(Revista Pergunte e Responderemos, PR 134/1971)
Joana d’Arc: Igreja condena e Igreja reabilita?
Em síntese: A figura de Joana d’Arc (1412-1431) se coloca no contexto da Guerra dos Cem Anos (1337-1453) entre a França e a Inglaterra. Em 1428, quando a causa da França parecia irrevogavelmente perdida, Joana d’Arc, camponesa iletrada dirigida por vozes celestes, conseguiu o favor das autoridades francesas. Estas lhe concederam tropas, com as quais levantou o cerco de Orleães em 1429. A ação de Joana era fatal para a Inglaterra. Daí o interesse do poder inglês em eliminar a jovem guerreira. Já que a donzela se dizia movida por vozes celestes, o meio mais eficaz para condená-la naquela época era a acusação de que estava sob o poder de Satanás como bruxa, herege e impostora. Os ingleses conseguiram mover em seu favor o bispo de Beauvais, Pierre Cauchon, o qual constituiu um tribunal para julgar Joana d’Arc. Nem Cauchon nem os assessores que este chamou a si, em conivência com os maiorais da Inglaterra, possuíam autoridade legítima ou delegação para falar em nome da Igreja. Condenaram finalmente Joana d’Arc, que apelava para o Papa e que certamente não teria sido condenada se houvesse sido apresentada às legitimas autoridades da Igreja. O processo de Joana d’Arc foi, portanto, ação do poder político inglês dissimulado sob pretextos religiosos. Não é, pois, para admirar que, uma vez passada a onda de anti-medievalismo dos séculos XVI-XVIII, a Igreja haja reabilitado a memória de Joana d’Arc.
Certamente não foram razões de patriotismo francês que inspiraram a canonização da donzela, mas, sim, as exímias virtudes desta virgem, cuja fé e pureza se revelaram heróicas durante os seus vinte anos de vida.
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Resposta: Ainda recentemente – e mais uma vez – o caso de Joana d’Arc veio à baila, ocupando a opinião pública no Brasil, pois a Abril Cultural lhe dedicou um álbum da série «Grandes Personagens da História».
A figura de Joana d’Arc através dos séculos foi estudada com interesse por vezes apaixonado. Os enciclopedistas franceses do século XVIII (Voltaire, Diderot, Montesquieu…) atacaram-na sarcasticamente, encontrando fortes aplausos por parte da sociedade frívola da época. A obra satírica «La Pucelle» de Voltaire foi reeditada mais de 60 vezes entre 1760 e 1790. Ao contrário, o povo francês sempre se conservou grato e fiel à sua heroína. No fim do século passado (27/1/1894) iniciou-se o processo de glorificação de Joana d’Arc dentro da Igreja; aos 18 de abril de 1909 Pio X declarou-a bem-aventurada e, finalmente, Bento XV, aos 16 de maio de 1920, canonizou a donzela.
Ora a condenação de Joana d’Arc por parte de um tribunal dito «eclesiástico» e, posteriormente, a reabilitação da mesma são motivo de perplexidade por parte ido público.
Este desconcerto, porém, pode ser saneado sem dificuldade desde que se conheça exatamente o trâmite da vida e do processo de Joana d’Arc. Tal será o objeto da exposição a ser feita nas páginas que se seguem.
1. A figura histórica de Joana d’Arc
1.1. Os precedentes
O cenário histórico em que aparece Joana d’Arc, é o da guerra dita «dos Cem Anos» (1337-1453) entre a França e a Inglaterra.
Em 1415 Henrique V da Inglaterra invadiu a França com o intuito de derrubar o rei Carlos VI. Os invasores encontraram apoio da parte da Borgonha, cujo duque Filipe o Bom reconheceu Henrique V da Inglaterra como legítimo soberano da França; ao mesmo tempo, Carlos VI, cuja saúde mental estava abalada, deserdou seu filho e nomeou o monarca inglês herdeiro e regente do país. Em 1422, morreram Henrique V e Carlos VI. O filho deste, Carlos VII, fez-se coroar em Poitiers, e estabeleceu sua corte em Bourges, enquanto os ingleses caminhavam em território francês e assediavam a cidade de Orleães. Carlos VII era figura fraca, que nada fazia para deter os invasores, mas, ao contrário, permitia que homens ineptos e gozadores dirigissem o seu povo.
Foi então que entrou em ação uma jovem de 17 anos, que prometia salvar a França.
