura.[1]

A sumária exposição das três camadas de teorias feita até aqui mani­festa que cada qual delas é o reflexo da sua época ou foi marcada pelas cir­cunstâncias sociais, políticas e culturais da respectiva época. A Eclesiologia foi formulada em consonância com esses fatores extrínsecos e contingentes, e não de acordo com a memória da Igreja, ou seja, com as concepções cons­tantes e tradicionais que formam o fio condutor da história e da doutrina da Igreja. É, pois, necessário redescobrir a memória e a Tradição da Igreja.

2. A memória e a Tradição da Igreja

Para começar, notemos a freqüente ocorrência da expressão Reino de Deus nos escritos do Novo Testamento: aparece 122 vezes nestes, sendo que 99 vezes nos Evangelhos sinóticos e 90 vezes diretamente nos lábios de Je­sus. Era na base desta verificação que Loisy dizia: “Jesus pregou o Reino de Deus (= a consumação definitiva da história), mas o que veio é a Igreja”.

Eis, porém, que a oposição “Reino de Deus x Igreja” é falsa. Com efei­to; os Profetas do Antigo Testamento anunciavam o Reino de Deus como realidade última e definitiva; São João Batista também reunia os homens nu­ma só comunidade que aguardava o termo final da história. Ora Jesus veio justamente, como representante de Deus Pai, para reunir os homens no Rei­no prometido. Este, porém, não é um lugar, um espaço; é Jesus mesmo; é Deus posto diante do homem. Observemos que, quando Jesus se aproximava do povo para anunciar-lhe a Boa-Nova, dizia-lhe: “Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo” (Mc 1,15). Jesus é o Reino que se aproxima; onde Ele está, aí está o Reino; o Reino de Deus é a atuação de Deus na his­tória dos homens. Por isto a frase de Loisy deveria ser assim corrigida: “Anunciou-se o Reino e chegou Jesus”.

Esse Jesus nunca está só. Ele veio reunir os homens num só povo. Den­tre as diversas imagens que designam esse povo – rebanho, cidade de Deus, templo de Deus, campo de Deus…-, a preferida é a imagem da família de Deus; nesta os homens são filhos de Deus e Jesus é o Primogênito.

Nessa família três pontos chamam-nos a atenção:

1) Os discípulos pediram ao Mestre que lhes ensinasse uma oração: a oração da comunidade. Na verdade, os grupos religiosos outrora tinham, como marco constitutivo, uma oração própria. Em resposta, Jesus ensinou o Pai-Nosso. Isto quer dizer que a comunidade congregada por Jesus está ligada à oração; a oração a distingue, caracteriza e consolida.

2) Mais: a comunidade de Jesus não é um núcleo amorfo. Jesus cha­mou doze seguidores; este número é tão importante que servia para designar, sem aposto, a comunidade (só após a ressurreição do Senhor foram eles cha­mados Apóstolos); cf. Lc 9,1; Mc 6,7; 3.14. Por isto, após a defecção de Ju­das, o número 12 foi restaurado pela escolha de Matias. – Ora o número 12 lembra os filhos de Jacó, dos quais descendiam as doze tribos de Israel. Je­sus, acompanhado pelos doze, faz as vezes de Patriarca de um novo Israel; este é consagrado não pelos laços do sangue, mas pelos da pertença a Jesus.

Além dos doze seguidores imediatos, Jesus tinha setenta discípulos. Ora também este número tem suas conotações valiosas. Com efeito; os anti­gos concebiam o mundo povoado por setenta povos (cf. Gn 10, 1-32); tam­bém foram, segundo se dizia, setenta os tradutores da Bíblia de Israel do he­braico para o grego – o que significava que era um livro destinado a todas as nações.

Assim acompanhado por doze apóstolos e setenta discípulos, Jesus quer chamar todos os homens para que integrem o novo povo de Deus. Ele, aliás, termina a sua missão terrestre enviando os Apóstolos a todos os povos para que os batizem e os façam discípulos de Jesus; cf. Mt 28, 18-20.

