Marxismo: Karl Marx: sim ou não?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 322/1989)

Em síntese: O presente artigo considera as principais teses do Marxis­mo e lhes formula um comentário, tentando demonstrar a inépcia dessa dou­trina para atender aos mais genuínos anseios do ser humano. A cosmovisão marxista, materialista como é, não atinge o âmago do ser humano, que tem aspirações transmateriais, tendendo ao Absoluto e ao Infinito.

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Muitos pensadores, inclusive russos, dizem (forçando um pouco as ex­pressões) que atualmente só há marxistas fora da Rússia; os russos mesmos se iludiram e desiludiram a respeito do marxismo, ao passo que os cidadãos de países não comunistas ainda nutrem esperanças a propósito. Este fato es­tranho tem levado os estudiosos a considerar as principais teses doutrinárias do marxismo e procurar averiguar em que e como falham. É o que será feito também nas páginas subseqüentes, levando-se em conta modelos já existen­tes.[1]

É certo que muitos daqueles que se dizem marxistas, nunca estudaram “O Capital” de Marx; muito menos leram o grande acervo de obras que cer­cam Karl Marx, como as de Hegel, Engels, Feuerbach… Trata-se de escritos de difícil leitura, redigidos no século passado, para os quais se requer tempo e certo preparo filosófico. Os marxistas geralmente professam o socialismo de Karl Marx não porque conheçam todo o seu pensamento, mas porque
aspiram à justiça social e julgam que Marx é o arauto de uma sociedade justa e digna.

Para facilitar o nosso estudo, proporemos sucessivamente sentenças marxistas, fiéis à mente de Marx, Feuerbach e sua escola. A seguir, formula­remos um comentário a respeito de cada qual.

1. A Matéria

1.1. Marxismo: Tudo o que é real, é material. Existe somente a maté­ria. O que se chama ‘espírito’, não é mais do que o produto supremo (super­estrutura) da matéria.

Comentário: Marx deixou-se impressionar excessivamente pela importância bruta da realidade material. Não levou em conta suficiente o fato de que, embora a matéria condicione o modo de pensar de muitos homens, em numerosos outros casos o pensar do homem é que plasma e condiciona a matéria. A carência de bens materiais pode até suscitar um modo de pen­sar mais livre (menos obcecado pelas coisas visíveis); a grandeza e a nobreza da pessoa podem desenvolver-se heroicamente na sobriedade de bens mate­riais – o que nem sempre acontece quando o homem é dominado pela obsessão de valores materiais. Diz-se até popularmente: “Quase tudo se fez de quase nada”, isto é: as grandes façanhas e empresas da história nasceram em berço pobre e foram construídas a partir do ideal ou das idéias de seus respectivos autores; as idéias foram anteriores à matéria e a plasmaram.

Com isto não se quer dizer que o ideal do homem seja a penúria de bens materiais (deve-se propugnar a suficiência); mas quer-se dizer que exis­tem valores imateriais, espirituais (o amor, a bondade, a dedicação a uma causa nobre, a gratuidade…), que dão feito à matéria e a condicionam em vez de ser condicionados por ela. Muitas vezes na história o idealismo de um homem, de uma mulher ou de um grupo sobrepujou a força bruta de estru­turas materiais.

Passando para o plano da Filosofia, podemos dizer: o homem é capaz de conceber noções imateriais (que abstraem da matéria), como são as de justiça, direito, amor, bondade, verdade…; tais conceitos correspondem a realidades, mas não são conceitos materiais, visto que não representam obje­tos quantitativos e dimensionais.

Ora, se o homem é capaz de produzir noções imateriais, ele deve pos­suir dentro de si um princípio imaterial ou espiritual, dado que efeito e cau­sa são proporcionados entre si. Tal princípio espiritual é o que se chama alma humana. Esta não é matéria, mas está unida à matéria do corpo, de mo­do a formar com este um só princípio de ação. Mais precisamente: a alma humana, tendo o seu intelecto, serve-se do cérebro para pensar, mas não é o cérebro.

