Maçonaria: o que é a maçonaria (A .Tenório de Albuquerque)

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 269/1983)

por A. Tenório de Albuquerque

Em síntese: O livro em foco é uma apologia da Maçonaria regular, que não leva em conta os abusos cometidos pela Maçonaria Irregular (anti­cristã). Ao tocar em assuntos históricos, repete “chavões” sem exercer o devido espírito crítico. Além do mais, sugere um certo relativismo doutri­nário, que não é aceitável quando se trata das verdades da fé.

Não queremos negar pontos positivos apresentados pelas Constitui­ções da Maçonaria e pela vivência de membros desta. Mas julgamos que não se podem silenciar os elementos atrás mencionados a fim de exaltar a Maçonaria numa atitude simplória e infiel aos fatos históricos.

Comentário: Chegou à sétima edição o livro de A. T. Cavalcante de Albuquerque, intitulado «O que é a Maçonaria»[1]. Em subtítulo, o autor apresenta os principais tópicos da obra: «Os objetivos altruísticos da Maçonaria. Não é anti-reli­giosa. – É nacionalista. A Maçonaria orientou os principais episódios da nossa história». Como se percebe, o autor faz uma apologia da Maçonaria, procurando realçá-la como escola de filantropia não-sectária e benemérita. Neste intuito afirma que muitos prelados e sacerdotes da Igreja foram membros de Lojas maçônicas apesar das proibições dos Sumos Pontífices – afir­mação esta que tem impressionado o público.

Ora, a fim de esclarecer alguns tópicos do livro, passaremos em revista certas de suas páginas mais importantes, numa atitude serena e objetiva.

1. Observação geral

1. Ao abordarmos a temática «Maçonaria», devemos sempre ter em vista a distinção entre Maçonaria Regular e Maçonaria Irregular.

A primeira é a que conserva fidelidade aos princípios reli­giosos dos respectivos fundadores no século XVIII (1717-1723). Em algumas de suas Lojas tal corrente da Maçonaria apenas professa a Religião natural ou filosófica chamada «deísmo»; como quer que seja, respeita e valoriza «o Grande Arquiteto do Universo».

A Maçonaria Irregular separou-se da corrente tradicional na segunda metade do século XIX, cancelando dos seus documentos oficiais a referência ao Grande Arquiteto do Universo e assumindo orientação hostil à Igreja Católica.

Ora Tenório de Albuquerque parece ser membro de Loja da Maçonaria regular (cf. pp. 30-33) ; descreve a Maçonaria unicamente através das características do tipo regular, sem levar em conta que, no Brasil e na América Latina em geral, a Maçonaria tramou ardilosamente contra a Igreja Católica. Na verdade, a Maçonaria nem sempre foi liberal e tolerante como o autor a apresenta às pp. 91-93, mas mostrou-se impreg­nada por espírito sectário e conspirador, como se depreende, por exemplo, da chamada «Questão Religiosa» do Brasil (1871-76) e das leis de perseguição religiosa promulgadas no México sob os presidentes Benito Juarez (1861-72), Porfirio Diaz (1877-81 e 1884-1911), Madero (1911), Carraza (1915-20) ; outras nações da América Latina foram também, em graus diversos, vítimas de legislação anti-religiosa, ins­pirada, em grande parte, por forças maçônicas.

A apregoada tolerância da Maçonaria, aliás, é contraditada por certos cânones vigentes em suas Lojas. Eis, por exemplo, quanto se lê na Constituição do Grande Oriente do Brasil:

“Art. 4, nº 4: É dever do maçom nada imprimir nem publicar sobre assunto maçônico que envolva o nome da Instituição, sem expressa auto­rização do Grão-Mestre”.

O artigo 92 do Regulamento Geral insiste:

“Os assuntos de natureza maçônica não poderão ser impressos ou publicados pelos maçons ou pelas Lojas sem que haja autorização do Grão-Mestre Geral”.

