Marxismo: pode um cristão ser marxista

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 276/1984)

por Urbano Zilles

Em síntese: O Pe. Urbano Zilles, professor da PUC-RS, considera nove pontos em que Cristianismo e marxismo se defrontam, mostrando a total incompatibilidade entre um e outro. O marxismo seduz porque propõe um certo humanismo, visando a libertar o homem da exploração e da escra­vidão. Todavia, por seus princípios filosóficos materialistas e ateus, o marxismo é inepto para realizar esse programa. Só leva o homem a nova forma de exploração e escravidão por parte do Estado absolutista e capita­lista. Por isto o Cristianismo censura o marxismo por não ser suficiente­mente humanista ou por não reconhecer o segredo da plena realização do homem: “Senhor, Tu nos fizeste para Ti, e inquieto é o nosso coração enquanto não repousa em Ti”. O imanentismo materialista do comunismo é a mais forte bofetada na face do homem feito para o Absoluto e o Infinito!

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O Prof. Pe. Urbano Zilles, da PUC-RS, acaba de publi­car um livro sobre Cristianismo e marxismo[1], que merece atenção. Estuda de maneira sistemática os pontos em que cris­tãos e marxistas se defrontam entre si (religião, trabalho, humanismo, salvação, verdade… ) e conclui não haver con­ciliação entre as duas cosmovisões. Esta tese não é nova; ao contrário, tem sido freqüentemente afirmada pelo magistério da Igreja e por abalizados pensadores cristãos; todavia ou­vem-se, de vez em quando, vozes de cristãos que se dizem marxistas e fazem a apologia da sua posição.

Eis por que nos voltaremos com especial interesse para o livro em foco, do qual destacaremos alguns tópicos mais rele­vantes.

CRISTÃO E MARXISTA?

São várias as frentes de divergência entre cristãos e mar­xistas. A mais fundamental é a que ocorre entre

1. Materialismo ateu e visão cristã

1. Marx professa o monismo materialista: «o real é iden­tificado com a matéria, e o espiritual torna-se sinônimo de ficção» (p. 17). «O que existe, é a matéria eterna, incriada, indestrutível, sempre em movimento. Tudo se explica pela dia­lética da matéria. Torna-se absurdo recorrer a hipóteses inve­rificáveis, como, por exemplo, Deus» (p. 17).

Pergunta Zilles: «Não é o materialismo dialético uma espécie de metafísica de tipo panteísta? Não se trata de uma laicização teológica, que atribui à matéria todas as proprieda­des do ser perfeito que a Teologia chama Deus?» (p. 18).

A dialética da matéria, que perfaz a história da humani­dade, segundo Marx, exprime-se na luta de classes movida por interesses econômicos. São as condições econômicas que dão origem às super-estruturas da sociedade: moral, religião, di­reito, filosofia, arte… Estas, por conseguinte, são oscilantes como oscilantes são as estruturas econômicas da vida social.

O ateísmo está implícito em tais proposições do marxismo. A religião encarna uma ilusão; ela enriquece a Deus para em­pobrecer o homem. Por isto o marxismo ortodoxo propõe a luta contra a religião até aniquilá-la; em conseqüência, não se pode falar de «marxista cristão».

2. Ao contrário, o Cristianismo professa que o mundo material foi criado por Deus (não necessariamente em seis dias de vinte e quatro horas) e é chamado a regressar a Deus. «Neste universo material, o homem é uma unidade composta de matéria e espírito. Pelo seu corpo, faz parte do mundo, e o mundo material faz parte dele. Pelo espírito é capaz de erguer-se a Deus. No homem encontram-se Deus e mundo, tempo e eternidade, matéria e espírito… » (p. 22).

A matéria não tem sentido em si. Acena para Deus, que nela e através dela atua. Na ressurreição de Jesus a matéria participa da transfiguração; nos sacramentos ela se torna canal da graça para o homem. Cabe ao homem orientar o mundo material criado por Deus e transformá-lo através do trabalho pessoal e comunitário. O Evangelho ensina que o homem só se realiza plenamente transcendendo a si mesmo para per­der-se em Deus. Dá-se a Deus dando-se ao próximo.

Donde se vê que crer em Deus não é renegar o homem; antes, liberta-o do efêmero, orientando-o para o Infinito. Vê-se também que o homem não se realiza plenamente senão em Deus.

2. A Religião

1. Hoje em dia fala-se de «cristãos marxistas», não, porém, de «marxistas cristãos». O marxismo rejeitou a reli­gião como sendo «ópio do povo» ou «consolação procurada pelo povo porque não ousa a revolta e desconhece o caminho da vitória» (p. 25).