1.2. Marxismo: A matéria é eterna, incriada e indestrutível.

Comentário: Se a matéria é eterna e incriada, ela é absoluta ou inde­pendente de qualquer outro ser; ela, portanto, é divina. Recai-se assim na afirmação de existência de Deus (no sentido panteísta).

Todavia tal afirmação é falsa, pois contém em si urna contradição: o Absoluto não evolui, não muda, pois toda evolução e mudança supõe im­perfeição: é sempre perda ou aquisição de alguma perfeição, pois o que evo­lui, evolui ou para pior ou para melhor.

Ademais a ciência do século XX já ultrapassou a dos tempos de Marx (1818-1883); é freqüente hoje admitir-se o big bang ou uma explosão inicial, que deve ter ocorrido há 18 bilhões de anos aproximadamente. Além disto, verifica-se que o universo tende à neutralização ou à morte térmica de todas as suas energias (lei de entropia). O big bang ocorrido na matéria inicial sus­cita algumas perguntas: Por que existe a matéria? Donde vem ela, já que a matéria é imperfeita e evolutiva? Quem lhe deu as leis da sua evolução? Por que essa evolução segue uma linha sempre ascendente? – A evolução é fina­lista ou obedece a uma finalidade, que a polariza.

Estas perguntas nos levam a admitir um Ser Inteligente e Sábio, res­ponsável pela existência e a evolução da matéria; este Ser é distinto da ma­téria, como o Absoluto e Eterno é distinto do relativo e temporal.

Mais: se a matéria mesma fosse absoluta e eterna, ela deveria conter em suas mínimas partículas originárias inteligência e liberdade de opção, pois ela teria programado com suma sabedoria e precisão o gigantesco pro­cesso de sua evolução. Este, tendo começado há 18 bilhões de anos, passou pela origem da vida há 3 bilhões de anos, pela dos vertebrados há 500 mi­lhões de anos, pela dos primatas há 70 milhões de anos e pela do homem in­teligente e livre há 2 milhões de anos. – Ora é totalmente inadmissível que a própria matéria seja inteligente e livre, de modo a produzir o cosmos har­monioso. Basta lembrar o que acontece em computação: a matéria é progra­mada pela inteligência do homem; ela não se programa, nem se corrige quan­do está mal programada.

2. Religião e Moral

2.1. Marxismo: “A religião é o ópio do povo” (Marx). É elemento ideológico, que as classes dominantes impõem às dominadas para que se con­solem na sua miséria material. Favorecer a religião significa alienar os homens e impedi-los de lutar por uma sociedade terrestre mais justa e feliz.

Comentário: A religião é a atitude que decorre da tomada de consciên­cia de que a existência de seres relativos, volúveis e contingentes exige a de um Ser Absoluto e Necessário. Este Ser Absoluto é Inteligência e Amor, fon­te da inteligência e do amor encontrados nas criaturas.

A tomada de consciência de que esse Ser Absoluto (Deus) existe, sus­cita um relacionamento chamado religião. Esta não é alienante nem destrui­dora dos valores humanos; ao contrário, é a única atitude capaz de dar ao homem um sentido de vida ou razões sólidas para viver, trabalhar, amar e ter esperança. Diz o Concílio do Vaticano II:

A Igreja sustenta que o reconhecimento de Deus não se opõe de modo algum à dignidade do homem, já que esta se fundamenta e se aperfei­çoa no próprio Deus…. A Igreja ensina, além disto, que a esperança esca­tológica não diminui a importância das tarefas terrestres, mas, antes, apóia o seu cumprimento com motivos novos. Faltando, ao contrário, o funda­mento divino e a esperança da vida eterna, a dignidade do homem é
preju­dicada de modo gravíssimo, como se vê hoje com freqüência; e os enigmas da vida e da morte, da culpa e da dor continuam sem solução; assim os ho­mens muitas vezes são lançados ao desespero” (Const.
Gaudium et Spes n° 21).

A concepção de que a religião é ópio do povo baseia-se em deforma­ções ou caricaturas de religião, que infelizmente têm ocorrido na prática de pessoas religiosas.

2.2. Marxismo: As normas morais fazem parte de superestrutura ideo­lógica e são função da economia. Por isto existe a Moral dos capitalistas e a dos proletários: esta última ensina que é lícito tudo que leve à luta de clas­ses, à revolução, à instauração do socialismo sem classes. Tal fim justifica todos os meios.

