(Revista Pergunte e Responderemos, PR 400/1995)
Em síntese: A Igreja acredita na possibilidade de aparições e revelações particulares, pois estas ocorreram desde os tempos bíblicos (a São Paulo, a São Pedro, a Sto. Estêvão…) através dos séculos até nossos tempos. Todavia, como Mãe e Mestra, a Igreja é prudente e não se precipita no julgamento dos fenômenos. Manda examiná-los por peritos; em alguns casos, o laudo daí resultante é negativo (pois se verifica doença mental ou algum fator de ordem moral incompatível com uma intervenção do céu); em outras ocasiões, o laudo pode ser favorável ao culto da Virgem SS. como decorre dos fenômenos avaliados. (são os casos de Lourdes e Fátima); em outras situações ainda, não aparece por que condenar os fenômenos, como também não há por que lhes dar abono (ainda que indireto); em tais circunstâncias, a Igreja não interfere nas demonstrações de piedade ocorrentes nos lugares das supostas aparições, tendo em vista o aspecto pastoral ou os benefícios espirituais e físicos que resultam das peregrinações e celebrações ligadas a esses lugares.
Como quer que seja, o bom senso lembra que vivemos numa época de crise e desânimo, em que grande parte das populações é propensa a imaginar soluções extraordinárias e fenômenos raros, visto que os recursos convencionais do saber humano não resolvem os problemas da humanidade contemporânea. É de notar também que uma autêntica aparição não poderá senão confirmar as verdades do Evangelho; profecias muito minuciosas são suspeitas de inautenticidade. O que fica sempre é a mensagem: oração e penitência, como resultado de uma genuína aparição.
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Têm-se multiplicado, no Brasil e no estrangeiro, fenômenos de aparições atribuídas à Virgem SS.. As opiniões se acham divididas a respeito, pois, ao lado dos que crêem facilmente numa intervenção do céu, há aqueles que recusam ceticamente dar-lhes crédito. Em muitos casos perguntam o que a Igreja pensa a respeito deste ou daquele caso ou no tocante às aparições em geral.
Vamos, pois, nas páginas subseqüentes, apresentar as linhas-mestras da doutrina e da atitude da Igreja frente ao fenômeno “Aparições”, valendo-nos especialmente do opúsculo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil intitulado “Aparições e Revelações Particulares” (Coleção “Subsídios Doutrinais da CNBB” n° 1).
Comecemos por descrever mais detidamente o problema.
1. OS FATOS
Desde o século XVI tem-se notado, com maior freqüência do que antes, o fenômeno “aparições”. Assim em 1531 em Guadalupe a Virgem SS. terá aparecido ao índio Juan Diego; em 1858 em Lourdes (França) a Sta. Bernadete Soubirous; em 1917 em Fátima (Portugal) a três pequenos pastores. No Brasil, a partir de 1960 registram-se os casos seguintes:
1. 1960 em diante: em Erechim, Rio Grande do Sul, Nossa Senhora da Santa Cruz estaria
manifestando a Dona Dorotéia.
2. 1967-1977: Nossa Senhora da Natividade teria aparecido ao Dr. Fausto Faria, em Natividade, Rio de Janeiro.
3. 1975 em diante: a imagem de Nossa Senhora do Senhor Morto estaria sangrando e transmitindo mensagens a Dona Hermínia Morais de Souza, em Itú, São Paulo.
4. 1987-1988: Alfredo Moreira teria visto Nossa Senhora da Obediência e dela recebido mensagens, em Congonhal, Minas Gerais.
5. 1988: um grupo de crianças estaria vendo Nossa Senhora e recebendo dela mensagens, em Taquari, Rio Grande do Sul.
6. Após 1988 até nossos dias numerosos são os casos que vão sendo registrados.
Além desses, citam-se no Brasil muitos outros relatos de fatos extraordinários, como o de Dona Edelmira de Paiva Nunes: o forro de sua casa desabou, deixando intacta a imagem de Nossa Senhora; vários romeiros teriam visto a imagem de Nossa Senhora da Penha lacrimejar, no Rio, 1984; a Igreja de Nossa Senhora, Rosa Mística, em Juiz de Fora, teria vertido água; o altar de Nossa Senhora, Rosa Mística, em Jacarezinho, no Paraná, também teria vertido água, em 1987; o mesmo teria acontecido em Oliveira Fortes, Minas Gerais, com três quaresmeiras. Fora do Brasil, um elenco de aparições no século XX encontra-se em PR 390/1994, pp. 508-510.
Vejamos o que pensar a respeito.