«O juízo sobre a religião é que caracteriza a ortodoxia marxista. Quem se converteu ao ateísmo marxista, conver­teu-se realmente ao marxismo. No momento em que algo mu­dasse quanto à concepção de religião, mudaria profundamente o marxismo» (p. 27).

Todavia o marxismo assume um caráter messiânico pro­metendo uma nova sociedade e uma humanidade regenerada mediante o sacrifício do proletariado, que se imola em prol do bem comum; Marx transfere para o proletariado os predicados do Messias. Assim o marxismo torna-se um substituto da reli­gião. «Enquanto a religião pede a obediência a homens que representam Deus, o marxismo exige a obediência a homens que representam o homem» (p. 56).

2. Para o Cristianismo, a religião é o relacionamento do homem com Deus, que só tende a dignificar o homem e tor­ná-lo mais eficiente construtor do mundo visível. Negar Deus significa expor o homem ao domínio do próprio homem. «Pro­vavelmente não se teria chegado à formulação de direitos hu­manos sem o Cristianismo» (p. 46).

É também a crença em Deus que dá sentido à vida do homem na terra. Este sabe que luta e sofre com esperança de colher em outra vida os frutos que ele não colhe na vida presente. «O homem sabe que vive para a morte. Por isto, esta vida só adquire sentido se a morte tiver sentido. E qual o sentido da morte numa concepção marxista?» (p. 51). O marxismo «deixa insatisfeitas as esperanças mais íntimas da alma humana, para considerar a pessoa apenas sob o aspecto de sua função de agente de forças sociais» (p. 57).

Ademais: «se a religião é uma ideologia que sempre tem servido às classes dominantes, como se explica que o Cristia­nismo tenha permanecido apesar das mudanças das condições econômicas nas quais nasceu?» (p. 30).

«O marxismo prometeu tornar supérflua a religião. Esta promessa talvez lhe seja de mais difícil execução do que substituir a ordem econômica e social do capitalismo por outra me­lhor. Nos países em que o regime comunista já se estabeleceu, a religião talvez seja a única grandeza do `espírito objetivo’ que ainda existe, ou seja, que ele não conseguiu eliminar nem assimilar até hoje. Tudo isto pode indicar que o tempo da reli­gião ainda não passou» (p. 31).

3. Humanismo

1. O marxismo propõe «um humanismo fechado: o ho­mem é a sua própria luz, o seu fim único e último, o único artífice da sua felicidade e do seu destino; em resumo, é a norma absoluta do seu pensar, da sua vontade e do seu agir e a medida de todos os valores» (p. 23).

Propõe também um humanismo militante e revolucionário, chamado a travar a luta entre explorados e exploradores no campo econômico; a luta entre o bem e o mal coincide com a luta entre as duas classes. As revoluções, mesmo violentas, são uma legítima defesa dos escravos contra a violência dos senhores (cf. pp. 49s).

«No marxismo os homens devem consolar-se com um futuro melhor (= a sociedade regenerada), que eles jamais alcança­rão. É esta realmente uma perspectiva humana. O homem individual é totalmente sem importância» (p. 58).

2. O Cristianismo reconhece a dignidade da pessoa hu­mana independentemente das condições de raça, classe, cultura ou fortuna. A pessoa humana tem valor incomparável em si, mesmo que seja derrotada pela vida, pobre e ignorante… Vale, porque sua vida vem de Deus, do qual é imagem e seme­lhança. Esta dignidade, o Estado não lha pode tirar (cf. p. 52). «Uma vida fracassada aos olhos deste mundo pode ter valor pessoal, alegria e paz. No malogro e no fracasso humanos de Cristo fomos salvos para uma vida nova; nasceu o homem novo e definitivo, que ainda dormita em nós na espera de sua plena realização» (p. 58).

O humanismo cristão não é alienante. «Cultiva as virtu­des da coragem e da audácia. Os santos cristãos não foram, nem são, burgueses tranqüilos e acomodados. Aliás, o Evan­gelho de Cristo é apelo à grandeza e ao heroísmo. Por isto o cristão autêntico tem repugnância à mediocridade… Não pac­tua com o pecado, nem na ordem individual nem na social… Reconhecer a Deus como Pai exige reconhecer o semelhante como irmão. O cristão não se fecha em si mesmo» (p. 52).

4. A salvação

1. Como forma de humanismo ocidental, o marxismo é uma doutrina de salvação.

A salvação que o marxismo oferece, é a progressiva feli­cidade material numa sociedade sem classes, na qual serão realizados os ideais da liberdade, da igualdade e da fraterni­dade. Apresenta-se, em outras palavras, como uma forma de «religião» perfeita da humanidade e da felicidade. A fim de atingir este objetivo, programa o método da revolução vio­lenta, para a qual o operariado tem que ser atiçado (cf. pp. 55s). No fim do processo revolucionário aparecerá o ho­mem novo, comunista, numa sociedade em que não mais haverá Estado, nem partidos, nem classes sociais. Por ora «o mal radical, o pecado original é a alienação econômica» (p. 56). A salvação consiste em libertar o homem da servidão econômica.