1.2. Intervenção de Joana
Joana nasceu em Domrémy, de família camponesa, aos 6 de janeiro de 1412. Não aprendeu a ler e escrever, mas possuía profundo senso religioso. Aos 13 anos de idade, começou a ouvir certas vozes, que ela identificou com as de S. Miguel Arcanjo, S. Catarina de Alexandria e S. Margarida; exortavam-na a ir socorrer a França.
A este propósito já se põe uma questão debatida: as revelações que Joana anunciava e que se repetiram até a sua morte, não terão sido mero fenômeno de alucinação? – Note-se que a alucinação significa um estado patológico, fonte de falsos juízos e de comportamento moral descontrolado. Ora em toda a conduta de Joana d’Arc não há vestígios de prostração física nem de aberração intelectual ou de incoerência de dizeres e atitudes; ao contrário clarividência e firmeza notáveis se manifestam. Torna-se, por conseguinte, difícil, se não ilógico, sustentar a tese das «alucinações».
Somente três anos mais tarde, em 1428, a jovem resolveu atender aos apelos celestes. Um tio levou-a então à presença do capitão Roberto de Baudricourt, delegado do rei em Vancouleurs. Vendo-a, o oficial desprezou-a, devolvendo-a a seu pai; este ameaçou afogá-la. Joana voltou a procurar o capitão, impressionando-o por sua energia. Roberto mandou-a ter com o rei Carlos VII, acompanhada por uma escolta de seis homens, que deviam defendê-la na caminhada por estradas perigosas. A donzela pediu e obteve também um cavalo e trajes masculinos (mais adaptados à missão militar que ela empreendia). Chegando em Chinon aos 6 de março de 1429, Joana identificou o rei dissimulado entre os seus cortesãos. Logo lhe pediu soldados para ir levantar o cerco de Orleães. Todavia aquela jovem de 16 anos, vestida de trajes masculinos, não inspirava confiança. Tendo insistido, Joana foi submetida a interrogatórios e exames sobre a fé e a moral pelo espaço de três semanas; já que o laudo resultou favorável, Carlos VII reconheceu o possível valor do empreendimento de Joana.
A situação para a França era tão grave que somente uma intervenção do céu poderia salvar a nação. O rei concedeu-lhe então um pequeno batalhão destinado a ir socorrer a sitiada cidade de Orleães, que estava para cair. Joana não combateria, mas estimularia os guerreiros, empunhando um estandarte branco, sobre o qual estava a figura de Cristo entre dois anjos. Finalmente, aos 8 de maio de 1429 os ingleses muito imprevistamente levantaram o cerco de Orleães, dando entrada na cidade a Joana d’Arc e sua tropa.
Assim vitoriosa, a jovem quis levar Carlos VII a Reims para que recebesse a devida sagração régia – o que se deu a 17 de julho de 1429. Ao lado do monarca, a benemérita heroína lhe disse então: «Gentil roi, maintenant est faict le plaisir de Dieu».
Joana dava por finda a sua missão, quando o rei lhe pediu continuasse a guerra. A donzela, dócil, muito se empenhou pela reconquista de Paris, mas aos 23 de maio de 1430, perto de Compiègne, foi presa pelos burgúndios, aliados dos ingleses. Estes a compraram pelo preço de 10.000 francos-ouro, e a levaram para Ruão, onde Joana deveria ser julgada. Aos ingleses interessava não apenas manter a donzela encarcerada, mas também destruir o seu prestígio aos olhos do público. – Este plano haveria de ser executado mediante pretextos religiosos que, para os homens da época, eram os mais persuasivos.
1.3. Mentalidade do século XV
Não se poderiam entender adequadamente o processo e as maquinações empreendidos contra Joana d’Arc se não se levasse em conta a mentalidade de ingleses e franceses da época
a) Joana dera à sua missão militar um caráter religioso, dizendo que Deus queria por seu intermédio libertar a França. – Por conseguinte, os inimigos, para desprestigiá-la, tentariam demonstrar que Joana de modo nenhum podia ser enviada de Deus, por estar sob a influência do demônio, como herege, bruxa, impostora, etc. – Caso isto ficasse comprovado, também o rei Carlos VII perderia a sua autoridade; seria evidente que se aliara a uma filha de Satanás, por obra da qual havia sido sagrado. Os franceses poderiam então perder a esperança de obter a vitória final.