3) A oração comum dos seguidores de Jesus foi acompanhada de novo elemento cúltico. Sim; Jesus quis transformar a Páscoa de Israel em selo de uma nova Aliança de Deus com os homens, … com todos os homens. Cum­priram-se assim as profecias de Isaías concernentes ao Servo de Javé (cf. Is 52,13-53,12), vítima de expiação pelos pecados, que reuniria os homens todos e, reconciliados, os levaria a Deus Pai. O pão e o vinho da nova Páscoa foram entregues aos Apóstolos como sendo o alimento que une os discípu­los com o Senhor Deus e uns com os outros. A Aliança do Sinai foi assim ul­trapassada em favor de outra, cujo mediador e ponto central é o próprio Jesus.

A Eucaristia – nome dado à ceia instituída por Jesus – não é, pois, um culto semelhante aos que já existiam. É celebração de Aliança, … da no­va e definitiva Aliança; ela faz dos homens o povo da Aliança mediante a participação no corpo e no sangue de Cristo. Desta maneira a Eucaristia é a origem e o centro da vida da Igreja; ela faz a Igreja, e a Igreja, por sua vez, faz a Eucaristia.

Tendo assim percorrido as grandes linhas do ministério de Jesus, exa­minemos a face de

3. A Igreja dos Apóstolos

Os livros do Antigo Testamento designavam Israel como o povo de Deus. No Novo Testamento o povo constituído pela Eucaristia é chamado Ekklesía = Igreja. Por que isto?

– A palavra qahal, no Antigo Testamento, significa assembléia, … assembléia de caráter cúltico, político, jurídico. Compreendia não só ho­mens (como as assembléias políticas e jurídicas da Grécia), mas também mulheres e crianças… Ora, após o exílio de Israel na Babilónia (587-538 a.C), os judeus ficaram esparsos por diversas regiões do Oriente Médio, do Egito e do Ocidente; essa dispersão quebrava brutalmente a unidade do povo (aliás, já violada pelo cisma das dez tribos em 930 após a morte de Salomão; cf. 1 Rs 12, 1-33). Por isto os judeus pediam a Javé que congregasse o povo disperso, restaurando a qahal ou o povo reunido; nutriam ardentes anseios neste sentido, especialmente nos tempos próximos à vinda de Cristo.

Ora Jesus veio realizar estes anseios. Por isto os cristãos das primeiras gerações, assumindo o nome grego Ekklesía (= convocação, chamamento dos que estavam longe), queriam declarar que neles se realizava a nova qahal almejada pelos judeus. A Lei (Torá) da qahal antiga se transformava em Lei do amor (cf. Jo 13, 34): “Eu vos dou um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei”. Jesus, entregando a vida por seus discí­pulos num gesto de amor, podia promulgar a nova aliança sobre esse amor, fazendo dele a grande diretriz de vida dos seus seguidores.

A noção de Igreja assim entendida é explicitada no livro dos Atos dos Apóstolos, escrito por São Lucas. Tem-se aí uma Eclesiologia narrativa, isto é, descrita através da narração de fatos históricos. Todo esse livro sagrado se prestaria a fecundo estudo da concepção eclesiológica dos Apóstolos e das primeiras comunidades cristãs. Neste contexto seja suficiente realçar três quadros apresentados no início de tal obra:

1) At 1, 12-26: Temos aqui a primeira reunião dos seguidores de Jesus. Estavam no Cenáculo Pedro e os dez (Judas apostatara e Matias ainda havia de ser eleito), Maria SS. e alguns discípulos (homens e mulheres) fiéis. Todos os pormenores deste quadro são importantes na sua própria singeleza: a sala de reunião era o Cenáculo ou a sala da instituição da Eucaristia na última Ceia; os onze Apóstolos são apresentados um por um; perseveravam unâni­mes na oração ou numa atitude de abertura para a graça e a vontade de Deus; o seu número total era de cento e vinte – o que lembra o número 12 sagrado e profético, pois indica a totalidade; era o número das tribos de Is­rael e dos Apóstolos de Jesus.