Ou ainda: a Lei Penal da Maçonaria do Brasil, no artigo 19, § 39, proíbe às Lojas, sob pena de suspensão temporária ou fechamento definitivo, «iniciar ou sustentar, sem permissão dos poderes superiores, correspondências com as potências maçô­nicas estrangeiras ou autoridades profanas sobre assunto maçônico».

Tais cautelas se compreendem bem numa sociedade que deseje zelar por sua identidade. Levam-nos, porém, a entender que a tolerância exercida pela Maçonaria tem seus limites e não é apanágio de tal sociedade.

2. Tenório de Albuquerque insinua

Na verdade, o que se dá é o seguinte: as corporações de pedreiros (maçons, em francês) da Idade Média gozavam de grande prestígio e notáveis privilégios outorgados pelos reis e pelos Papas; como as demais corporações medievais, pro­fessavam a fé católica e a filiação à Igreja. No século XVI, porém, tais agremiações começaram a perder sua voga, visto que o estilo arquitetônico e a cultura evoluíam. Em conseqüên­cia, as Lojas de pedreiros foram recebendo em seus quadros pensadores e outros profissionais não-pedreiros; eram os maçons acceptés ou accepted masons (maçons aceitos). Estes aos poucos foram dando as notas características às Lojas de pedreiros, que, do seu passado, só guardavam os símbolos (esquadro, régua, compasso…) e os nomes. No século XVII até mesmo elementos procedentes da Rosa-Cruz foram sendo admitidos nas Lojas de pedreiros. Assim a mentalidade e a orientação destas Lojas perderam paulatinamente o seu cunho próprio de instituições católicas. No século XVIII, James Anderson elaborou as Constituições da Maçonaria Especulativa ou Filosófica, seguindo diretrizes de pensamento deísta (adepto da religião natural ou filosófica)[2]. Conseqüentemente a Maçonaria Especulativa dos séculos XVII-XVIII (que se dis­tingue da medieval, chamada «operativa») já não é berçada pela Igreja Católica, mas desde o seu inicio seguiu orientação deísta. Ora foi justamente essa atitude religiosa alheia à re­velação sobrenatural que, entre outras causas, suscitou a condenação dos Sumos Pontífices à Maçonaria (no século XVIII o deísmo devia parecer muito estranho e repudiável aos cristãos, pois tinha foros de impiedade ou apostasia).

Passemos agora à consideração de tópicos da obra em pauta.

3. Papas, bispos e clérigos maçons!

No intuito de mostrar a plena compatibilidade entre a Maçonaria e a fé católica, Tenório de Albuquerque e outros escritores maçons alegam que muitos membros da hierarquia católica pertenceram à Maçonaria: assim o Papa Pio IX, os Cardeais Carl Dalberg, Francisco de São Luis Saraiva, Bernis, Antonelli, o conde de Irajá, bispo do Rio de Janeiro, Dom José Joaquim de Azeredo Coutinho, bispo de Olinda, Frei Caneca, Frei Montalverne, Frei Sampaio…

Examinemos de mais perto a temática:

2.1 . Pio IX e a Maçonaria

Escreve Tenório de Albuquerque à p. 43:

“Dentre os Papas destacou-se pelo ódio anticristão contra a Maço­naria Pio IX. Mostrou-se rancoroso contra a Instituição depois de Papa. Pio IX chamava-se Giovanni Ferreti Mastai. Ele foi maçom, tendo perten­cido ao quadro de obreiros da Loja Eterna Cadena, de Palermo (Itália). Sob o n° 13.715 foi arquivada em 1839 na Loja Fidelidade Germânica, do Oriente de Nürenberg, uma credencial de que foi portador o Irmão Giovanni Ferreti Mastai, devidamente autenticada, com selo da Loja Perpétua de Nápoles. Como Irmão, como maçom, Giovanni Ferreti Mastai foi recebido na Loja Fidelidade Germânica”.

