Milagres: características do genuíno milagre

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 059/1962)

«Qual o sentido dos fenômenos maravilhosos ou dos milagres na vida cristã?»

Já em «P.R.» 2/1957, qu. 2; 6/1958, qu. 1; 11/1958, qu. 1, ficou demonstrada a possibilidade do verdadeiro milagre, ou seja, de inter­venções extraordinárias de Deus no curso da natureza. Embora se queira conjeturar que a ciência, progredindo, venha a explicar tal ou tal fenô­meno que a nós hoje parece maravilhoso, não se destrói o conceito de milagre. Na verdade, para que se possa falar de milagre em lingua­gem cristã, bastam os dois seguintes elementos

1) de um lado, o apregoado fenômeno seja, no momento (inde­pendentemente do que se dará no futuro), totalmente inexplicável pela ciência (daí a necessidade absoluta de se esgotarem todos os recursos da ciência para elucidar o portento; se resta brecha para alguma ex­plicação científica, já não é levado em conta no foro religioso);

2) de outro lado, requer-se que esse fenômeno totalmente inexpli­cável pela ciência de hoje se tenha produzido dentro de contexto religioso autêntico, como que em resposta a uma prece ou a uma atitude humilde e confiante de determinadas pessoas. Neste caso, o milagre vem a ser o sinete que Deus imprime a tal quadro religioso, para teste­munhar a autenticidade das virtudes ou da doutrina e da missão da res­pectiva pessoa.

Vê-se, pois, que o milagre é essencialmente um sinal, uma Palavra de Deus, dirigida aos homens em vista de circunstâncias que de algum modo apelavam para tal resposta de Deus. E esta característica de sinal é muito mais importante no milagre cristão do que a índole maravilhosa do fenômeno.

Repitamo-lo: basta que o fato seja maravilhoso ou totalmente inex­plicável aos olhos da ciência de hoje. Tais seriam, por exemplo, os casos de restituição de um nervo ótico, de cura da doença de Hodgkin, ou seja, de linfogranulomatose maligna, da cura de amência total postencefalítica acompanhada de paralisia dos quatro membros. Se esses fenômenos se produzem (como, de fato, se tem comprovadamente produzido) sem possibilidade de explicação científica, e após invocação da Onipotência Divina, pode-se dizer que constituem a resposta do Senhor Deus ou um autêntico milagre.

A documentação referente a milagres tidos como genuínos pela autoridade da Igreja se pode encontrar nas seguintes obras:

Louis Monden, Le Miracle, signe de salut. Desclée de Brouwer 1960;

Henri Bon, Le miracle devant Ia science. Paris 1957;

Jean Lhermitte, Le problème des miracles. Paris 1956.

Eis, porém, que justamente o segundo elemento – o elemento reli­gioso, o mais importante – é o que na prática mais dificilmente se pode reconhecer. Há, com efeito, muitas atitudes falsamente religiosas inspi­radas por estados de ânimo desequilibrado, doentio, ou por crenças errôneas ou também pela vaidade, a ostentação, a cobiça de lucro, etc. Em tais circunstâncias, podem-se produzir fenômenos maravilhosos… Estes, porém, não provêm de Deus (pois o Senhor assim estaria con­firmando o erro), mas derivam-se do desequilíbrio psíquico dos devotos ou – mais raramente – de intervenções diabólicas.

Já que, em vista de tantas atitudes religiosas, não é fácil distinguir a genuína devoção, que acompanha o verdadeiro milagre, autenticando-o, vamos aplicar-nos, nas páginas que se seguem, a estipular as principais circunstâncias que costumam indicar as intervenções milagrosas de Deus neste mundo. Em primeiro lugar, diremos algo sobre o significado do maravilhoso em geral na vida cristã; a seguir (na resposta n° 3), abordaremos os critérios que o caracterizam.

Significado e valor do «maravilhoso»

Três proposições parecem abranger a doutrina respectiva:

1) Na vida cristã, os fatos ordinários ou normais consti­tuem a nota principal ou dominante. Os extraordinários são es­porádicos e só têm valor em função ou em vista do que é ordi­nário.