2. QUE DIZER?
2.1. Atitude da Igreja
A Igreja crê na possibilidade de aparições do Senhor e de seus Santos, pois a própria Escritura atesta a ocorrência de autênticas aparições. Assim São Paulo, na estrada para Damasco, foi impressionado por uma visão do Senhor, que o chamava à conversão (cf. At 9,3-9); São Pedro teve uma visão antes de ir à casa do centurião Cornélio (cf. At 10,9-11); S. Estêvão, antes de morrer, viu a glória de Deus e Jesus à direita do Pai (cf. At 7,55s). Todavia, antes de se pronunciar a respeito de alguma aparição, a Igreja é cautelosa; manda examinar cada caso criteriosamente, pois sabe que muitas vezes os fiéis, com toda a boa fé, podem imaginar estar vendo e ouvindo o que não passa de projeções de sua fantasia.
O exame de determinado caso pode chegar a uma das três seguintes conclusões:
1) O laudo é negativo, pois se verifica que, da parte dos(as) videntes, há debilidade mental, fantasia exuberante, desonestidade, charlatanismo… Tal foi o caso das visões de Garabandal (Espanha). A Igreja também se pronunciou negativamente sobre as “revelações” do Senhor a Sta. Brígida.
2) O laudo registra frutos positivos no plano espiritual e físico (conversões, afervoramento, curas de doenças e outros benefícios…), ao passo que nada desabona a saúde mental e a honestidade de vida dos(as) videntes. Em tais casos, a Igreja não somente permite, mas favorece o culto ao Senhor ou ao(à) Santo(a) que se julga ter aparecido. Daí o culto a Nossa Senhora de La Salette, a Nossa Senhora de Lourdes, de Fátima…, havendo a festa respectiva no calendário litúrgico da Igreja. Note-se bem: embora a Igreja favoreça o culto a Nossa Senhora em tal ou tal lugar, ela nunca diz, nem dirá, que a Virgem SS. apareceu; o fenômeno “aparição” não pode ser definido pela Igreja como verdade de fé. A revelação pública e de fé divina está encerrada com a geração dos Apóstolos; nenhum artigo pode ser acrescentado ao Credo. Assim escreve o Concílio do Vaticano II em sua Constituição Dei Verbum n° 4:
“A dispensação da graça cristã, como aliança nova e definitiva, jamais passará e já não há que esperar alguma nova revelação pública antes da gloriosa manifestação de Nosso Senhor Jesus Cristo (cf. 1Tm 6, 14 e Tt 2, 13)”.
Por conseguinte, fica a critério dos fiéis julgar as razões pró e contra a autenticidade de cada “aparição” não condenada pela Igreja e daí tirar a conclusão que mais lógica lhes pareça; é-lhes lícito crer ou não crer nas aparições em foco.
O Papa Bento XIV (1740-1758) publicou as seguintes observações a respeito dos fenômenos extraordinários:
“A aprovação (de aparições) não é mais do que a permissão de as publicar, para instrução e utilidade dos fiéis, depois de maduro exame. Pois estas revelações assim aprovadas, ainda que
no se lhes dê nem possa dar um assentimento de fé católica, devem contudo ser recebidas com fé humana segundo as normas da prudência, que fazem de tais revelações objeto provável e piedosamente aceitável” (De Servorum Dei Beatificatione 11, c. 32, 11).
O mesmo foi dito por um Concílio Provincial de Malines (Bélgica) em 1938:
“0 julgamento da Igreja não apresenta de modo nenhum essas coisas como obrigatórias para a fé do povo. Declara apenas que elas não estão em ponto algum em oposição à fé e aos bons costumes, e que nelas encontramos bons indícios que permitem uma adesão piedosa e prudente da fé humana” (Acta et Decreta Concili Provincialis Mechlinensis Quinti. Malines 1938, p. 6).
Com outras palavras: Bento XIV quer dizer que a dita “aprovação” da Igreja não é senão uma permissão; atesta que os fenômenos alegados não estão em desacordo com a fé, os costumes e a missão da Igreja. Não pedem adesão de fé divina ou católica (a fé divina e católica é a fé que há de ser prestada a Deus por todos os fiéis), mas podem suscitar fé humana, fundamentada no testemunho fidedigno dos videntes ou na experiência pessoal (conversão à fé, afervoramento…) de quem aceita esse testemunho.