Estas circunstâncias manifestam que os ingleses tinham o máximo interesse em servir-se da Religião contra Joana d’Arc, a fim de promover os seus interesses nacionais.
b) A mentalidade popular da época era levada a crer que vitória obtida em guerra era sinal de que Deus apoiava o vencedor. Ora os ingleses haviam conseguido um triunfo retumbante em Azincourt (1415), onde cinco mil guerreiros tinham prostrado toda a cavalaria francesa, lutando um soldado contra seis cavaleiros. Tão fulgurante vitória, pensava-se, só teria sido alcançada com a colaboração do céu; donde podiam muitos concluir que Joana contradizia ao curso dos acontecimentos sobre o qual Deus já proferira o seu juízo.
c) A própria condita de Joana se prestava à deturpação… As calamidades que assolavam a França havia cerca de 75 anos, excitavam a imaginação popular, provocando o surto sucessivo de falsos taumaturgos e visionários. Como naquela hora se distinguiria Joana de uma Catarina de la Rochelle ou do pastor Guilherme de Gévaudan, comprovadas vítimas da ilusão? – Além disto, o espírito medieval podia facilmente escandalizar-se com a figura de uma jovem vestida de cavaleiro a cavalgar junto com uma tropa de soldados; ora tal era o caso de Joana. Ninguém concebia que uma virgem cristã se pudesse apresentar nesses termos. Compreende-se então que muitos dos contemporâneos da heroína se tenham podido iludir a seu respeito.
d) Será preciso levar em conta também a colaboração da Universidade de Paris, setor de grande autoridade, que os ingleses ganharam para a sua causa. O espírito que então animava os professores dessa entidade, não era muito sadio. Tendiam a considerar-se os luzeiros da S. Igreja; os mais moderados entre eles ficavam cépticos ao ouvir falar de Joana; muitos, porém, lhe eram energicamente contrários. A pobre camponesa, com seus poucos anos de idade, deixava-se guiar por pretensas visões mais do que pelas idéias dos professores; queria passar por mais perita do que os capitães do exército, sem pedir vênia nem autorização aos doutos lentes!
À luz destas características da mentalidade da época, analisemos agora
1.4. O desfecho da história de Joana
Os ingleses, tendo que apelar para motivos religiosos na sua ação contra a jovem guerreira, encontraram apoio valioso na pessoa do bispo de Beauvais, Pierre Cauchon, todo devotado à causa dos invasores e, por isto, refugiado em Ruão, território possuído pelos ingleses.
Não foi difícil encontrar pretexto para se iniciar um processo contra Joana: as suas apregoadas mensagens celestiais forneciam fundamento a acusações de bruxaria e heresia! Cauchon foi constituído presidente do respectivo tribunal. Para dar ao júri o aspecto e a autoridade de tribunal da Inquisição (tribunal oficial da S. Igreja!), chamaram a participar da mesa o Vice-Inquisidor de Ruão, Jean Lemaitre. Cauchon convidou ainda grande número de assessores e jurados, aos quais o governo inglês fez saber que tinha meios para os coagir, caso rejeitassem participar do processo; 113 juristas aceitaram a intimação, dos quais 80 pertenciam à Universidade de Paris.
O júri era de todo ilegítimo, pois Cauchon não tinha sobre Joana nem a autoridade de bispo diocesano nem a de legado pontifício. A Santa Sé não fora em absoluto informada da constituição de tal tribunal.
Contudo o processo foi encaminhado. A jovem sofreu maus tratos físicos e morais; submetida a interrogatórios capciosos, que visavam a arrancar-lhe a confissão de heresia e superstição, respondeu sempre com simplicidade e nobreza; chegou a apelar para o Santo Padre: «Peço que me leveis à presença do Senhor nosso, o Papa: diante dele responderei tudo que tiver de responder». «Tudo que eu disse, seja levado a Roma e entregue ao Sumo Pontífice, para o qual dirijo o meu apelo!» Em vão, porém, apelou.
Finalmente, após peripécias diversas, Joana foi fraudulentamente condenada qual herege, relapsa, apóstata, idólatra. Entregue ao braço secular, sofreu a morte pelas chamas aos 30 de maio de 1431, enquanto olhava para o Crucifixo e orava. Na última manhã de sua vida, ainda dizia. Joana a Cauchon: «Eu morro por causa de V.S.; se me tivésseis colocado nos cárceres da Igreja,… isto não teria acontecido».
