Igreja, origem: a origem da igreja e do papado

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 459/2000)

Em síntese: Há quem diga que o título de Católica só foi atribuído à Igreja pelo Concílio de Constantinopla I em 381 por decreto do Imperador Teodósio – alegação esta desmentida pelo fato mesmo de que já S. Inácio de Antioquia, nos primeiros anos do século II, falava de Igreja Católica. Quanto ao termo Papa, só foi aplicado ao Bispo de Roma no século V de maneira enfática; todavia a função de Pedro como chefe do colégio apostólico já está delineada nos escritos do Novo Testamento; no caso, o que importa não é o nome, mas o exercício da função.

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A Redação de PR recebeu de um amigo o seguinte recorte de jornal, que terá deixado vários leitores confusos. Daí o pedido de resposta feito a esta Redação.

«A ORIGEM DO VATICANO E DO PAPA

A Igreja recebeu o nome de “católica” somente no ano 381, no Concílio “Conctos Populos”, dirigido pelo imperador romano Teodósio. Devido às alterações que fez, deixou de ser apostólica e não sabemos como pode ser romana e universal ao mesmo tempo. (Hist. Ecles., I, pg. 47, Rivaux).

Até o século V não houve “papa” como conhecemos hoje. Esse tratamento de ternura começou a ser aplicado a todos os bispos a partir do ano 304. (Cônego Salim, Ciência e Religião. Tom. 2 pg. 56)».

O texto em foco contém várias imprecisões (para não dizer vários erros), como se evidenciará nas páginas seguintes.

1. Igreja Católica: desde quando?

1. A expressão “Igreja Católica” não tem origem no fim do século IV, mas encontra-se sob a pena de S. Inácio, Bispo de Antioquia (+107 aproximadamente), que nos primeiros anos do século II escrevia:

“Onde quer que se apresente o Bispo, ali esteja também a comunidade, assim como a presença de Cristo Jesus nos assegura a presença da Igreja Católica” (Aos Esmirnenses 8, 2).

A expressão católica parece designar, em primeira instância, a universalidade da Igreja (ela está em toda parte, e não somente nesta ou naquela comunidade). Todavia os intérpretes do texto julgam que algo mais está dito aí: S. Inácio terá tido em vista a Igreja autêntica, verdadeira, perfeita. Desde fins do século II se torna freqüente o sentido de universal, sem, porém, excluir o de autêntica, isto é, portadora de todos os meios de salvação instituídos por Cristo. Esta segunda acepção se tornava necessária pelo fato de haver correntes ou “igrejinhas” heréticas, separadas da Igreja grande, nos primeiros séculos (como até hoje as há).

O sentido de autêntica atribuído ao adjetivo católica encontra-se regularmente nos escritos dos primeiros séculos. A partir do século III, pode-se dizer que católica significa a verdadeira Igreja, esparsa pelo mundo ou também alguma comunidade local que esteja em comunhão com a Grande Igreja.

Quanto à origem da palavra católico, é preciso procurá-la no grego profano. Com efeito; para Aristóteles (+322 a.C.), kath’holon significa segundo o conjunto, em geral; o vocábulo é aplicado às proposições universais. O filósofo estóico Zenon (+262 a.C.) escreveu um tratado sobre os universais intitulado katholiká; são católicos os princípios universais. Políbio (+128 a.C.) falou da história universal em comum, dizendo-a Tès katholikès kai koinès Historias. Para o judeu Filon de Alexandria (+44 d.C), katholikós significa geral, em oposição a particular; os deuses astrais da Síria eram ditos katholikoí.

Tal vocábulo é, pela primeira vez (como dito), aplicado à Igreja por S. Inácio de Antioquia (+107 aproximadamente).

2. Que houve então em 381?

Em 381 realizou-se o Concílio geral de Constantinopla, que repetiu a fórmula Igreja Católica, professando: “Creio na Igreja una, santa, católica e apostólica”. O Concílio nada inovou; apenas reiterou a fórmula antiga.

3. Põe-se então a pergunta: que dizer do mencionado decreto do Imperador Teodósio?

Impõe-se notar logo que o decreto data de 380, e não de 381. Com efeito; sob Teodósio I (379-95), que reinou no Oriente do Império Romano, registraram-se acontecimentos importantes. Aos 28/02/380, o Imperador assinou um decreto que tornava oficial a fé católica “transmitida aos romanos pelo apóstolo Pedro, professada pelo Pontífice Dâmaso e pelo Dispo de Alexandria, ou seja, o reconhecimento da Santa Trindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. Com estas palavras, Teodósio abraçava, para si e para o Império, o Credo que, proveniente dos Apóstolos, era professado então pelo Papa Dâmaso (366-84) e pelo Bispo S. Atanásio de Alexandria, grande defensor da fé ortodoxa na controvérsia contra os arianos. Assim o Cristianismo, que Constantino I tornara lícito em 313, era feito religião oficial do Império Romano.