São Pedro se fez porta-voz do desígnio de Deus: era preciso escolher o substituto do 12° Apóstolo ou do traidor. A escolha se fez mediante um si­nal de Deus, que indicava Matias à comunidade orante; a decisão veio do Al­to, pois o quadro não era o de um Parlamento, que decide por critérios hu­manos, mas era o de uma autêntica qahal-ekklesía, ou de um povo convoca­do pela graça de Deus, unido, em santa Aliança, ao Senhor e regido por cri­térios transcendentais; era ele o espelho do novo povo de Deus, no qual Pe­dro exerce uma função primacial, fortalecendo e confirmando seus irmãos, levando-os a identificar-se com o plano de Deus.

2) At 2, 42-47: Quatro características assinalam a Igreja nascente: a fidelidade ao ensinamento dos Apóstolos, a comunhão fraterna, a fração do pão e a oração. Isto quer dizer:

– a Palavra de Deus e o pão sacramental fundamentam a Igreja de Deus;

– esta é algo de institucional; é preciso obedecer aos ensinamentos dos Apóstolos; o Cristianismo não é algo que se possa viver isoladamente, na ba­se de intuições particulares. O cristão deve sentir-se membro de uma comu­nidade, selada pela fração e a partilha do pão (eucarístico);

– a fidelidade dos cristãos a Cristo implica o respeito a um testemu­nho vivo (a Palavra viva dos Apóstolos, a vida e o agir da comunidade) mais do que a um livro. Os livros sagrados (Evangelhos, epístolas) são posteriores a essa fase da Igreja nascente; esta encontrava na Palavra proferida e vivida o seu liame e a sua luz ou o roteiro de sua fidelidade a Cristo.

3) Entre At 1, 12-26 e At 2, 42-47 acha-se a cena do primeiro Pente­costes cristão (At 2, 1-14). Esta significa que a Igreja (ekklesía = convoca­ção) não é obra criada ou fundada pelos homens, mas pelo Espírito Santo; é este quem comunica aos Apóstolos o dom das línguas, mediante as quais puderam chamar à nova qahal judeus e não judeus ou pagãos. As línguas multiplicadas em Pentecostes significam as muitas culturas humanas convo­cadas a se entrelaçarem sob a orientação de uma só fé e um só amor. É inte­ressante que São Lucas registra como presentes ao primeiro Pentecostes ju­deus provenientes de doze partes do mundo (partos, medos, elamitas, habi­tantes da Mesopotâmia, da Judéia e da Capadócia, do Ponto, da Ásia, da Panfília, do Egito e das regiões da Líbia próximas de Cirene), além dos ro­manos, representantes do mundo pagão. Com outras palavras: são convoca­dos judeus e gentios, ou seja, todos os povos. Assim a Igreja, já ao nascer, é católica ou universal; depois da comunidade de Jerusalém foram fundadas outras comunidades na Terra Santa e também fora da Terra Santa; mas não foram essas comunidades esparsas que deram à Igreja o seu cunho de cató­lica; ao contrário, foi a índole católica da Igreja oriunda em Jerusalém que se transferiu para as outras comunidades eclesiais, tornando-as católicas.

Pentecostes, levando a multiplicidade dos homens e das culturas à unidade da Ekklesía, resgata o episódio de Babel, no qual a unidade se dissol­veu em multiplicidade por causa da arrogância dos homens frente a Deus. A volta à unidade se faz sem violência nem constrangimento, mas por efeito do amor derramado pelo Espírito Santo nos corações (cf. Rm 5,5).

No decorrer do livro dos Atos, São Lucas desenvolve o acontecido em Pentecostes: o caminho da Boa-Nova e da Igreja oriundas em Jerusalém, berço judaico, e destinadas aos pagãos, cuja capital era Roma. Sim; o livro começa em Jerusalém no Cenáculo, apresentando a nova qahal e seu Pente­costes, e termina em Roma; esta cidade, na mente de Lucas, tem valor Teoló­gico, é o ponto que sela e confirma a catolicidade da Igreja.