3) Pode também a Igreja abster-se, de modo geral, de qualquer pronunciamento a respeito dos fenômenos e do culto prestado em decorrência dos mesmos. É o que acontece na maioria dos casos: não há motivos para condenar os fenômenos relatados; nem a saúde mental dos(as) videntes dá lugar a suspeitas nem as mensagens apresentadas por eles contêm alguma heresia ou erro na fé. A Igreja considera os frutos pastorais que decorrem de tais mensagens: muitos fiéis se beneficiam peregrinando a tal ou tal lugar ou santuário; aí se convertem, recuperam ou adquirem o hábito da prática sacramental, da oração… Em consideração desses frutos, a Igreja deixa que a piedade se desenvolva até haver razões de ordem doutrinária ou moral que exijam algum pronunciamento.
Essa atitude da Igreja, que não aprova nem reprova ( por falta de razões objetivas para tanto), mas que permite o culto no local das ditas aparições, é apregoada por mais de um documento da Santa Sé. Assim, por exemplo, escrevia Pio IX aos 2/5/1877:
“Essas aparições ou revelações não foram aprovadas nem condenadas pela Santa Sé. Foram apenas aceitas como merecedoras de piedosa crença, com fé puramente humana, em vista da tradição de que gozam, também confirmada por testemunhas e documentos idôneos” (citado na encíclica Pascendi n° 57, do Papa Pio X).
Quando não incorrem em erro no tocante à fé ou à Moral, os fenômenos extraordinários têm alto potencial evangelizador, que merece respeito e não pode ser deixado de lado. Aos pastores compete, de um lado, confirmar os irmãos na fé, e, de outro lado, ajudar os fiéis a superar a demasiada credulidade, para que esta não venha a ser um fator de descrédito da própria mensagem cristã.
Em conseqüência verifica-se que, enquanto a Igreja não se pronuncia em contrário, fica a critério de cada fiel optar pelo Sim ou pelo Não diante de um fenômeno maravilhoso. Não há por que acusarem uns aos outros de credulidade vã ou de incredulidade. Seja respeitada a liberdade de opção de cada um.
Todavia os teólogos propõem elementos que os fiéis devem levar em considerarão para formar a sua consciência frente ao fenômeno contemporâneo das aparições.
2. 2. Sábias Ponderações
Verifica-se que várias das mensagens atribuídas a Nossa Senhora em nossos dias são marcadas por forte pessimismo. Descrevem a situação do mundo atual em termos apocalípticos: o demônio estaria solto, a corrupção generalizada, os castigos de Deus seriam iminentes, implicando catástrofes de âmbito mundial, condenação dos pecadores e salvação para os justos. São indicadas
a datas dos flagelos, a sua duração, os meios de lhes escapar e outros pormenores estarrecedores…
Sobre este pano de fundo pedem-se oração e penitência. Este pedido final é excelente, embora as práticas indicadas nem sempre pareçam as mais condizentes com a Tradição cristã. Todavia o teor pessimista da mensagem e as profecias respectivas, assim como a multiplicação de casos ditos de aparição, levam os teólogos e pensadores a propor algumas ponderações:
1) O mundo está vivendo uma situação de crise generalizada: fala-se de fim de uma era ou de uma civilização – o que suscita em muitas pessoas uma forte sensação de insegurança e medo. Tem-se a impressão de que os valores clássicos fracassaram, os recursos tradicionais da economia, da política, da sociologia, da pedagogia… estão gastos; muitos esperam espontaneamente uma solução milagrosa proveniente de fontes não convencionais (“só Deus dá um jeito”, diz-se popularmente).
2) O pessimismo e o desespero de muitos abrem o caminho para se crer no surto de novos Messias e messianismos, que prometem dias melhores, despertando esperança (ainda que pouco ou nada fundamentada). As mensagens alvissareiras, quanto mais exuberantes e radicais são, encontram tanto mais facilmente campo propício para se propagarem.
3) O Brasil é muito sacudido por correntes que dizem receber comunicações do além: alto e baixo espiritismo, religiões afro-brasileiras, ufologia de várias modalidades, Vale do Amanhecer, Trigueirinho… Os meios de comunicação social exploram o que nessas mensagens haja de fantasioso e sensacionalista, ampliando enormemente os efeitos da crença nessas mensagens exóticas.
4) Muitas pessoas se deixam levar pelo sentimentalismo e as emoções mais do que pelo raciocínio e a lógica no tocante à religião. O antiintelectualismo, suscitado pelo existencialismo, penetrou na religiosidade de numerosos crentes, de modo que poucos pensam em pedir as credenciais ou os motivos de credibilidade das proposições “místicas” que lhes são oferecidas.
Pode-se até dizer que, em muitos casos, quanto mais fantasiosa é uma proposição, mais ela chama a atenção e desperta curiosidade e interesse crédulos. Aliás, já diziam os antigos romanos: “Vulgus vult decipi. – A massa quer ser enganada”, o que significa que a verdade nua e crua tem menos poder de atração do que a mentira fantasiosa e colorida.