1.5. Após a execução
A opinião pública viu-se profundamente abalada pelo ocorrido. Apesar de todas as acusações, a massa do povo ainda tinha Joana na conta de vítima da injustiça de seus inimigos. Consequentemente, pouco depois de entrar solenemente em Ruão (dezembro de 1449), o rei Carlos VII deu início a uma revisão do processo condenatório, revisão que terminou favorável à jovem. Seguiu-se em 1445 ao inquérito pontifício, já que Joana fora abusivamente sentenciada em nome da Inquisição: após numerosos interrogatórios, o arcebispo de Reims, aos 7 de julho de 1456, perante numerosa assembléia de clérigos e leigos em Ruão, publicou a conclusão do «processo do processo», reabilitando a memória da donzela.
De modo oficial e solene, a Igreja reabilitou a memória de Joana d’Arc, reconhecendo-lhe os méritos, e a santidade em 1920.
Por que tanto se fez esperar essa completa reabilitação?
Os tempos que se seguiram ao ano de 1456, foram de reação contra o espírito e a vida da Idade Média: na época da Renascença o adjetivo «gótico» vinha a ser sinônimo de «bárbaro»;
quebravam-se os vitrais das catedrais para substituí-los por vidraças brancas; o famoso poeta Pierre de Ronsard (†1585), imitador dos clássicos gregos e latinos, qualificava o período medieval de «séculos grosseiros»; mais tarde, Voltaire (†1778) e ainda Anatole France (†1924) mostravam-se diretamente infensos à jovem guerreira de Domrémy. Foi preciso que a opinião pública em geral proferisse um juízo mais objetivo sobre a Idade Média para se pensar em exaltar a figura tão caracteristicamente medieval de Joana d’Arc.
2. Como julgar os fatos?
Quem considera o processo de Joana d’Arc fica geralmente surpreso pelo papel que a Igreja nele desempenhou: terá condenado à morte a inocente criatura para, bem mais tarde, como que cedendo a um complexo de culpa, reabilitá-la? Não haverá nisso tudo uma demonstração de fraqueza e contradição da Igreja?
– A resposta procederá por partes.
2.1. O fenômeno «Inquisição»
Foi a Inquisição que condenou Joana d’Arc. Ora, dizem-nos, a Inquisição era um tribunal eclesiástico.
Sobre a origem e as modalidades da Inquisição já foram publicados artigos em «P.R.» 8/1957, pp. 23-33; 38/1961, pp. 78-87. O que interessa realçar neste contexto, é que, a partir do século XIV, foram-se afirmando tendências nacionalistas e absolutistas entre os reis cristãos; neste movimento a dianteira coube ao rei Filipe IV o Belo da França (1285-1314). As autoridades e os juristas civis começaram então a ver com maus olhos o tribunal da Inquisição, que até aquela época funcionava no reino por autoridade do Sumo Pontífice, aplicando sua legislação própria. Na mente de não poucos magistrados surgiu a questão: será que, em vez de auxiliar a Inquisição eclesiástica, a autoridade civil não poderia inverter os papéis e servir-se dela como de um instrumento do reino?
É esta a tendência que, de fato, domina a história da Inquisição nos séculos XIV/XV: o poder dos reis procurava, mediante as sentenças da Inquisição, atingir os inimigos da monarquia como se fossem os inimigos de Deus; não poucos abusos foram-se cometendo sem o conhecimento ou até à revelia dos Pontífices Romanos (haja vista ao famoso processo dos Templários logo no início do séc. XIV; cf. «P.R.» 16/1959, pp. 169-174).
Pois bem. O processo de Joana d’Arc no começo do séc. XV é mais um processo desse tipo. Parece que uma análise serena dos acontecimentos permite concluir que a condenação da heroína foi obra de um governo civil desejoso de promover os interesses temporais de sua nação, ou seja, da Inglaterra. Ao processo civil foi, sim, dada uma capa religiosa, acentuada pelo fato de que alguns eclesiásticos, cedendo à fraqueza humana, se prestaram ao papel de juízes de Joana d’Arc.
Na verdade, a S. Sé não teve parte nem nos preliminares nem no andamento do processo. Assaz significativo é o fato de que, um mês antes da condenação de Joana, ou seja, em fins de abril de 1431, o Papa Eugênio IV escrevia a seu legado na França, o Cardeal de Santa Cruz, intimando-o a procurar a reconciliação dos reis da França e da Inglaterra; nas instruções que deu, não se encontra uma só menção do processo de Joana d’Arc, que certamente figuraria na ordem do dia, se o Papa tivesse conhecimento da causa. Eugênio IV só soube do que se dera, depois que Joana fora queimada viva.