Comentário: As normas morais se baseiam, em última análise, não no sistema econômico, mas na própria dignidade da pessoa humana. Esta traz em si a lei natural (“não mates, não roubes, respeita pai e mãe…”), que dita os princípios aptos a garantir a realização e evitar a destruição da pessoa hu­mana. Essa lei natural existe em todos os homens igualmente, sem referência às respectivas condições econômicas ou sociais; assim será sempre moralmen­te mau violar o direito do homem à vida, à boa fama, à livre informação, à locomoção… A lei natural está impregnada no próprio ser do homem por obra daquele que o criou (Deus) e o chama, desta maneira, à plenitude da vida e da felicidade.

Por mais nobre que seja o ideal acariciado por alguém, o fim não justi­fica todos os meios, pois há meios que são, em si mesmos, imorais e indig­nos; o seu emprego desfigura a pessoa humana como tal.

3. O Homem

3.1. Marxismo: A evolução da matéria leva ao surto do homem. Este fato tornou-se possível graças ao trabalho. Trabalhando, os macacos toma­ram uma posição erecta, ficando com as mãos livres. O trabalho coletivo provocou a necessidade da linguagem. Os homens fabricaram ferramentas; tornaram-se carnívoros; donde resultou o desenvolvimento do cérebro. Pos­teriormente domesticaram os animais, instituíram a agricultura, a pequena indústria, o comércio, a navegação, a arte, a ciência, a religião, a política, o direito, o idealismo…

Comentário: Deve-se reconhecer que as diferenças morfológicas exis­tentes entre os primeiros homens e os antropóides são de pouca monta. Mas o homem, desde o limiar de sua existência na pré-história, tem expressões psicológicas inéditas, que bem o distinguem dos não-homens: assim a produ­ção do fogo, a fabricação de instrumentos aptos à sua finalidade (pedra las­cada, machados, armas), o sepultamento dos mortos… Tais manifestações não são apenas instintivas e cegas (como instintiva e cega é a fabricação da teia de aranha, do favo de mel da abelha, da galeria subterrânea da formiga); elas provêm da reflexão ou do raciocínio, da capacidade de conhecer o obje­to como objeto, distinto do sujeito; … capacidade não só de conhecer…, mas também de conhecer-se;… não só de saber, mas de saber que sabe. Essa capacidade permite ao homem corrigir-se, melhorar suas obras e assim pro­gredir indefinidamente, coisa que não ocorre entre os seres infra-humanos.

Mais: o homem – e só o homem – é capaz de formular conceitos abs­tratos e universais (justiça, honestidade, amor…); ele pode realizar raciocí­nios, estabelecer relações e proporções, deduzir e induzir, inventar, produzir a ciência, as artes, o direito, a política…, em suma: a civilização. Além disto, possui a faculdade de ser livre ou a possibilidade de autodeterminação entre diversas propostas.

Ora, como dito, grande parte de tais funções são imateriais, não sujei­tas ao determinismo material ou ao espaço e ao tempo. Por isto não podem ser produzidas por um princípio material. Só podem ser explicadas pela pre­sença do espírito ou de uma alma espiritual no homem.

Por sua vez, o espírito, sendo imaterial, não pode ser oriundo da maté­ria, pois o efeito é sempre proporcionado à causa; a matéria é um ser deter­minado, limitado, essencialmente diverso do espírito. Por conseguinte, con­clui-se que a alma humana é criada diretamente por Deus.

Na base destas reflexões, deve-se dizer que o homem começou a exis­tir na face da Terra quando Deus criou o espírito ou a alma humana e a in­fundiu nos primatas irracionais.[2] O ser humano assim constituído foi to­mando contato com o mundo e desenvolvendo suas numerosas possibilida­des de conhecer, querer e amar.

Somente por recurso a este raciocínio filosófico se podem explicar o aparecimento e a implantação do homem com suas potencialidades sobre a Terra. Os marxistas apresentam apenas uma descrição dos fenômenos ou das expressões progressivas do homem sem explicar adequadamente por que apareceram tais fenômenos especificamente humanos.