5) Em virtude dessa indisposição para usar o raciocínio no tocante à religião, muita gente quer ser dirigida; espera um guru ou um líder privilegiado que lhe dite autoritariamente o que deve fazer. Assim há quem queira ser comandado, porque não sabe mais como se auto-orientar na sociedade confusa em que vive. Isto constitui autêntico paradoxo em relação aos anseios de independência que caracterizam grande parte dos homens e mulheres de hoje.
São estes alguns fatores que marcam a nossa época e podem estar propiciando, de um lado, o surto de muitas mensagens falsamente proféticas, terrificantes umas, alvissareiras outras, e, de outro lado, a rápida e estranha difusão das mesmas. Consciente disto, a Igreja usa sempre de grande cautela desde que se propague a notícia de algum fenômeno extraordinário. Examinemos mais precisamente quais as normas ditadas por essa prudência.
3. PRUDÊNCIA
Eis alguns traços que modelam a prudência da Igreja:
1) A Igreja, de um lado, se sente responsável pela conservação incólume da doutrina da fé, de acordo com o mandato de Jesus Cristo (cf. Mt 16, 16-19; Lc 22, 31 s; Mt 28, 18-20). Doutro lado, ela sabe que o Espírito Santo pode falar por vias extraordinárias, de tal modo que não lhe é lícito extinguir o Espírito, como diz São Paulo em 1 Ts 5, 19s.
2) O extraordinário deve ficar sendo sempre extraordinário. Não é a via normal pela qual Deus guia os seus filhos; o normal é a via da fé…, fé que se distingue de crendice, pois a fé supõe credenciais ou motivos para crer; a fé não diz Sim a qualquer notícia de portento, mas pergunta: por que deveria eu crer? Qual a autoridade de quem me transmite a notícia? Em que se baseia? Como fala?
3) Disto se segue que:
a) aparições e revelações não devem ser presumidas nem admitidas em primeira instância num juízo precipitado. Os fenômenos alegados hão de ser comprovados ou criteriosamente credenciados;
b) diante de um fenômeno tido como extraordinário, procurem-se, antes do mais, as explicações ordinárias ou naturais (físicas, psicológicas ou parapsicológicas);
c) é preciso levar em conta a fragilidade humana, sujeita a engano, alucinações, sugestões coletivas… Facilmente quem conta um fato acrescenta-lhe ou subtrai-lhe um traço que pode ter importância; em conseqüência um acontecimento explicável por vias naturais pode tornar-se, na boca dos narradores, um fenômeno altamente portentoso. Daí o senso crítico, que deve começar por investigar aquilo de que realmente se trata, para depois procurar a explicação adequada. Leve-se em conta especialmente a tendência dos meios de comunicação social a provocar artificiosamente as emoções e o sensacionalismo, sem compromisso sério com a verdade.
4) Toda autêntica aparição há de ser coerente com as linhas e o espírito do Evangelho. Deve confirmar o que este ensina. Por isto
a) as muitas minúcias (quanto a datas, local, duração e tipo dos fenômenos preditos) merecem reservas, pois não são habituais na linguagem da Escritura Sagrada. O Senhor Jesus mesmo recusou-se, mais de uma vez, a revelar a data da sua segunda vinda e do fim dos tempos; cf. Mc 13,32; At 1,7;
b) o que certamente se pode e deve depreender de toda genuína mensagem do céu, é a exortação à oração e à penitência; La Salette, Lourdes e Fátima clamam altamente portais atitudes a ser assumidas pelos fiéis católicos. Dizia o Papa João XXIII, em sua Rádio-mensagem comemorativa do centenário de Lourdes, que os dons extraordinários são concedidos aos fiéis “não para propor doutrinas novas, mas para guiar a nossa conduta” (18/2/1959).
Em conclusão podem-se citar as palavras de D. Boaventura Kloppenburg:
“Não devemos ter receio de faltar à reverência, ao respeito ou à piedade quando submetemos os fatos maravilhosos a uma crítica severa. A atitude oficial da Igreja sempre foi extremamente exigente e crítica nestas coisas. E as possíveis causas de engano provam a necessidade de sermos prudentes, cautelosos e reservados. Um verdadeiro milagre e uma autêntica aparição nada têm a temer. Seria, pelo contrário, mau sinal se não quisessem submeter-se de bom grado, paciente e honradamente, a um simples exame crítico. Os grandes místicos da Igreja não só não se negaram a tal exame, mas exigiram-no. Leia-se o que escreveram, por exemplo, São João da Cruz e Santa Teresa de Ávila” (O Espiritismo no Brasil, Petrópolis 1960, p.168).
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