4. “Não sabemos como a Igreja pode ser romana e universal”. – O título romana não implica nacionalismo nem particularismo. É apenas o título que indica o endereço da sede primacial da Igreja. Na verdade, a Igreja, atuando neste mundo, precisa de ter seu endereço ou seu referencial postal, que é o do Bispo de Roma, feito Chefe visível por Cristo. Por conseguinte a Igreja Católica recebe o titulo de Romana sem prejuízo para a sua catolicidade ou universalidade. De modo semelhante, Jesus, Salvador de todos os homens, foi dito Nazareno, porque, convivendo com os homens, precisava de um endereço, que foi a cidade de Nazaré.

2. Apostolicidade

Diz a notícia de jornal:

“Devido às alterações que fez, a Igreja deixou de ser apostólica”.

Em resposta, torna-se oportuno, antes do mais, examinar o que signifique o atributo apostólica aplicado à Igreja.

Já no Novo Testamento se encontra a noção de que o patrimônio da fé não chega aos fiéis como algo descido do céu diretamente, mas, sim, como algo que parte do Pai, passa por Jesus Cristo, pelos Apóstolos e, finalmente, chega a cada indivíduo no seu respectivo tempo. Assim, por exemplo:

1Jo 1, 1-3: “O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que contemplamos, e o que nossas mãos apalparam do Verbo da vida… nós vos anunciamos esta Vida eterna, que estava voltada para o Pai e que vos apareceu”. Cf. Jo 17, 7s; 20, 21; Mt 28, 18-20; Rm 10, 13-17; 2Tm 2, 2; Tt 1, 5.

Os primeiros escritores da Igreja retomaram e estenderam essa série de comunicações ou missões. Assim lemos em Tertuliano:

“Sem dúvida, é preciso afirmar que as igrejas receberam dos Apóstolos; os Apóstolos receberam de Cristo, e Cristo recebeu de Deus” (De Praescriptione Haereticorum 21, 4).

Os antigos davam grande apreço às listas de Bispos que houvessem ocupado uma sede outrora fundada ou governada por um Apóstolo. S. Ireneu de Lião (+202) é o autor de um desses catálogos:

“Depois de ter assim fundado e edificado a Igreja, os bem-aventurados Apóstolos transmitiram a Lino o cargo do episcopado… Anacleto lhe sucede. Depois, em terceiro lugar a partir dos Apóstolos, é a Clemente que cabe o episcopado… A Clemente sucedem Evaristo, Alexandre; em seguida, em sexto lugar a partir dos Apóstolos, é instituído Sixto, depois Telésforo, também glorioso por seu martírio; depois Higino, Pio, Aniceto, Sotero, sucessor de Aniceto; e, agora, Eleutério detém o episcopado em décimo segundo lugar a partir dos Apóstolos” (Contra as Heresias III 2, 1s).

Com outras palavras: para os antigos, a Igreja é uma comunidade que teve início com os Apóstolos, mas está destinada a se prolongar até o fim dos tempos, de modo que Ela não é senão o desabrochamento do cerne dos Apóstolos. Vejam-se as palavras de Tertuliano (+220 aproximadamente):

“Foi primeiramente na Judéia que eles (os Apóstolos escolhidos e enviados por Jesus Cristo) implantaram a fé em Jesus Cristo e estabeleceram comunidades. Depois partiram pelo mundo afora e anunciaram às nações a mesma doutrina e a mesma fé. Em cada cidade fundaram Igrejas, às quais, desde aquele momento, as outras Igrejas emprestam a estaca da fé e a semente da doutrina; aliás, diariamente emprestam-nas, para que se tornem elas mesmas Igrejas. A este título mesmo são consideradas comunidades apostólicas, na medida em que são filhas das Igrejas apostólicas. Cada coisa é necessariamente definida pela sua origem. Eis por que tais comunidades, por mais numerosas e densas que sejam, não são senão a primitiva Igreja apostólica, da qual todas procedem… Assim faz-se uma única tradição de um mesmo Mistério” (De Praescriptione Haereticorum 2, 4-7.9).

