(Revista Pergunte e Responderemos, PR 452/2000)
Em síntese: A 1º de setembro de 1999 o Papa João Paulo II proferiu uma impressionante alocução, em que enfatizou a necessidade que a Igreja experimenta, de pedir perdão pelas faltas de seus filhos. Enumera algumas dessas faltas, salientando sempre que se devem à fragilidade humana de seus filhos. Preconiza uma investigação conscienciosa dos fatos históricos a fim de que a verdade histórica seja posta em relevo com suas luzes e sombras. A Igreja não tem medo da verdade. Importante é notar que João Paulo II não pede perdão pelos pecados da Igreja, mas pelos dos filhos da Igreja.
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A 1º de setembro pp. o Santo Padre João Paulo II recebeu em audiência cerca de oito mil peregrinos, aos quais proferiu uma catequese sobre o pedido de perdão que a Igreja emite pelos pecados de seus filhos ocorridos no passado.
A seguir, será proposta uma síntese de tal alocução acompanhada de comentários.
1. A Palavra do Papa
“Às portas do Grande Jubileu do ano 2000 a Igreja Católica pede perdão pelas culpas históricas de seus filhos”. Com tais palavras o Papa acolheu os fiéis provenientes dos cinco continentes na Sala Paulo VI do Vaticano em sua tradicional audiência geral de quarta-feira.
“Em atitude penitencial e no limiar do terceiro milênio, afirmou João Paulo II, a Igreja está disposta a reconhecer os erros do passado, desde que confirmados por séria investigação; Ela sente o dever de pedir perdão pelas culpas históricas de seus filhos”.
É de notar que o Papa enfatiza que se deve tratar de culpas realmente ocorridas e comprovadas pela pesquisa dos historiadores. Também se observa que o Papa apresenta a Igreja como Mãe, cujos preceitos nem sempre foram acatados por seus filhos. Não é a Igreja como tal que pede perdão, mas é a Mãe Igreja que assume as culpas de seus filhos e pede desculpas. Está aí subjacente o conceito de que a Igreja é divina e humana: enquanto divina, é santa; enquanto humana, ela traz em seu bojo o pecado dos filhos.
A celebração dos 2000 anos do nascimento de Cristo, continua o Papa, oferece à Igreja “a grandiosa ocasião de começar uma nova página da história, tentando superar os obstáculos que separam uns dos outros os seres humanos e, em particular, os cristãos.
O reconhecimento de pecados históricos implica uma tomada de posição frente aos acontecimentos como de fato ocorreram, à luz de pesquisas históricas serenas e completas. O juízo sobre os acontecimentos do passado não pode prescindir de uma consideração realista dos condicionamentos derivados dos diversos contextos culturais em que se achavam os homens de outrora; não se lhes atribuam faltas que eles não podiam reconhecer como tais”.
João Paulo II continuou sua alocução, afirmando que “a Igreja não tem medo da verdade que emerge da história, e está disposta a reconhecer os erros onde eles estejam comprovados, principalmente quando se trata do respeito devido a pessoas e a comunidades… A Igreja é propensa a desconfiar das sentenças que, de maneira global, envolvem ou condenam alguma época passada… Ela prefere confiar a investigação do passado à paciente e honesta reconstrução cientifica, livre de preconceitos de ordem confessional ou ideológica; isto tanto no tocante às faltas que são atribuídas à Igreja, como no concernente aos danos que a Igreja tenha sofrido.
Quando se comprovam as culpas de seus membros mediante séria investigação histórica, a Igreja sente o dever de as reconhecer e de pedir perdão a Deus e aos irmãos. Tal pedido de perdão não há de ser entendido como se fosse ostentação de falsa humildade, nem como uma forma de renegar a sua história de dois mil anos, rica em méritos nos setores da caridade, da cultura e da santidade. Essa atitude penitencial corresponde a uma exigência impreterível de veracidade, que, simultaneamente com os aspectos positivos, reconhece os limites e as debilidades humanas das sucessivas gerações dos discípulos de Cristo”.
O Papa refere-se ao maior escândalo do Cristianismo, explicando que “a proximidade do Jubileu chama a atenção para algumas modalidades de pecado presentes e pretéritas, sobre as quais é necessário invocar, de maneira especial, a misericórdia do Pai. Refiro-me, antes do mais, à dolorosa realidade da divisão entre os cristãos. As feridas do passado, que certamente ocorreram por culpa de ambas as partes, continuam sendo um escândalo para o mundo”.