3.2. Marxismo: O homem é essencialmente um ser de necessidades ma­teriais (comer, beber, vestir-se, defender-se…). Para satisfazer-lhes, elabora seus produtos e assim procura saciar-se. Vai melhorando cada vez mais a qualidade de seus artefatos materiais o que explica o progresso da civiliza­ção.

Comentário: Não se pode adequadamente definir o homem apenas co­mo “um ser de necessidades materiais”. É claro que todo ser humano, desde que nasce, experimenta carências materiais básicas, como as de comer, be­ber… Mas, ainda que tenha essas lacunas preenchidas, ele é inquieto e se­quioso de algo mais; ele quer sempre superar-se ou ultrapassar a si mesmo em demanda do desconhecido (uma expressão deste anseio são as viagens de exploração do Universo através de foguetes espaciais).

Conforme bons psicólogos, a necessidade mais fundamental do ser hu­mano é a de conhecer o sentido da vida, os porquês e para quês do existir, do trabalhar, do sofrer, do ter esperança…; quem não sabe por que vive, por que trabalha e sofre, pode também desinteressar-se do comer e beber ou da conservação da própria existência; nos campos de concentração muitos dos prisioneiros que não viam sentido em sua vida ou que haviam perdido toda esperança, deixavam-se morrer nas pranchas de dormir sujas e anti-higiêni­cas, ainda que espancados e maltratados…

Os homens primitivos podem ter tardado em descobrir suas exigências mais profundas; nisto assemelhavam-se às crianças. Estavam numa fase ini­cial de desenvolvimento. Todavia já se lhes aplicava a definição de Aristóte­les
(+ 322 a.C.), o grande pensador grego, conforme o qual o homem é ani­mal racional, ou seja, um vivente sensitivo, que traz em si as propriedades e exigências do mundo racional (espiritual). Nas grutas da pré-história
encon­tram-se pinturas e artefatos que exprimem o pensamento racional do pró­prio homem das cavernas.

Os cristãos sabem que o vivente racional foi por Deus chamado a ser “Filho de Deus” (cf. GI 4,6; Rm 8,15). Isto quer dizer: a pessoa humana tem um componente corpóreo com suas qualidades próprias; tem outrossim um componente espiritual (ao qual se há de subordinar o corpóreo) e a vo­cação a viver segundo o modelo do Filho de Deus. Desta realidade estrutural decorrem direitos e deveres do ser humano, assim como a sua supremacia so­bre os outros seres visíveis.

4. 0 Trabalho

4.1. Marxismo: O trabalho é o elemento primário gerador de

humanis­mo. E isto por dois motivos: 1) cria produtos que saciam as necessidades hu­manas; 2) desenvolve as faculdades do homem. Por isto o trabalho é o feito primário, radical e originante da história.

Comentários: Sem dúvida, o trabalho é um dos elementos mais impor­tantes para a auto-realização da pessoa. É, sim, mediante o trabalho que o homem coopera para a evolução e o aperfeiçoamento da Terra e da humani­dade.

impõem-se, porém, duas observações:

a) por trabalho não se deve entender apenas o produtivo, industrial ou comercial, mas também toda atividade que encaminhe à elevação e ao aper­feiçoamento dos homens;

b) o trabalho é um dos fatores criadores da história, mas nem sempre o mais importante. Deve-se dizer que o elemento mais profundamente gera­dor de verdadeiro humanismo é o amor, entendido como atitude, de ajuda e serviço desinteressado aos demais homens. Ora é de notar que a palavra “amor-serviço” não faz parte do vocabulário marxista típico, ao passo que “luta, ódio, guerrilha, revolução violenta…” são termos clássicos do lingua­jar marxista.

4.2. Marxismo: A família é conseqüência do impulso sexual, que pro­cura seu objeto natural. No estádio mais antigo da humanidade, existia

pro­miscuidade sexual. Depois, originou-se a família poligâmica e comunitária. Quando começou o regime da propriedade particular, apareceu o matrimônio monogâmico, pois o homem quis saber exatamente quem eram seus filhos para transmitir-lhes as suas riquezas como herança. O homem fez da mulher a sua propriedade particular. Constituiu-se assim a família patriarcal, em que o homem era o senhor e os demais membros, inclusive a esposa, eram es­cravos. Quando a propriedade particular desaparecer, extinguir-se-á a famí­lia monogâmica e as uniões sexuais durarão apenas enquanto durar o amor.