A necessidade de distinguir das correntes cismáticas a verdadeira Igreja de Cristo provocou a acentuação e a utilização mais e mais freqüente do predicado da apostolicidade: a Igreja verdadeira vem de Cristo mediante os Apóstolos, ao passo que as correntes heréticas e as seitas não podem reivindicar para si o título de apostólicas. A partir do século XII começaram a aparecer pequenos tratados sobre a Igreja Apostólica frente às seitas dissidentes. Aliás, foram as heresias que provocaram a publicação de tratados explícitos sobre a Igreja.

No século XVI a apologética católica, frente à reforma protestante, explanou largamente a origem apostólica da Igreja Católica. Os teólogos puseram em evidência que aqueles que se afastam da Igreja fundada por Cristo e entregue aos Apóstolos, é que perdem o direito de constituir a Igreja Apostólica. Os reformados têm um fundador humano para cada uma de suas denominações, que pretende recomeçar a história do Cristianismo séculos após a geração dos Apóstolos, portanto sem o clássico caráter de apostolicidade.

Quanto às “alterações” na Igreja, não são mais do que o desabrochar da semente lançada por Cristo. A árvore plenamente desenvolvida é da mesma natureza que a própria semente, e vice-versa. Tal desabrochamento – lógico e necessário – foi acompanhado pelo Espírito Santo prometido por Jesus à Igreja (cf. Jo 14, 26; 16,13-15) para que conserve e transmita incólume o depósito da fé. Caso o Senhor não tivesse providenciado essa garantia de fidelidade e autenticidade através dos séculos, teria sido vão o seu sacrifício na Cruz. É, pois, necessário dizer que na Igreja Apostólica (fundada por Cristo e entregue aos Apóstolos) se mantém viva e pura a mensagem apregoada pelo Divino Mestre.

Ver “Carta Aberta aos Protestantes” às pp. 380s deste fascículo.

3. Origem do Papado

Lê-se no citado tópico de jornal:

“Até o século V não houve Papa como conhecemos hoje”.

A resposta a esta afirmação dependerá de como entender a expressão “Papa como conhecemos hoje”. Se entendemos que se trata de Papa com uso dos meios de comunicação modernos (televisão, rádio, internet…) e viagens aéreas, está claro que não houve Papa de tal tipo na antigüidade. Todavia, se se entende Papa no sentido de chefe visível da Igreja, encontra-se tal figura já nos escritos do Novo Testamento. Com efeito; Pedro aí aparece como aquele a quem Jesus confia as chaves do reino dos céus (cf. Mt 16,17-19) e entrega o pastoreio das suas ovelhas (cf. Lc 22, 31s; Jo 21,15-17). O aspecto bíblico da questão já foi repetidamente abordado em PR; ver especialmente PR 375/1993, pp. 338-344. Sejam acrescentados alguns traços significativos da história da Igreja.

Não se pode esperar encontrar nos primeiros séculos um exercício do Papado (ou das faculdades entregues por Jesus a Pedro e seus sucessores) tão nítido quanto nos séculos posteriores. As dificuldades de comunicação e transporte explicam que as expressões da função papal tenham sido menos freqüentes do que em épocas mais tardias. Como quer que seja, podemos tecer a história do exercício dessas funções nos seguintes termos:

A Sé de Roma sempre teve consciência de que lhe tocava, em relação ao conjunto da Igreja, uma tarefa de solicitude, com o direito de intervir onde fosse necessário, para salvaguardar a fé e orientar a disciplina das comunidades. Tratava-se de ajuda, mas também, eventualmente, de intervenção jurídica, necessária para manter a unidade da Igreja. O fundamento dessa função eram os textos do Evangelho que privilegiam Pedro, como também o fato de que Pedro e Paulo haviam consagrado a Sé de Roma com o seu martírio, conferindo a esta uma autoridade singular.

Eis algumas expressões do primado do Bispo de Roma:

1) No século II houve, entre Ocidentais e Orientais, divergências quanto à data de celebração da Páscoa. Os cristãos da Ásia Menor queriam seguir o calendário judaico, celebrando-a na noite de 14 para 15 de Nisã (daí serem chamados quatuordecimanos), independentemente do dia da semana, ao passo que os Ocidentais queriam manter o domingo como dia da Ressurreição de Jesus (portanto, o domingo seguinte a 14 de Nisã); o Bispo S. Policarpo de Esmirna foi a Roma defender a causa dos Orientais junto ao Papa Aniceto em 154; quase houve cisão da Igreja. S. Ireneu, Bispo de Lião (Gália) interveio, apaziguando os ânimos. Finalmente o Papa S. Vítor (189-198) exigiu que os fiéis da Ásia Menor observassem o calendário pascal da Igreja de Roma, pois esta remontava aos Apóstolos Pedro e Paulo.