2. Quanto ao Cristianismo, ele não crê que, «mesmo rea­lizando-se a utopia de uma sociedade sem classes, se resolvam todos os problemas humanos. Há formas de alienação que independem de melhoras sociais, como é o caso da incoerência entre nossos propósitos mais nobres e a fragilidade de nossa conduta moral. Mais: «que importância teria um moribundo no conjunto da futura humanidade, segundo a concepção mar­xista? Que humanismo é este que não consegue explicar nem dar sentido à situação-limite da doença e da morte? » (p. 57).

O Cristianismo também ensina que o homem tem seu des­tino, em grande parte, nas próprias mãos: o destino eterno como o temporal. Entretanto também reconhece que não nos podemos salvar só com nossas próprias forças. Afirma que somos salvos pela morte e ressurreição de Cristo.

A salvação cristã pode implicar a capacidade de coexistir com o mal, a doença e a morte. Ela se realiza mediante a cruz em situações difíceis, muitas vezes através do amor aos próprios inimigos. O cristão sabe que no decorrer da história deste mundo ele já usufrui do penhor e de elementos da sal­vação definitiva, mas tem consciência clara de que a plenitude das respostas aos seus anseios só lhe será dada no fim dos tempos e no encontro face-a-face com o Senhor Deus.

5. A verdade

1. «Embora o marxismo admita verdades definitivas na matemática, na física e na biologia, a verdade não tem cará­ter absoluto para um comunista. E isto porque as idéias e as categorias mentais do homem apenas exprimem as relações sociais, contingentes por natureza. As idéias dominantes de uma época são as da classe dominante. Conclui-se disto que aquilo que hoje se apresenta como verdade universal, segundo o marxismo, não passa de uma representação que a ideologia burguesa faz da realidade. Seria inútil querer dialogar com filósofos e cientistas burgueses, porque há um abismo intrans­ponível entre burgueses e proletários por haver dois tipos de consciência diferentes. Entre eles não há princípios comuns. Por isto não há verdade universal, mas só há verdade de classe. Por conclusão, só há a verdade do Partido» (p. 66).

2. O Cristianismo ensina que existe a verdade objetiva, absoluta, válida para todos os homens, independentemente da respectiva condição sócio-econômica. Para chegar a apreen­dê-la, o homem tem que se libertar de preconceitos, paixões, erros de percepção … – o que pode e deve ser feito pro­gressivamente mediante a colaboração de todos os interes­sados no conhecimento da verdade.

No plano da fé, o cristão sabe que Jesus Cristo é a Ver­dade e a Vida (cf. Jo 14,6). Ele incita os seus discípulos a praticar a verdade, convertendo-se do pecado para a fidelidade a Deus a fim de se tornarem colaboradores de Deus na cons­trução do mundo.

O materialismo histórico teria que ser provado pela prá­tica. Não pode ser aceito simplesmente como um dogma. Com efeito; observemos o seguinte: confiando na teoria científica de Marx, Engels previu a revolução sócio-econômica na Ingla­terra para breve. Ora esta não ocorreu até hoje. Através de toda uma série de mudanças, perdurou na Inglaterra a con­tinuidade.

6. Conclusão

O fecho do livro de Urbano Zilles considera concreta­mente a tese de vários cristãos latino-americanos que desejam conciliar entre si marxismo e Cristianismo.

Começa, pois, por citar o Documento de Puebla:

«Alguns crêem possível separar diversos aspectos do marxismo, em particular sua análise. Recordamos com o magistério pontifício que seria ilusório e perigoso chegar a esquecer o nexo íntimo que os une radicalmente; aceitar os elementos da análise marxista sem se conhecer suas relações com a ideologia; entrar na prática da luta de classes e de sua interpretação marxista, deixando de perceber o tipo de sociedade totalitária e violenta a que conduz tal processo» (n° 544).

Na verdade, alguns cristãos, cientes de que o marxismo é visceralmente ateu, em oposição ao Cristianismo, pretendem distinguir aspectos do marxismo, a fim de abraçar ao menos aqueles que não impliquem ateísmo; entre estes aspectos, esta­ria a análise marxista da sociedade (dividida em opressores e oprimidos, que se digladiam por razões econômicas).