Antes do mais, observemos o equívoco subjacente a estes dizeres: o nome do Papa Pio IX era Giovanni Mastai-Ferretti, e não Giovanni Ferreti Mastai. Na verdade, sabe-se que Giovanni Ferreti Mastai era um jovem de vida livre, conhecido em Roma por seus desmandos, o qual nada tinha que ver com o Conde Giovanni Mastai-Ferretti, bispo de Imola, e, mais tarde, Papa Pio IX. A propósito observa Dom Boaventura Kloppenburg:

“Informa um autor que o primeiro que publicou esta infame balela foi Carlos Gasola, no Positivo de Roma, a 23 de março de 1849; e na mesma folha retratou-se aos 18 de junho de 1857. Por causa de tão torpe calúnia foi o Frondeur de Lyon condenado no tribunal aos 18 de novembro de 1875, a requisitório do Sr. Lourens, advogado e delegado da insuspeita República Francesa” (A Maçonaria no Brasil, p. 265).

O mesmo Dom Boaventura refere outra versão da mesma lenda que faz de Pio IX um maçom:

“Outros contam a história de maneira diferente. Dizem que Pio IX foi recebido numa Loja maçônica de Filadélfia e citam seus discursos aí proferidos e bom número de autógrafos arquivados na Loja.

Para tornar ainda mais verídica a história, chegaram a publicar a fotografia de Pio IX com insígnias maçônicas. Mas, desgraçadamente para o caso, Filadélfia está no mundo civilizado, onde se sabe ler e escrever. Averiguou-se que nem sequer existe naquela cidade uma Loja com o nome dado; encon­trou-se que nenhuma Loja de Filadélfia havia recebido jamais a Giovanni Mastai-Ferretti; nenhuma Loja foi capaz de apresentar nem discursos nem autógrafos, e isso pelo simples fato de que Giovanni Mastai-Ferretti nunca esteve em Filadélfia. O próprio Grão-Mestre do Oriente de Filadélfia des­mentiu a ridícula invenção, como também o Monde Maçonique de Paris a desmentiu” (obra citada, p. 265).

Como se vê, a estória de «Pio IX maçom» mereceria ser arquivada uma vez por todas, em nome da verdade, que a Maçonaria tanto professa cultivar[3]. De resto, é interessante notar que a Maçonaria quis filiar a si outro Papa, isto é, João XXIII; com efeito, a este foi atribuída uma oração que exalta os maçons, com detrimento do próprio Cristianismo; tal oração evidentemente é espúria ou falsificada, como foi de­monstrado em PR 132/1970, pp. 554-556.

2.2. Bispos e clérigos maçons

Não se pode negar que vários membros da hierarquia católica se tenham inscrito na Maçonaria.- A propósito se­guem-se cinco observações:

1) Seria preciso, antes do mais, investigar com exatidão caso por caso dos que são indicados por Tenório de Albuquer­que, a fim de se averiguar se todos foram realmente membros de Lojas maçônicas ou se houve algum equívoco (como no caso de Pio IX). Com outras palavras: para se poder interpretar um episódio histórico, é mister que se tenha certeza de que é realmente um fato ou algo que ocorreu verdadeiramente. Caso contrário, fazem-se elucubrações no vazio ou sem fundamento.

2) Os nomes de bispos, padres e frades citados por T. de Albuquerque como maçons no Brasil e em geral na América Latina são do fim do século XVIII e do inicio do século XIX.