Comentário: As pesquisas antropológicas modernas refutam a tese aci­ma, que data do século passado. Demonstram que a família apareceu de for­mas múltiplas, não podendo ser reduzida a um só modelo para todos os po­vos. Deve-se até dizer que a família monogâmica é, em muitas tribos, ante­rior à poligamia e independente de fatores econômicos; não está ligada à propriedade particular.

Aliás, a antropologia filosófica, levando em conta todos os dados da realidade humano-social, verifica que o matrimônio monogâmico é a moda­lidade natural da família; somente na família monogâmica e estável são ga­rantidas a auto-realização dos cônjuges e a devida educação dos filhos. O amor que une os esposos, há de ser entendido não apenas como atração mú­tua instintiva, mas principalmente como atitude de ajuda e serviço de pessoa a pessoa; neste tipo de amor se acha a raiz da grandeza da família como es­cola de aperfeiçoamento dos cônjuges e da prole.

4.3. Marxismo: Se um homem tira de outro os produtos do seu traba­lho e os acumula, dá origem à propriedade particular e à conseqüente divisão da sociedade em dominadores e dominados. Disto decorrem todos os males da sociedade capitalista. O proletário é reduzido à miséria ou à condição de máquina, ao passo que o capitalista se aliena na posse do dinheiro.

Comentário: Deve-se reconhecer que a propriedade particular, em vá­rios casos, teve e tem origem na apropriação injusta de bens alheios. Disto, porém, não se segue que a propriedade particular tenha sido e seja sempre injusta. Ao contrário, a propriedade particular, quer de bens de consumo, quer de meios de produção, é direito natural da pessoa, a vários títulos:

a) é a expressão e o produto próprio da inteligência e do engenho do indivíduo, que é anterior à comunidade;

b) é fator necessário para estimular o trabalho e a criatividade; sem o quê, pode o trabalhador perder o interesse pelo que faz;

c) é penhor de liberdade e independência da pessoa humana;

d) é garantia de segurança da pessoa, da família e da sociedade;

e) por direito natural também, a propriedade particular há de ser ori­entada ao serviço do bem comum; sobre ela pesa uma hipoteca social.

Em nossos dias, a posse particular de bens é minuciosamente regula­mentada por leis do Estado para que não gere os abusos verificados no sécu­lo XIX. Onde as leis são observadas com honestidade, não se pode dizer que a sociedade se divide em duas classes: dominantes e dominados. Os impos­tos, a Previdência Social, a ação dos Sindicatos são salvaguardas da sociedade contra as tentativas de opressão. Nos países econômica e socialmente mais evoluídos, verifica-se que grande parte da classe operária elevou seu nível de vida a ponto de poder ser considerada classe média.

5. Economia

5.1. Marxismo: O regime capitalista está baseado na mais-valia. Com efeito; o capitalista aluga a força de trabalho do proletário e lhe paga um sa­lário X, suficiente para que o operário possa continuar a viver e trabalhar (salário de sobrevivência). Acontece, porém, que o trabalho produz X + m. Esse m (mais) ou excedente de produção não é devolvido ao trabalhador, mas, sim, absorvido pelo capitalista. Por isto o regime de capitalismo e salá­rio é essencialmente injusto.

Comentário: A teoria marxista da mais-valia não resiste a um exame mais atento. Com efeito; o valor de determinado produto não se deve apenas ao trabalho, mas também à natureza ou à matéria bruta sobre a qual o ho­mem trabalha; há mesmo valores independentes do trabalho. O próprio Marx reconhece: “O trabalho não é a única fonte dos valores de uso produzi­dos por ele ou na riqueza material. Ele é o pai, e a terra é a mãe” (O Capi­tal). Por conseguinte, o valor de determinada mercadoria deve ser distribuí­do entre o trabalho e o capital.