O livro de São Lucas, aliás, é todo ele escrito em perspectiva profunda­mente teológica: demonstra o mistério da Igreja, que é a continuação da as­sembléia do povo do Antigo Testamento, disperso nos tempos de Cristo e convocado para constituir novo povo, baseado não sobre a pertença a uma raça, mas sim sobre a pertença a Jesus Cristo, que é o Reino de Deus inicia­do; tal pertença implica nova Aliança firmada no sacrifício de Cristo, que pão e vinho sacramentais perpetuam sobre os altares.

Assim São Lucas, de certo modo, antecipou as questões que se coloca­riam posteriormente sobre a origem e a natureza da Igreja, e forneceu a cha­ve para resolver os problemas eclesiológicos de nossos tempos.

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Eis a síntese da conferência do Cardeal J. Ratzinger. A conclusão (pa­rágrafo final) deste texto responde às indagações iniciais: quis Jesus fundar a Igreja? Que é a Igreja? – Como se vê, a resposta não é deduzida de contin­gências da história, mas da “memória” da Igreja, ou seja, dos arquivos mais autênticos da mesma; é a história da salvação, considerada desde o Antigo Testamento, que apresenta a Igreja como o fruto de longa preparação: a Aliança do Sinai, a Ceia de Páscoa, a assembléia (qahal) de culto a Deus e de comunhão fraterna… são concepções do antigo Israel que chegam à sua ple­nitude na Ekklesía ou na assembléia convocada; que reúne em seu bojo ju­deus e gentios, ou seja, todos os homens; a catolicidade da Igreja não extin­gue as peculiaridades étnicas e culturais, mas fá-las convergir para constitui­rem um novo povo consolidado pelo amor de Deus derramado nos corações mediante o Espírito Santo (Rm 5,5). São Lucas, nos Atos dos Apóstolos, é o doutor que faz reviver os antigos episódios e mostra a Igreja fundada pelo próprio Cristo como emissário do Pai e Patriarca da linhagem dos filhos de Deus (em Cristo os homens são feitos filhos no FILHO).

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NOTA:

[1] Eis as palavras com que o próprio Cardeal Ratzinger exprime seu pensa­mento no artigo “A Memória Histórica da Igreja” publicado no JORNAL DO BRASIL, caderno “Idéias/Ensaios” de 5/8/90, pp. 7s. Tais dizeres aju­dam a compreender afirmações de teólogos da Libertação no Brasil:

“Esse novo tipo de liberalidade pode transformar-se, com grande facili­dade, em uma interpretação de orientação marxista da Bíblia. O confronto entre sacerdotes e profetas converte-se na chave da luta de classes como lei da História. Nesse caso, Jesus foi morto na luta contra as forças opressoras e se converte em símbolo do proletariado que sofre e luta, símbolo do povo, como se prefere dizer. O caráter escatológico da mensagem remete para o fim de uma sociedade classista; na dialética profeta-sacertote expressa-se a dialética da História, que culmina com a vitória dos oprimidos e o surgimen­to de uma sociedade sem classes. Nesta concepção pode-se encaixar o fato de que Jesus quase nunca falou de Igreja, referindo-se, constantemente, ao Reino de Deus; o Reino será, então, a sociedade sem classes, e será a meta da luta do povo oprimido; ele ocorre onde o proletariado organizado, isto é, seu partido, com o socialismo alcançou vitória. A eclesiologia volta a ter sig­nificado, neste modelo dialético, dado pelo desmembramento da Bíblia em sacerdotes e profetas, correspondente à diferença entre instituição e povo. Segundo esse modelo dialético, à Igreja institucional, oficial, se opõe a Igreja do povo, aquela que, renascendo constantemente com ele, perpetua as inten­ções de Jesus, sua luta contra as instituições e seu poder opressor, a favor de uma nova sociedade livre, o reino.”