Ora em tal época no Brasil e nos países hispano-americanos fervilhava o ideal da independência nacional. A Maçonaria fora precisamente trazida ao Brasil e aos países da América Latina como arauto e dinamizadora da tese da emancipação nacional; ela nutria aspirações e atividades de ordem política; de modo especial, as Lojas de Pernambuco e da Bahia, pelos anos de 1810, como as do Rio pelos de 1820, eram centros políticos que tramavam a independência; os próprios livros maçônicos insis­tem neste particular. O maçom Adelino de Figueiredo Lima, no livro «Nos Bastidores do Mistério. .. » (Rio de Janeiro 1954, p. 137), ao falar da fundação do Grande Oriente, escreve:

“E encerrou-se a sessão sob o juramento solene de que a nova potência maçônica independente tinha um fim específico a cumprir: fazer a independência do Brasil”.

Na mesma época não poucos membros do clero aspiravam ao ideal da independência pátria. Seja lembrada, por exemplo, a revolução de 1817 em Pernambuco, que foi uma revolução de clérigos. Frei Caneca, Frei Sampaio e Cônego Januário foram conhecidos por seu patriotismo; ora este era também um dos traços importantes das Lojas maçônicas. Eis por que muitos clérigos se afiliaram a estas.

3) Acresce que na época das lutas pela independência dos países latino-americanos a Maçonaria ainda não se tornara anticlerical. Era, pois, compreensível que os clérigos e os ma­çons procurassem unir suas forças em torno do ideal patriótico.

4) Tal adesão à Maçonaria, embora proibida pelos Papas, podia parecer legítima aos clérigos por circunstâncias jurídicas especiais: em virtude da lei do padroado, as Bulas papais que condenavam a Maçonaria precisavam do beneplácito do rei para ter força de lei no Brasil e nos países sujeitos ao regalismo. Ora o poder régio não sancionava tais Bulas, de modo que os clérigos podiam não se julgar obrigados a observá-las[4].

5) É preciso ainda reconhecer que nem todos os clérigos adeptos da Maçonaria foram disciplinados e exemplares. O seu comportamento deverá ser avaliado no contexto de vida, nem sempre observante, que levavam.

4. A imagem da Igreja no livro

Tenório de Albuquerque diz-se «católico» logo no inicio do livro (cf. p. 19). Em geral, mostra-se respeitoso para com os valores da religião. Todavia, ao apreciar episódios da história da Igreja, deixa-se às vezes levar por interpretações tenden­ciosas mais do que pela genuína versão da história. Eis por que abordaremos dois pontos de história que o livro põe em relevo.

3.1. A Igreja e a escravidão

À p. 177 lê-se uma citação de obra de João Dornas Filho endossada pelo autor:

“Não há, em todo o curso da história do Brasil até 1877, um ato, um gesto coletivo da nossa Igreja em favor dessa raça miserável que retribuía a servidão com a abastança, que pagava com prosperidade o avilta­mento… Aos gemidos, às imprecações, às frustradas rebeldias do deses­pero, a Igreja de Cristo respondia com apelos displicentes de resignação, quando não retrucava com o argumento mais sólido de repressão armada, como se deu em Minas por 1820, em que o bispo de Mariana pessoal­mente tomou armas para esmagar uma revolta de escravos desesperados”.

As notícias transmitidas por este texto não levam em conta a documentação respectiva, que os historiadores dedicados à pesquisa utilizam para esclarecer o assunto.

Precisamente em vista de quantos têm acusado a Igreja de silenciar perante o escravagismo, os historiadores têm posto em relevo documentos que manifestam a posição de protesto de Papas, bispos e clérigos diante de tal instituição. Para não repetir quanto já foi dito em PR 267/1983, pp. 106-132, citare­mos mais uma página do Cônego José Geraldo Vidigal de Carvalho, professor ilustre de Filosofia e História em Mariana, a propósito da Igreja frente à escravatura no século XIX:

«Particular interesse merecem os pronunciamentos feitos na Assembléia Geral Constituinte de 1823, sobretudo por doutos sacer­dotes que não deixaram dúvida alguma sobre a posição firme, obje­tiva, evangélica do clero da época. Seja dito inicialmente que José Bonifácio preparou uma representação para esta reunião sobre a Escravidão. Foi publicada em 1825. Formulava um projeto de liber­tação gradual.