Para mostrar que a teoria da mais-valia (ou teoria de que o lucro é ex­torquido injustamente do trabalho humano) é falsa, pode-se imaginar o se­guinte caso:

Um capitalista fornece água a um estabelecimento. Para acionar a bomba que lhe pertence, emprega dois homens, que abastecem o estabeleci­mento com x litros de água por dia. Neste contexto, conforme a teoria mar­xista, há uma mais-valia que representa precisamente o lucro do capitalista. Se, porém, este substituir os dois empregados por dois cavalos, que conse­guem, graças ao seu maior vigor, fornecer duas vezes mais litros de água, o lucro obtido pelo capitalista será mais elevado; apesar disto, não havendo mais trabalho humano, não haverá mais-valia no sentido marxista. Contudo o serviço prestado será indubitavelmente mais útil; por isto terá um valor de troca (preço) superior, embora a mais-valia tenha desaparecido. – Donde se vê que o valor de troca não está necessariamente ligado ao trabalho e pode existir sem que haja qualquer mais-valia. É certo também que o capital se pode aumentar sem exploração do trabalhador; isto se dá mediante convê­nios que complementam duas ou mais indústrias ou lojas entre si, mediante o aperfeiçoamento dos instrumentos de trabalho, pelo engenho, a constân­cia e a perspicácia dos proprietários, pelo aproveitamento de oportunidades.

De resto, os próprios Governos comunistas, embora neguem o regime da mais-valia, praticam-na de forma velada, caindo assim em evidente con­tradição.

Verifica-se, aliás, que nos países comunistas continua a vigência do ca­pitalismo, com a diferença, porém, de que o grande capitalista é o Estado; este dispõe, de maneira absoluta, de todos os meios de produção, extinguin­do a liberdade e a iniciativa dos cidadãos, que assim ficam privados do exer­cício de seus direitos naturais. É mais agressivo o capitalismo do Estado do que o dos particulares, porque não há poder que o controle, ao passo que o capitalismo dos particulares é regulamentado pelas leis sociais, que o podem tornar útil à coletividade, sem lhe tirar a livre iniciativa e a criatividade.

Note-se também que nos países comunistas se restaura a classe domi­nante, que é a dos governantes e seus colaboradores. Na Rússia Soviética, chama-se Nomenklatura, cujo funcionamento é descrito por Michael Vos­lensky no livro Nomenklatura. Os privilegiados na URSS, comentado em PR 265/1982, pp. 483-498. Ver também a obra de Milovan Djillas, A nova Clas­se. Ed. Agir, Rio de Janeiro.

5.2. Marxismo: A concorrência de capitalistas contra capitalistas fará que os mais poderosos destruam os mais fracos. Assim diminuirá cada vez mais o número de capitalistas. Em conseqüência, também aumentará o núme­ro de proletários explorados, que, tornando-se multidões, ganharão enorme poder para derrubar o capitalismo. Por conseguinte, este se autodestruirá por efeito de sua própria lógica.

Comentário: A história ou o processo de desenvolvimento industrial ca­pitalista seguiu exatamente um curso oposto ao que previu Marx. Os países ocidentais, que, segundo Marx, estavam fadados a cair sob regime comunis­ta, conseguiram, de modo geral, elevar o seu nível econômico em benefício da grande maioria dos seus concidadãos. O regime capitalista aí não se auto­destruiu, mas modificou-se e corrigiu suas falhas: em vários casos registra-se ou preconiza-se a participação dos operários na propriedade e nos benefícios da empresa, assim como na gestão da mesma. Assim, em vez de antagonismo de classe, verifica-se colaboração solidária entre empregadores e empregados; as Cooperativas são formas de atendimento a interesses comuns de produto­res e trabalhadores.

O fato de que as previsões marxistas relativas à autodestruição do capi­talismo e a outros pontos não se cumpriram, evidencia que a chamada “aná­lise sócio-econômica” marxista não pode ser tida como uma proposição “científica”.

5.3. Marxismo: A sociedade é superior à pessoa. O homem só alcança a sua realização como membro de uma sociedade civil. O sujeito de direitos e deveres é a sociedade; é também ela o sujeito da liberdade. O indivíduo rece­be da sociedade seus direitos, seus deveres e sua liberdade.