Aliás, S. Ireneu (+202 aproximadamente) dizia a respeito de Roma: “Com tal Igreja, por causa da sua peculiar preeminência, deve estar de acordo toda Igreja, porque nela… foi conservado o que a partir dos Apóstolos é tradição” (Contra as Heresias 3, 2).

Muito significativa é a profissão de fé dos Bispos Máximo, Urbano e outros do Norte da África que aderiram ao cisma de Novaciano, rigorista, mas posteriormente resolveram voltar à comunhão da Igreja sob o Papa S. Cornélio em 251: “Sabemos que Cornélio é Bispo da Santíssima Igreja Católica, escolhido por Deus todo-poderoso e por Cristo Nosso Senhor. Confessamos o nosso erro… Todavia nosso coração sempre esteve na Igreja; não ignoramos que há um só Deus e Senhor todo-poderoso, também sabemos que Cristo é o Senhor…; há um só Espírito Santo; por isto deve haver um só Bispo à frente da Igreja Católica” (Denzinger-Schönmetzer, Enchiridion 108 [44]).

O Papa Estêvão I (254-257) foi o primeiro a recorrer a Mt 16,16-19, ao afirmar contra os teólogos do Norte da África, que não se deve repetir o Batismo ministrado por hereges, pois não são os homens que batizam, mas é Cristo que batiza.

A partir do século IV, o recurso a Mt 16,16-19 se torna freqüente. No século V, o Papa Inocêncio I (401-417) interveio na controvérsia movida por Pelágio a respeito da graça; num de seus sermões S. Agostinho respondeu ao fato, dizendo: “Agora que vieram disposições da Sé Apostólica, o litígio está terminado (causa finita est)” (serm. 130,107).

No Concílio de Calcedônia (451), lida a carta do Papa Leão I, a assembléia exclamou: “Esta é a fé dos Pais, esta é a fé dos Apóstolos. Pedro falou através de Leão”.

O Papa Gelásio I declarou entre 493 e 495 que a Sé de Pedro (romana) tinha o direito de julgamento sobre todas as outras sedes episcopais, ao passo que ela mesma não está sujeita a algum julgamento humano. Em 501, o Synodus Palmaris de Roma reafirmou este princípio, que entrou no Código de Direito Canônico: “Prima sedes a nemine judicatur; – A sé primacial não pode ser julgada por instância alguma” (cânon 1629).

Em suma, quanto mais o estudioso avança no decurso da história da Igreja, mais nitidamente percebe a configuração do primado de Pedro, ocasionada pelas diversas situações que o povo de Deus foi atravessando.

No tocante ao termo Papa deve-se dizer que vem do grego pappas – pai. Nos primeiros séculos era título atribuído aos Bispos como expressão de afetuosa veneração, veneração que se depreende dos adjetivos “meu…, nosso…” que acompanham o título. A mesma designação podia ser ocasionalmente atribuída também aos simples presbíteros (pais), como acontecia no Egito do século IV. No Oriente ainda hoje o sacerdote é chamado papas. No Egito o papas por excelência é o Patriarca de Alexandria.

O título de papa é dado ao Bispo de Roma já por Tertuliano (+220 aproximadamente) no seu livro De pudicitia XIII 7, onde se lê: Benedictus papa. É encontrado também numa inscrição do diácono Severo (296-304) achada nas catacumbas de São Calixto, em que se lê: iussu p(a)p(ae) sui Marcellini (por ordem do Papa ou pai Marcelino). No fim do século IV a palavra Papa aplicada ao Bispo de Roma começa a exprimir mais do que afetuosa veneração; tende a tornar-se um título específico. Tenha-se em vista a interpelação colocada por S. Ambrósio (+397) numa de suas cartas: “Domino dilectissimo fratri Syriaci papae – Ao senhor diletíssimo irmão Siríaco Papa” (epístola 42). O Sínodo de Toledo (Espanha) em 400 chama Papa (sem mais) o Bispo de Roma. São Vicente de Lerins (+ antes de 450) cita vários Bispos, mas somente aos Bispos Celestino I e Sixto III atribui o título de Papa.

No século VI o título tornou-se, com raras exceções, privativo dos Bispos de Roma.