Outra razão pela qual a Igreja tem de reconhecer a culpa de seus filhos, “é o consentimento a métodos de intolerância e de violência no serviço da verdade”. O Papa menciona a propósito quanto se acha escrito em sua Carta Apostólica Tertio Millennio Adveniente nº 35:
«Outro capítulo doloroso, sobre o qual os filhos da Igreja não podem deixar de tornar com espírito aberto ao arrependimento, é a condescendência manifestada, especialmente nalguns séculos, perante métodos de intolerância ou até mesmo de violência no serviço à verdade.
Certo é que um correto juízo histórico não pode prescindir da atenta consideração dos condicionamentos culturais da época, pelos quais muita gente podia ter considerado, em boa fé, que um autêntico testemunho da verdade comportava o sufocamento da opinião de outrem ou, pelo menos, a sua marginalização. Múltiplos motivos convergiam freqüentemente para criar premissas de intolerância, alimentando uma atmosfera passional, à qual apenas grandes espíritos, verdadeiramente livres e cheios de Deus, conseguiam de algum modo subtrair-se. Mas a consideração das circunstâncias atenuantes não exonera a Igreja do dever de lastimar profundamente as fraquezas de tantos filhos seus, que lhe deturparam o rosto, impedindo-o de refletir plenamente a imagem do seu Senhor crucificado, testemunha insuperável de amor paciente e de humilde mansidão. Desses momentos dolorosos do passado deriva uma lição para o futuro, que deve induzir todo cristão a manter-se bem firme naquela regra áurea ditada pelo Concílio: ‘A verdade não se impõe de outro modo senão pela sua própria força, que penetra nos espíritos de modo, ao mesmo tempo, suave e forte’».
Em suma, diz o Papa em seu discurso: “Mesmo se muitas pessoas procederam de boa fé, por certo não foi condizente com o Evangelho julgar que a verdade deve ser imposta pela força” .
Mais adiante o Papa refere-se à indiferença frente a situações de violação dos direitos humanos:
“A muitos cristãos faltou o discernimento a propósito de situações de violação dos direitos humanos fundamentais. O pedido de perdão estende-se a tudo o que foi omitido ou foi deixado em silêncio por fraqueza ou por efeito de uma avaliação errônea, como também a tudo o que foi feito ou dito de maneira imprecisa ou pouco apropriada.[1]
Sobre esses pontos, assim como sobre outros, a consideração das circunstâncias atenuantes não dispensa a Igreja do dever de lamentar profundamente as fraquezas de tantos de seus filhos que desfiguraram o seu semblante e a impediram de refletir a imagem do seu Senhor crucificado, insuperável testemunho de amor paciente e de humilde mansidão.
A atitude penitencial da Igreja do nosso tempo, no limiar do terceiro milênio, não quer ser um revisionismo historiográfico de fachada apenas, pois isto seria tão suspeito quanto inútil. Antes, a Igreja volta seu olhar para o passado e o reconhecimento das faltas, a fim de que isto sirva de lição para se construir um futuro de testemunho mais puro”.
2. Comentando…
Em junho de 1994, João Paulo II reuniu os Cardeais num Consistório extraordinário para comunicar-lhes sua intenção de se preparar para o jubileu do ano 2000 mediante sério exame de consciência sobre as culpas dos filhos da Igreja. Nem todos os Cardeais compreenderam bem a iniciativa; julgaram que tal atitude do Papa poderia suscitar equívocos entre os fiéis e também fora da Igreja. A esta hesitação o Papa respondeu que a Igreja não tem medo da verdade e que não seria possível enfrentar os desafios apresentados pela modernidade sem que se realizasse previamente esse exame de consciência. De modo especial, lembrava que a aproximação dos cristãos separados não seria viável se não houvesse reconhecimento das culpas de parte a parte.
A fim de efetuar tal exame de consciência sobre bases sólidas, João Paulo II nomeou uma Comissão Teológico-Histórica presidida pelo Pe. Georges Cottier, teólogo da Casa Pontifícia. A Comissão resolveu analisar três importantes questões relacionadas com a história da Igreja: o antijudaísmo ou anti-semitismo, a Inquisição e a aplicação do Concílio do Vaticano II.