Comentário: Aqui temos uma expressão típica do coletivismo marxis­ta, que é capaz de sufocar o indivíduo em benefício, presumidamente, da so­ciedade. O coletivismo faz que no marxismo o cerceamento dos direitos do indivíduo (à informação, à locomoção, ao associar-se com outros, à criativi­dade…) seja algo de lógico e normal. Segundo o marxismo, a Moral e o Direi­to são essencialmente relativos; o que hoje é lícito e justo, amanhã poderá não o ser, pois oscilará segundo os interesses da classe proletária, que são in­teresses econômicos. É ao Partido Comunista que cabe definir a verdade, o bem, o mal, o justo e o injusto… – o que redunda em certo maquiavelismo (o fim justifica os meios, vale tudo o que leve às metas almejadas…).

Em perspectiva cristã, afirma-se que a pessoa humana é anterior e su­perior à sociedade. Independentemente da sociedade, ela é o sujeito primei­ro da liberdade, dos direitos e dos deveres. Estes não lhe são outorgados pela coletividade, mas derivam-se da própria índole da pessoa, que o Cristianismo diz ser imagem e semelhança de Deus. Verdade é que á pessoa precisa da so­ciedade para se auto-realizar; o homem é animal social por sua própria natu­reza. Pos isto ele tem deveres para com a sociedade a fim de que ele possa ser ajudado por esta. Daí a necessidade de que os direitos e deveres do indi­víduo se harmonizem com os dos demais homens e não se hipertrofiem com detrimento do bem comum.

As relações que ligam os homens entre si, são dos mais diversos tipos: relações de amor, família, defesa, expressão artística, expressão religiosa, es­portes, produção industrial, comércio… Por isso não se devem reduzir as re­lações interpessoais a termos de produção econômica e comércio. Com ou­tras palavras: o fator econômico não basta para explicar os diversos tipos de atividade e intercâmbio existentes entre os homens, pois há atividades cujo interesse ultrapassa o meramente econômico: assim a investigação científica, a reflexão filosófica, o cultivo do direito, da religião, a assistência sanitária e outros serviços… têm um cunho de gratuidade, que une e enobrece as pessoas.

5.4. Marxismo: A estrutura do homem e da sociedade consta unica­mente de bens materiais. Essa estrutura gera as suas superestruturas, que são os bens da consciência: a filosofia, a religião, a Moral, a arte… Essas
superes­
truturas são todas relativas e oscilam em função da distribuição dos bens materiais ou da economia.

Comentário: Os fatores econômicos, como dito, não são necessaria­mente decisivos na vida da sociedade. Esta não tem uma causa única do seu desenvolvimento. Pode-se dizer que a sociedade e a história são movidas por vasto complexo de elementos, ora dependentes, ora independentes uns dos outros. Muitos movimentos “revolucionários” da história tiveram na sua ori­gem um ideal humano ou religioso, caracterizado pelo desprendimento e o altruísmo.

Em última análise, a sociedade e a história têm como ator básico o ser humano, que não está sujeito ao determinismo ou a leis necessárias, mas é criativo e livre; o homem é um sistema de fatores múltiplos, que se
combi­nam imprevisivelmente. Por isto torna-se difícil – se não impossível – esta­belecer leis fixas e determinantes do processo histórico.

Contra o relativismo jurídico, moral e religioso (relativismo devido à oscilação dos fatores econômicos), deve-se afirmar que muitos dos princí­pios éticos, jurídicos e religiosos da humanidade têm valor universal, porque decorrentes da própria natureza humana; esta é a mesma em todos os con­tinentes e tempos, independentemente das condições de produção e comér­cio vigentes. Testemunho disto é a Declaração dos Direitos Humanos pro­mulgada pela Organização das Nações Unidas em 1949: proclamou normas jurídicas válidas para todos os modelos de sociedade, qualquer que seja o seu regime sócio-econômico.

A inteligência humana é precisamente a faculdade de intus-legere ou de ler as linhas essenciais e permanentes da realidade; na base deste exercí­cio, ela formula princípios objetivos, necessários e universais, que explicitam os valores permanentes do homem. Sirva de exemplo, como dito, a Declara­ção dos Direitos Humanos.