Convém que documentos como estes sejam estudados. Trazen­do-os à luz do dia, o conhecimento das revelações neles contidas faz saber àqueles que dizem sem base que a religião em nada influenciou na extinção do regime escravocrata, a força que a dou­trina de Cristo constantemente teve na dissolução das opressões. Os argumentos de que a escravatura era um desrespeito ao direito natu­ral, ao Evangelho e ao espírito cristão foram sempre os mais fortes, apontados pelos líderes contrários à servidão.

Na Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil o senso da fraternidade cristã borbulhava significativamente. Os constituintes eram pessoas de elevado nível cultural. Octávio Tarquínio de Sousa acentua: ‘Quase todos tinham feito os seus estudos na Europa, estavam atentos aos sucessos políticos de lá e do conti­nente americano, e, formando idéia mais ou menos clara dos fins de seu mandato, não eram estranhos aos reclamos e necessidades de seu país’. Pela edição fac-similar do Diário deste histórico conclave, se verifica que está presente D. José Caetano da Silva Coutinho, oitavo bispo e capelão-mor do Rio de Janeiro, dezenove sacerdotes, entre os quais o Pe. Belchior Pinheiro de Oliveira, um dos artífices dos acontecimentos que culminaram a 7 de setembro de 1822; Pe. Manoel Rodrigues da Costa, participante da Conjuração Mineira de 1789; Pe. José Custódio Dias, liberal radical; Pe. Antônio da Rocha Franco, vigário da Vara de Vila Rica; Mons. Francisco Muniz Tavares, um dos mentores da Revolução de 1817; Pe. Inácio de Almeida Fortuna, tam­bém comprometido com a insurreição pernambucana; Pe. José Martiniano de Alencar, cearense, teve parte ativa nos movimentos pela Independência; Pe. José Ferreira Nobre, paraibano, participante da Revolução pernambucana; Pe. Venâncio Henriques de Resende, de Pernambuco, abolicionista denodado, que também foi valente Revolu­cionário de 1817. Estes e muitos outros sacerdotes enciclopedistas se entregaram às lutas libertárias. Utilizaram-se do púlpito e da pala­vra escrita para divulgação de suas teses, entre as quais a libertação dos escravos, um dos múltiplos aspectos sociais de uma lide sem tré­guas a favor dos direitos humanos. Segundo Francisco de Assis Bar­bosa, Diretor do Centro de Estudos Históricos da Fundação Casa de Rui Barbosa, ‘o grupo social’… mais numeroso e aguerrido do que hoje se denomina intelligentzia, no Brasil de D. João VI até a maio­ridade de D. Pedro II, ao final da terceira década da centúria, era constituído pelos padres, adeptos do galicanismo, uns, defensores do jansenismo, outros, josefistas ou febronianos, mas todos tocados pelo enciclopedismo».

Não nos alongaremos na apresentação de outros teste­munhos, visto que o assunto já foi explanado em PR 267/1983. Seria para desejar que os comentadores de episódios da

História da Igreja não repetissem simplesmente alguns chavões» cujo fundamento e documentação eles ignoram, mas procurassem munir-se do aparelhamento devido a afirmações de caráter científico.

Examinemos agora o caso de dois Papas citados por Tenó­rio de Albuquerque.

3.2. Os Papas Clemente XIII (1758-1769) e Clemente XIV (1769-1774)

A respeito de tais Pontífices lê-se no livro em foco:

«Não se pode atribuir à Maçonaria a responsabilidade da morte, do assassínio de nenhum Papa. Entretanto pesam sobre os jesuítas acusações gravíssimas. Clemente XIII, diante das queixas contra a Companhia de Jesus, do procedimento dos jesuítas, resolveu suprimir a citada instituição. Em um Consistório público, anunciou a sua reso­lução, fixando a data de 3 de fevereiro de 1769 para executá-la; gozava então de excelente saúde. No dia 2 de fevereiro de 1769, isto é, na véspera de assinar a resolução, morreu envenenado, depois de convulsões e dores terríveis.