Em conseqüência, realizou-se um Simpósio internacional no Vaticano em 1997 sobre o anti-semitismo. De 31 de outubro a 2 de novembro de 1998 ocorreu em Roma o Congresso sobre a Inquisição e de 25 a 27 de fevereiro de 2000 terá lugar, ainda em Roma, o terceiro Simpósio, este voltado para a maneira como foi aplicado o Concílio do Vaticano II. Tais assembléias reúnem os mais abalizados peritos de cada disciplina e procuram retratar a realidade histórica com toda a objetividade para que, assim respaldado, o Santo Padre possa abordar de público os problemas relacionados. Aliás, sabe-se que João Paulo II está preparando importante documento penitencial referente ao passado da Igreja a ser dado ao público na próxima quarta-feira de Cinzas, dia 9 de março.
Ao assumir tal atitude, o Papa confirma o que já dizia S. Ambrósio (+397):
“Pecar é comum a todos os homens, mas arrepender-se é próprio dos Santos” (Apologia David ad Theodosium Augustum II 5-6). Na verdade, não há quem não falhe, de modo que reconhecer culpas não deve surpreender quem quer que seja; é gesto de nobreza e lealdade.
Chamam a atenção cinco aspectos das manifestações do Papa.
1) Não diz que a Igreja pecou, mas, sim, que os filhos da Igreja pecaram, transgredindo os preceitos de sua Mãe. A Igreja, como pessoa, é sem mancha nem ruga (cf. Ef 5, 27); todavia o pessoal da Igreja ou os filhos da Igreja são portadores da fragilidade humana, que deve ser reconhecida e sanada.
2) O Papa quer evitar generalizações ao condenar ou ao exaltar algum feito do passado. Facilmente se condena (mais do que se exalta) a conduta dos antepassados, às vezes sem exato conhecimento de causa – o que pode redundar em injustiça cometida em nome da justiça.
3) João Paulo II lembra outrossim que as categorias culturais e o mundo geográfico dos antigos cristãos em geral era assaz diferente dos parâmetros culturais do homem contemporâneo. Isto lhes dificultava compreender certos comportamentos que hoje se tornaram aceitos. Assim, por exemplo, num regime de Cristandade, em que todos eram cristãos, desde o rei até o servo da gleba, era difícil entender que alguém não compartilhasse a fé e as categorias éticas da sociedade existente; facilmente se poderia crer que uma pessoa dissidente era demoníaca e perigosa para o bem comum. Assim certas modalidades de tratamento punitivo, hoje inconcebíveis, podiam outrora passar por obrigatórias em consciência. Dizer isto não significa relativizar o erro, mas, sim, lembrar que não se pode exigir de alguém o que este não tem possibilidade de dar.
4) A Carta Apostólica Tertio Millennio Adveniente menciona mais um ponto importante que suscita o zelo penitencial e a conversão dos cristãos:
«Numerosos Cardeais e Bispos desejaram que se fizesse um sério exame de consciência, principalmente sobre a Igreja de hoje. No limiar do novo milênio, os cristãos devem pôr-se humildemente diante do Senhor, interrogando-se sobre as responsabilidades que lhes cabem também nos males do nosso tempo. Na verdade, a época atual, a par de muitas luzes, apresenta também muitas sombras.
Como calar, por exemplo, a indiferença religiosa, que leva tantos homens de hoje a viverem como se Deus não existisse ou a contentarem-se com uma religiosidade vaga, incapaz de se confrontar com o problema da verdade e com o dever da coerência? A isto, há que ligar também a difusa perda do sentido transcendente da existência humana e o extravio, no campo ético, até mesmo de valores fundamentais como os da vida e da família. Impõe-se, pois, um exame aos filhos da Igreja: em que medida estão eles também tocados pela atmosfera de secularismo e relativismo ético? E que parte de responsabilidade devem eles reconhecer, quanto ao progressivo alastramento da irreligiosidade, por não terem manifestado o genuíno rosto de Deus, pelas deficiências da sua vida religiosa, moral e social?
Realmente não se pode negar que, em muitos cristãos, a vida espiritual atravessa um momento de incerteza que repercute não só na vida moral, mas também na oração e na própria retidão teologal da fé. Esta, já posta à prova pelo confronto com o nosso tempo, vê-se às vezes ainda desorientada por posições teológicas errôneas, que se difundem também por causa da crise de obediência ao Magistério da Igreja» (nº 36).