Bem se compreende tal estado de coisas: o fato central e característico do Cristianismo é o mistério da Encarnação. Deus se fez homem e quis santificar o mundo mediante a carne hu­mana. Isto se deu dentro de circunstâncias ordinárias, sem ala­rido nem rebordosa da natureza; o filho de Deus, Jesus Cristo, se inseriu na série das gerações humanas e viveu como homem entre os homens. O próprio fato da ressurreição de Cristo dentre os mortos transcorreu numa atmosfera de discrição e sobrie­dade notáveis. Jesus ressuscitado não apareceu aos seus juízes nem aos seus carrascos, nem mesmo às multidões indiscrimina­damente, mas somente aos Apóstolos e àqueles que Lhe deve­riam dar testemunho através do tempo e do espaço. A salvação foi destarte adquirida para o gênero humano por vias simples e ordinárias.

Compreende-se que, em conseqüência, toda a vida cristã no decorrer dos séculos seja marcada por esse cunho da simplicidade e da discrição: é mediante a igreja e os sacramentos (a água, o pão, o vinho, o óleo… ) que Cristo comunica a salvação adquirida na Cruz. E é na fé, não na visão face a face, que o cristão apreende o dom de Deus. «O justo vive da fé», afirma três vezes o Apóstolo no Novo Testamento (cf. Rom 1, 17; Gál 3,11; Hebr 10,38), repetindo uma frase do profeta Habacuque (2,4). Tal é o regime normal da vida cristã.

Daí não se segue que no Cristianismo não se admita também o extraordinário ou portentoso. Na própria vida de Jesus houve milagres e prodígios. Tais fenômenos, porém, só ocorrem por causa dos elemen­tos ordinários e em vista destes. Mais precisamente, dir-se-á:

2) O extraordinário, na vida cristã, é essencialmente sinal…, sinal que confirma, em nome de Deus, os meios ordiná­rios de salvação.

Em outros termos: todo genuíno milagre é, como dizíamos, Palavra de Deus que se dirige aos homens em circunstâncias fora do comum, a fim de corroborar a Palavra que se dirige nas cir­cunstâncias comuns, através da Igreja e dos sacramentos. Des­locado deste contexto ou sem esta finalidade, o milagre não teria cabimento, pois Deus não faz portentos apenas para ostentar a sua Onipotência.

Entende-se a conveniência de tais sinais: a natureza hu­mana, constando de espírito e matéria, só atinge as realidades espirituais ou invisíveis mediante elementos materiais ou visíveis; a alma humana precisa do «trampolim» (ou do sustentá­culo) das coisas sensíveis para se elevar até Deus. Não é estra­nho, portanto, que o homem procure sinais de Deus que impres­sionem a sua sensibilidade, nem é estranho que Deus lhe res­ponda mediante portentos ou milagres. Será preciso, porém, admitir que esses milagres não podem constituir uma finalidade a ser almejada por si mesma nem uma via que leve para Deus independentemente da via habitual de salvação; o seu papel é, antes, o de confirmar a fé nos sacramentos e na Palavra trans­mitidos pelos trâmites normais.

Daí a advertência do Cardeal Ottaviani

«Há anos vimos assistindo a uma recrudescência da paixão popular em demanda do maravilhoso, mesmo no setor da religião. Multidões de fiéis vão ter aos lugares de presumidas aparições ou de pretensos mila­gres, desertando a igreja, os sacramentos e os sermões» (artigo publi­cado no «Osservatore Romano» de 2 de fevereiro de 1951).

Esta avidez representa, pode-se dizer, uma inversão da hierarquia dos valores.

Note-se ainda: já que os milagres tem o valor de elementos subsidiários, e não de termos essenciais da vida cristã, a sua existência nunca pode ser presumida, mas tem que ser solidamente provada; só poderá ser admitida, caso não reste brecha para alguma explicação científica ou racional do fenômeno em foco (enquanto fique a mínima possibilidade de elucidação hu­mana, tal fato não pode ser levado para a conta de milagre).