Clemente XIV, sucessor de Clemente XIII, anunciou que ia devol­ver a paz à Igreja e restaurar o Cristianismo extinguindo a Compa­nhia de Jesus. Cardeais, clero, monges e sobretudo os jesuítas, que eram os mais relapsos, levantaram-se contra a nobre intenção do papa, chegando um jesuíta a fixar, em pleno dia, na entrada prin­cipal do Vaticano, um cartaz que dizia: ‘Rogai a Deus pelo Papa, que está em perigo de morte’.

Inquebrantável em sua decisão, apesar de saber a que se expu­nha, ao firmar a Bula, proferiu essas palavras proféticas: ‘Firmo a minha sentença de morte com isto, mas obedeço à minha consciência’. Mandou prender o Geral dos jesuítas, padre Ricci, os seus assis­tentes e o secretário-geral no Castelo de Santo Angelo; substituiu o seu cozinheiro por um franciscano de inteira confiança, tomando gran­des precauções para salvar-se da vingança jesuítica; tudo foi, porém, em vão; diz a história que uma beata incondicional dos jesuítas con­seguiu, mediante uma cesta de figos envenenados, envenenar o Papa, fazendo-o passar por uma agonia lenta que durou três meses. Seu valor e serenidade acompanharam-no até a morte. Pouco antes de expirar, declarou:

‘Bem sabia eu que me envenenariam, mas não julgava morrer de um modo tão lento e cruel’ » (pp. 34s).

Detenhamo-nos sobre cada um dos dois casos aduzidos.

3.2.1. Clemente XIII

No tocante a Clemente XIII observemos:

No século XVII a Companhia de Jesus foi contestada por seus adversários, os jansenistas. Estes defendiam teses heré­ticas tanto em matéria de doutrina quanto no setor da pastoral, afirmando o rigorismo e a religião do medo. Os jesuítas, como pioneiros da fé da Igreja, se lhes opunham. Constituíam uma família religiosa numerosa, benemérita desde os seus primeiros anos de existência no século XVI e amplamente espalhada pelo mundo.

Acontece que a filosofia da época estava fortemente im­pregnada de racionalismo ou «iluminismo» – o que levava não poucos pensadores a combater os jesuítas simplesmente por serem baluartes da Igreja ou «a sentinela avançada da Cúria Romana», como dizia Frederico II da Prússia (1740-86) ; ao que Voltaire (1778) acrescentava: «Uma vez que tenhamos os jesuítas, a Infame[5] será nossa presa fácil».

Todavia deve-se reconhecer que alguns membros da Com­panhia de Jesus, em réplica à severidade dos jansenistas, cederam ao laxismo (probabilismo, em vez do probabilio­rismo…) . – Os reis e governantes da época se imiscuíram na controvérsia nem sempre por zelo da reta fé, e sim por inte­resses políticos; o galicanismo, disseminando a concepção de «Igreja nacional», subordinada ao poder régio, se alastrava pelas cortes européias.

No século XVIII a situação se agravou, pois os jansenistas não cediam e não poucos chefes de Governo, a começar pelos de Espanha e Portugal, se puseram a mover campanhas contra a Companhia de Jesus, a ponto de pleitear a sua extinção. Foi em pleno contexto da controvérsia que o Papa Clemente XIII governou a Igreja.