Mas então que dizer das figuras eclesiásticas que colaboraram para a condenação da heroína? Não são responsáveis e culpadas?
Tenha-se por certo que não representavam a Igreja como tal. O bispo Cauchon nem era o prelado diocesano de Joana nem recebera delegação canônica paro agir como tal; sua autoridade lhe vinha toda do rei da Inglaterra. Por conseguinte, perante o Direito eclesiástico inválidos eram os poderes que ele pretendeu exercer e comunicar aos seus assessores, inclusive ao Vice-Inquisidor, que agia sob a sua dependência. Sem querer penetrar nas consciências (que só Deus pode perscrutar), reconhecer-se-á que o comportamento externo de Cauchon e de quantos com ele colaboraram, foi expressão de fraqueza de ânimo.
2.2. Joana d’Arc: por que santa?
Uma nova questão, porém, se coloca: por que quis a Igreja catalogar Joana d’Arc entre as santas virgens, quando a figura dessa jovem é principalmente a de uma heroína militar e nacional?
Certamente não foram títulos meramente naturais que levaram a canonizar Joana d’Arc; para tanto, só se ponderam critérios sobrenaturais, dos quais o primeiro é a heroicidade das virtudes. Eis, porém, que, independentemente da bravura e de façanhas bélicas, a figura de Joana d’Arc aparece ornada de notáveis dons do Espírito Santo.
A sua conduta de vida foi não somente irrepreensível até o fim, mas constituiu eloqüente testemunho de uma fé fora do comum, fé que, realmente, como afirmava a jovem vítima, devia ser robustecida por graças especiais da Providência. Joana teve sempre a clarividência sobrenatural para distinguir entre os seus juízes e a Igreja; embora aqueles se mostrassem injustos, a santa não perdia a fé na Igreja, para cuja autoridade suprema ela apelava. Tão firme atitude sobrenatural é certo testemunho de ânimo profundamente unido a Deus, poderosamente movido pelo Espírito Santo.
Talvez, porém, reste ainda uma dúvida: por que terá a Providência associado tão intimamente em Joana graças sobrenaturais e missão patriótica? O Senhor nutre partidos nacionais, privilegiando um povo com detrimento para outro?
Não. A tarefa de Joana d’Arc, embora pareça meramente nacional, tinha significado religioso; visava, sim, a soerguer moralmente um povo cristão, libertando-o de uma situação política que, segundo se pode crer, privaria a gente de França do seu papel de nação sempre católica desde a conversão do rei Clóvis no séc. V (ainda no século XVII foi a França a pátria de santos e de grandes figuras católicas). Sucumbindo ao domínio inglês nas vésperas do grande cisma anglicano, ter-se-ia a França preservado do mal da ruptura religiosa? Não há dúvida, será sempre difícil discernir com precisão os desígnios do Altíssimo na história dos povos e assinalar os motivos de cada uma de suas disposições; não pode restar dúvida, porém, de que a missão de Joana d’Arc, inspirada e sustentada como foi pela força do Alto, teve caráter digno da justiça e da sabedoria de Deus.
Em conclusão: a condenação de Joana d’Arc é fato histórico profundamente doloroso. Jamais, porém, poderá ser considerado fora do contexto do séc. XV, que bem o marca e ilumina.
Trata-se de um processo inspirado por interesses políticos e nacionais e justificado perante a opinião pública do séc. XV mediante pretextos religiosos (pretextos que podiam impressionar naquela época). Lamentavelmente houve prelados e clérigos que se prestaram ao papel de juízes de Joana d’Arc. Não procederam, porém, em nome da autoridade suprema da Igreja, mas, sim, por autoridade a eles conferida pelo rei da Inglaterra.
Entende-se, pois, que a S. Igreja, de maneira oficial e solene, tenha procedido à reabilitação e canonização de Joana d’Arc; nisto não houve incoerência ou contradição.
Em suma, a recordação do caso de Joana d’Arc é mais uma ocasião para distinguirmos (como Joana mesma fez) entre a Igreja como tal, «Esposa sem mancha nem ruga», e os membros da Igreja, homens sujeitos a falhar. Quando estes sucumbem à miséria humana, não agem por obra do Espírito Santo, mas por sua própria índole; não desvirtuam o poder santificador da Igreja, pois não são os homens, mas é Cristo que através dos homens nos santifica na Igreja.
Bibliografia
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Estêvão Bettencourt O.S.B.