Em con­seqüência, há cristãos que, embora não aceitem o marxismo na íntegra, adotam o tipo de análise da sociedade proposto pelo marxismo. Ora a tais irmãos quiseram os Bispos em Puebla, fazendo eco ao S. Padre, dizer que tal distinção não é possível; a própria análise marxista da sociedade está im­pregnada de ateísmo materialista e leva cada vez mais a este.

«É curioso não encontrarmos marxistas cristãos, mas apenas cris­tãos que se dizem marxistas. Do ponto de vista do marxismo ortodoxo, é impossível ser marxista cristão. Primeiro, porque o marxismo é um todo, do qual não cabe aceitar, por exemplo, a análise sem aceitar o materialismo histórico, o ateísmo, a teoria e a estratégia da luta de classes. Em segundo lugar, porque os marxistas devem ser levados a sério; eles mesmos rejeitam a separação entre análise, de um lado, e, por outro, a visão do mundo e os princípios de ação. Por isto devemos… reconhecer que não se pode ser cristão marxista. Ou alguém é cristão ou é marxista, pois até é ridículo chamar-se marxista» (pp.69s)

A seguir, com muita pertinência, observa o Pe. Zilles:

«O que o Cristianismo objeta ao marxismo, não é ser ele humanista, mas não o ser suficientemente». O Cristianismo não recusa o combate às alienações, mas julga que o marxismo não as combate radicalmente e, por isto, gera novas aliena­ções. O Cristianismo não se opõe à dialética do senhor e do escravo, mas julga que o marxismo permanece vítima da mesma. O que o Cristianismo espera do marxismo, é uma fidelidade mais decidida ao homem todo e a todos os homens. Cf. p. 71.

«Alienação» neste contexto é a condição do homem que sofre exploração econômica, política, social… e não se revolta. Ora é claro que o Cristianismo não aceita tal estado de coisas. Ele prega o respeito ao homem ou o humanismo. – O mar­xismo também prega seu humanismo; todavia não consegue libertar o homem da exploração e da escravidão, pois subor­dina os cidadãos aos ditames do Estado capitalista, absolutista e escravizador; o marxismo não sai da esfera do meramente humano; por isto não consegue propor ao homem a resposta cabal; esta só se encontra na transcendência ou em Deus. Em conseqüência, os cristãos podem reconhecer as boas intenções dos marxistas, mas verificam que são de todo ineficientes, pois ignoram o segredo do homem sabiamente formulado por S. Agostinho: «Senhor, Tu nos fizeste para Ti, e inquieto é o nosso coração enquanto não repousa em Ti» (Conf. I, 1). Se o marxismo reconhecesse que o homem não foi feito para se realizar apenas na matéria, teria possibilidade de responder ao homem, … mas já não seria marxismo!

«Caberia analisar mais criticamente as hipóteses e teorias mar­xistas em vez de pressupô-las de maneira dogmatista e como definitiva­mente válidas. Assim, embora seja verdade que os fatores econômicos, em qualquer realidade social, são decisivos, não são os únicos. Nunca foi demonstrado que toda a história humana, passada e presente, possa ser reduzida à luta e, muito menos, à luta de classes, no sentido estrito da palavra. É ingênuo e ridículo querer compreender toda a realidade social por meio da dialética do senhor e do escravo. Há outras forças profundas que inspiram e movem a história. Mesmo que reconheçamos a realidade de que existe a luta de classes, disso não podemos concluir que a única maneira de superá-la seja a própria luta: a classe operária contra a classe burguesa» (p. 71 )

Por último, o Pe. Urbano Zilles apregoa uma alternativa cristã entre o capitalismo liberal e o marxismo totalitário:

«Certamente, o maior desafio do marxismo ao Cristianismo hoje é que os cristãos traduzam, em obras políticas, sua fé e mostrem que a fé é capaz de produzir o novo e que, vivida, torna-se uma força libertadora e transformadora não só das pessoas individuais, mas também das estruturas sociais e econômicas injustas. O caminho é uma conversão radical dos cristãos na prática. Numa concepção cristã de sociedade, todos deverão ser para cada um (capitalismo) e cada um para todos (socialismo) » (p. 72).

Eis, em síntese, o conteúdo de valioso livro, que merece difusão, pois certamente contribuirá para levar luzes às men­tes e dissipar daninhos equívocos. As intenções humanistas do marxismo seduzem não poucos, mas os princípios filosóficos que o marxismo adota são ineptos para satisfazer a tais inten­ções: o imanentismo materialista do comunismo é a mais forte bofetada na face do homem, feito para o Absoluto e o Infinito!

Estêvão Betteneourt O.S.B.

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NOTAS:

[1] ZILLES, U., Pode um cristão ser marxista? – Livraria Editora Acadê­mica, Porto Alegre 1984.