Este Pontífice enfrentou o Marquês de Pombal, Sebastião de Carvalho e Mello, Primeiro-Ministro de Portugal, que era racionalista e anticlerical. Pombal pôs-se a banir os jesuítas de Portugal e das colônias, acusando os Religiosos de favorecer na América do Sul a rebelião dos indígenas contra os brancos. Clemente XIII rompeu relações diplomáticas com Portugal, mas não quis defender mais energicamente os jesuítas por receio de um cisma de Portugal em relação a Roma. Escreveu todavia a Bula Apostolicum Munus (7/01/1765), atendendo a solicita­ção de mais de duzentos bispos, Bula que advogava a causa dos jesuítas, como se depreende, por exemplo, do seguinte trecho:

“Declaramos, por espontânea vontade e por conhecimento seguro, que a Companhia de Jesus se caracteriza por elevado grau de piedade e santi­dade, embora existam homens que, depois de a ter desfigurado por mal­dosas interpretações, não recearam qualificá-la de Irreligiosa e ímpia, insul­tando assim da maneira mais ultrajante a Igreja de Deus” (citado por Fliche-Martin, Histoire de I’Eglise, vol. 19, Paris 1956, p. 43).

A resistência do Papa Clemente XIII às cortes régias da época valeram-lhe a hostilidade das mesmas, que foram des­gastando cada vez mais a debilitada saúde do Pontífice. A luta contra os jesuítas era, em última análise, luta contra o próprio Papado. Em conseqüência, o Pontífice morreu na noite de 2 para 3 de fevereiro de 1768, vítima de ataque cardíaco, como se pode ler na obra de Ludwig von Pastor, «Geschichte der Paepste», vol. XVI, 1, pp. 955s. O mesmo historiador, cuja autoridade é reconhecida no assunto, observa em nota que o próprio Tanucci, incansável adversário da Companhia de Jesus e conselheiro político de Carlos III, rei de Nápoles, relegou para o domínio das fábulas a notícia de que o Papa fora enve­nenado pelos Jesuítas: «Il veleno supposto dato al Papa per opera dei Gesuiti è riuscito una delle solite favole romane» (carta dirigida ao Embaixador Azara, da Espanha, em Roma, em 26/02/1769, e citada por L. v. Pastor, ob. cit., p. 955, nota 7).

Vê-se assim que a autêntica história difere sensivelmente da versão transmitida por quem não é historiador profissional.

3.2.2. Clemente XIV

Quanto a Clemente XIV (1769-1774), cedeu finalmente à pressão contra a Companhia de Jesus, decretando a extinção da mesma, não porque tivesse alguma acusação contra os jesuítas, mas porque a existência da Companhia se tornava ocasião de grandes perturbações dentro e fora da Igreja, com ameaças de cisma por parte de alguns países católicos.

Faleceu aos 21 de setembro de 1774, depois de haver publi­cado o Breve «Dominus ac Redemptor» aos 8/06/1773, que suprimia a Companhia de Jesus. O Pontífice sofreu profunda­mente ao tomar tal atitude – o que parece ter acelerado o seu desenlace final. Quando Voltaire foi informado a respeito da extinção da Companhia, exclamou com grande riso: «Dentro de vinte anos não haverá mais Igreja!» Referem algumas fontes que uma das últimas frases de Clemente XIV foi pre­cisamente a seguinte: «Cortei-me a mão direita!»

Após decretar a extinção da Companhia, o Papa se viu acometido por profunda angústia e pela idéia fixa de que o queriam envenenar: seu aspecto modificou-se, tornando-se magro e pálido; foi definhando aos poucos até morrer de di­versas moléstias agravadas por depressão psíquica. O cadáver se deteriorou rapidamente, exalando mau cheiro.

Não causa surpresa que, após a morte ocorrida em tais circunstâncias, se tenha espalhado o rumor de que Clemente XIV faleceu envenenado. Todavia é de notar que o cadáver foi submetido a autópsia, que nada revelou. A fim de afastar definitivamente tal rumor, o Cardeal Rezzonico, Camerlengo, pediu aos dois médicos que acompanharam o Papa enfermo, e ao cirurgião que presenciou a necrópsia, escrevessem um re­latório preciso sobre a moléstia e a morte de Clemente XIV. Os médicos firmaram com juramento seu testemunho contrário à hipótese do envenenamento. Ainda hoje se pode ler a Relazione ufficiale sulla morte del Papa, com a observação: «Niente veleno, affermano i due chirurgi di Pal azzo e Saliceti»[6].