Com muita perspicácia o Papa se refere à crise de fé que afeta muitos católicos. É devida, em parte, ao secularismo ou à tendência a privilegiar os valores terrestres em detrimento dos definitivos, como também às múltiplas teorias disseminadas por pregadores e pela imprensa, em desacordo com o magistério da Igreja. É, pois, para desejar que se renove a fé como adesão incondicional a Deus, que fala aos homens pelos canais objetivos que Ele escolhe, e não por intuições subjetivas e arbitrárias.
5) No tocante à unidade dos cristãos, o S. Padre é muito mais explícito e incisivo na Carta Tertio Millennio Adveniente:
«Entre os pecados que requerem maior empenho de penitência e conversão, devem certamente ser incluídos os que prejudicaram a unidade querida por Deus para o seu Povo. Ao longo dos mil anos que estão para se concluir, mais do que no primeiro milênio, a comunhão eclesial, algumas vezes, não sem culpa dos homens dum e doutro lado, conheceu dolorosas lacerações que contradizem abertamente à vontade de Cristo e são escândalo para o mundo. Tais pecados do passado fazem sentir ainda, infelizmente, o seu peso e permanecem como tentações igualmente no presente. É necessário emendar-se, invocando intensamente o perdão de Cristo.
Neste crepúsculo do milênio, a Igreja deve dirigir-se com prece mais instante ao Espírito Santo, implorando-Lhe a graça da unidade dos cristãos. Este é um problema crucial para o testemunho evangélico no mundo. Sobretudo depois do Concílio Vaticano II, muitas foram as iniciativas ecumênicas empreendidas com generosidade e solicitude: pode-se dizer que toda a atividade das Igrejas locais e da Sé Apostólica assumiu nestes anos uma dimensão ecumênica. O Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos tornou-se um dos principais centros propulsores do processo para a plena unidade.
Mas todos estamos conscientes de que a obtenção desta meta não pode ser fruto apenas de esforços humanos, embora indispensáveis. A unidade é, em última análise, dom do Espírito Santo. A nós, é pedido que secundemos este dom, sem cair em abdicações nem reticências no testemunho da verdade, mas pondo generosamente em ação as diretrizes traçadas pelo Concílio e sucessivos documentos da Santa Sé, que mereceram o apreço inclusive de muitos dos cristãos que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica.
Eis, portanto, uma das tarefas dos cristãos a caminho do ano 2000. A aproximação do fim do segundo milênio incita todos a um exame de consciência e a oportunas iniciativas ecumênicas, de tal modo que possamos apresentar-nos ao Grande Jubileu, se não totalmente unidos, pelo menos muito mais perto de superar as divisões do segundo milênio. Para tal, é necessário – está à vista de todos – um esforço enorme. Impõe-se prosseguir com o diálogo ecumênico, mas, sobretudo empenhar-se mais na oração ecumênica.
Esta muito se intensificou depois do Concílio, mas deve crescer ainda, pondo os cristãos cada vez mais em sintonia com a grande invocação de Cristo, antes da Paixão: ‘Pai… que também eles sejam em Nós um só’ (Jo 17,21)» (nº 34).
O ecumenismo tem sido difícil tarefa. Após o Concílio do Vaticano II despertou certo entusiasmo, que foi arrefecendo em vista de mal-entendidos. Atualmente encontra êxito nas conversações entre teólogos católicos e cristãos não católicos; principalmente com os luteranos e os anglicanos a Igreja Católica tem realizado frutuosos estudos, que vão aplanando o caminho para a unidade.
Tais são algumas reflexões que pode sugerir o corajoso e inédito pedido de perdão preconizado pelo Papa.
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Nota:
[1] O Papa refere-se à mesma temática na Carta Apostólica Tertio Millennio Adveniente: «E quanto ao testemunho da Igreja no nosso tempo, como não sentir pesar pela falta de discernimento, quando não se torna mesmo condescendência, de não poucos cristãos perante a violação de direitos humanos fundamentais por regimes totalitários? E não será porventura de lamentar, entre as sombras do presente, a co-responsabilidade de tantos cristãos em formas graves de injustiça e marginalização social? Seria de perguntar quantos deles conhecem a fundo e praticam coerentemente as diretrizes da doutrina social da Igreja» (nº 36).