5.5. Marxismo: A história, movida por fatores econômicos, desenvol­ve-se em cinco grandes etapas, que são: coletivismo pré-histórico, escravatu­ra, feudalismo, capitalismo, comunismo. Esta última etapa está por reali­zar-se; quando ocorrer, os homens estarão regenerados e não haverá mais ne­cessidade de Estado, polícia, tribunais, exército…; desaparecerá o dinheiro, símbolo da propriedade particular. O trabalho será um fator de auto-realiza­ção, sobre o qual ninguém exercerá o mínimo controle.

Comentário: A história humana tem-se desenvolvido de modos muito diversos nos vários continentes, visto que depende de fatores múltiplos e complexos. Por isto nenhuma sistematização teórica tem valor geral. A
divi­são marxista em cinco etapas é excessivamente simplificadora da realidade, apoiando-se, em última análise, num falso determinismo econômico. O curso atual da história, nos países mais desenvolvidos em todos os sentidos, leva a crer que a humanidade não caminha para o comunismo, mas para sistemas sócio-econômicos que procuram conjugar a liberdade e a dignidade da pes­soa humana com formas de colaboração social e comunitária.

De resto, a etapa comunista assinalada por Marx não parece ser senão um sonho romântico absolutamente inexeqüível. Os países que têm feito a experiência do marxismo, em vez de se encaminharem mais e mais para o comunismo, distanciam-se progressivamente deste e reassumem instituições rejeitadas por Marx; tenham-se em vista a Rússia, a China, a Hungria… A abolição da propriedade particular, a supressão das classes, o
desaparecimen­to do Estado, a supressão do dinheiro, da polícia, dos tribunais… são teses utópicas, nas quais ninguém acredita com seriedade. A natureza humana, boa como tal, é marcada por tendências à desordem (pecado original!) – or­gulho, avareza, ódio, injustiça -, das quais só os mais santos conseguiram libertar-se. Os bens materiais e os fatores econômicos excitam a cobiça, o he­donismo, a ganância… É, antes, a elevação do homem no plano espiritual que o torna morigerado e santo.

Ademais pergunta-se: conforme Marx, a história procede segundo o ritmo de tese, antítese e síntese (que é o da dialética da matéria), pois a realidade é essencialmente dialética. Ora não será que a própria etapa comunis­ta, uma vez atingida, será superada pela lei da dialética? Esta não deverá re­começar o processo de antítese e síntese (nova)? Caso alguém responda que não, concluir-se-á que a realidade não é essencialmente dialética.

6. Conclusão

Acabamos de percorrer os traços principais do marxismo ortodoxo, verificando que não se sustentam, como, aliás, a própria experiência de mais de setenta anos evidencia. Nas raízes da ideologia marxista existe a sadia
as­piração à justiça social. O Cristianismo compartilha este mesmo anseio, mas desenvolve-o em direção diferente, penetrando mais fundo dentro da pro­blemática: sim, o homem é um mistério, um ser material que não é apenas matéria, mas tem um quê de transcendente ou de espiritual. Somente quem respeita este aspecto da pessoa, pode responder satisfatoriamente aos seus anelos. Por isto a Igreja elabora a sua Doutrina Social (formulada nas Encí­clicas papais), que procura tirar diretamente do Evangelho as normas do au­têntico comportamento do homem em sociedade. A religião, longe de ser ópio do povo, é o fator mais dinamizador que se possa conceber, porque ela fala e age em nome do próprio Deus. Por isto o cristão não fica inerte diante dos problemas sociais, mas também não recorre ao marxismo sufo­cador da liberdade; ele procura, sim, no Evangelho, comentado pela Igreja, as grandes linhas doutrinárias para ser um genuíno construtor do Reino de Deus na terra.

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NOTAS:

[1] Cf. Carlos Valverde, Tesis de Marx. Tesis sobre Marx. Cuadernos BAC no 65. Madrid (Mateo Inurria 15, Madrid 16) 1983.

Paul-Eugene Charbonneau, Marxismo e Socialismo Real. Ed. Loyola, São Paulo 1984.

[2]Ver pp. 123s. 126s deste fascículo.