A rápida deterioração do cadáver é explicada pelas diversas moléstias de que padecia o Pontífice: apresentava eczemas viru­lentos e persistentes na superfície do corpo, abcessos na boca, úlceras nas gengivas, semelhantes às do escorbuto, além de bronquite. Ora a medicina da época costumava ministrar doses de mercúrio para combater tais moléstias; este elemento deve ter contribuído para deteriorar o físico do Pontífice.

Os adversários dos jesuítas, entre os quais os jansenistas de Utrecht (Holanda), insistiram ainda durante algum tempo na divulgação da fantasista noticia de assassínio do Pontífice. Todavia a crítica histórica não vê como atribuir foros de vera­cidade a tal versão. Eis o que escreve o conceituado historiador contemporâneo Hubert Jedin em seu «Manual de Historia de la Iglesia»: «Carece de todo fundamento el rumor, que se propagó immeditamente, de que el Papa habia sido envenenado y asi lo admite, en general, la critica moderna» (vol. VI, p. 826).

Assim se evidencia a inconsistência de quanto é alegado pela historiografia menos rigorosa.

São estes alguns comentários que a leitura da obra de A. T. Cavalcante de Albuquerque sugere a quem a quer aprofundar.

5. Conclusão

O livro é uma apologia da Maçonaria regular, que não leva em conta os abusos cometidos pela Maçonaria irregular (anticristã). Ao tocar em assuntos históricos, repete «chavões» sem exercer o devido espírito crítico. Além do mais, sugere um certo relativismo doutrinário, que não é aceitável quando se trata das verdades da fé.

Não queremos negar pontos positivos apresentados pelas Constituições da Maçonaria e pela vivência de membros desta. Mas julgamos que não se podem silenciar os elementos atrás mencionados, a fim de exaltar a Maçonaria numa atitude pre­concebida e infiel à realidade histórica.

Bibliografia

BIHLMEYER-TUECHLE, História da Igreja. Vol. 3, Ed. Paulinas, São Paulo 1965.

DANIEL-ROPS, L’ère des grande craquements. Paris 1958.

FLICHE-MARTIN, Histoire de I’Eglise, vol. 19, Paris 1955.

JEDIN, H., Manual de Historia de la Iglesia. Vol. VI, Ed. Herder, Bar­celona 1978.

KLOPPENBURG, B., A Maçonarla no Brasil. Ed. Vozes, Petrópolis 1956.

PASTOR, L. v., Geschichte der Paepste, Vol. XVI, 1 e 2. Freiburg im Breisgau 1932.

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NOTAS:

[1] Gráfica Editora Aurora Limitada, Rio de Janeiro, 7″ ed., sem data, 160 x 220 mm, 277 pp.

[2] O deísmo é o sistema filosófico que admite Deus reconhecido tão somente a partir da razão natural. – Ao contrário, o teísmo professa a crença em Deus que se revelou através dos Patriarcas e Profetas bíblicos.

[3] Entre os Mandamentos dos Sábios maçônicos lê-se precisamente o seguinte, reproduzido por T. de Albuquerque à p. 76. – “Procura a Verdade. Sê justo“.

[4] Em nossos dias, dada a nítida distinção entre Igreja e Estado, não seria possível admitir insegurança, por parte dos clérigos, no tocante aos seus deveres eclesiásticos. O fato, porém, pode ter ocorrido nos tempos do regalismo ou do padroado.

[5] A Infame = a Igreja Católica, no pensamento de Voltaire. (Nota do autor).

[6] “Nada de veneno, afirmam os dois cirurgiões di Palazzo e Saliceti“.