«Não desprezemos, pois, as intervenções extraordinárias do céu na vida da Igreja, mas não lhes atribuamos uma função que elas não têm nem podem ter: a função de descobrir aos homens novas vias para chegarem a Deus. A criatura que, tendo recebido a Palavra de Deus, usa devidamente dos sacramentos, pode estar segura de que vai caminhando na via reta, na única via» (J. -H. Nicolas, La foi et les signes, em «Supplément de la Vie Spirituelle» n9 25, 15 de maio de 1953, pág. 140).

Consciente de que os milagres não constituem algo de essencial na vida cristã, a Igreja costuma proceder com vagar e reserva diante dos casos de portentos que vão sendo referidos; as autoridades eclesiásticas nessas situações se empenham por repelir os possíveis desvios de dou­trina ou piedade antes do que por proclamar a índole milagrosa de tais fenômenos. É o que o Sto. Papa Pio X declarava:

«No tocante ao modo de julgar as narrativas piedosas…, a Igreja… usa de prudência tal que Ela não permite sejam essas narra­tivas reproduzidas em escritos públicos, a menos que isto se faça com grande cautela; o escritor está então obrigado a fazer a declaração imposta por Urbano VIII (declaração de submissão ao juízo da Igreja). Contudo, mesmo em tais casos, a Igreja não pretende garantir a vera­cidade das narrativas publicadas; Ela apenas não proíbe, se dê fé a coisas em favor das quais não faltam motivos de credibilidade humana.

Foi isto, aliás, o que, há trinta anos atrás (aos 2 de maio de 1877), a S. Congregação dos Ritos decretou: ‘Tais aparições ou revelações (de índole privada) não foram condenadas pela Santa Sé, a qual simples­mente permitiu que os devotos lhes dessem crédito meramente humano, em vista das tradições que as referem, corroboradas por testemunhos e documentos dignos de fé’. Quem observa esta doutrina, está em segu­rança» (enc. «Pascendi» § VI).

Tais palavras do S. Padre Pio X sugerem imediatamente a seguinte proposição:

3) O gosto febril do maravilhoso, tão disseminado em nossos dias, é por vezes indício de pouca fé.

Em última análise, esse gosto significa que os homens vão perdendo o sabor da Palavra Divina. Não se sabem mais alimen­tar e corroborar com as verdades que Deus revelou para todos e que sempre foram ensinadas no Cristianismo; julgando-as insu­ficientes ou insípidas, apelam para outras proposições, as quais já não vêm de Deus (o Senhor não profere revelações a gosto dos homens), mas unicamente da imaginação humana.

A fé degenera assim em crendice e superstição.

Muito sábias são as observações de Louis Monden a tal propósito:

«O desejo de prodígios espalhafatosos e indubitáveis nasce… da aspiração a uma fé sem sombras e a uma redenção sem cruz…

Só é verdadeiramente cristão o milagre que não suprime o risco da fé, mas ajuda a aceitá-la. Deus não empurra a sua criatura, nem a força; Ele a convida; na profundeza da sua liberdade e a chama» (Le Miracle, signe de salut 1960, 62).

Como expressões da sede contemporânea de maravilhoso, podem-se apontar dois «Centros de Difusão de Portentos», existentes na França em 1953: colhiam em jornais, revistas, folhetos e livros as notícias de fenômenos extraordinários ocorrentes em qualquer parte do mundo e as publicavam imediatamente, sem usar de critério algum para classificar essas notícias e averiguar o seu grau de veracidade; não raro chega­vam mesmo a lhes acrescentar comentários ou interpretações de índole totalmente arbitrária e fantasista. Pediam outrossim aos leitores que lhes comunicassem tudo que viessem a conhecer nesse setor, a fim de o publicar sem demora; destarte alimentavam no público uma atitude de ânimo pouco sadia ou uma religiosidade exuberante, mas vazia e inconsistente. Embora as publicações desses Centros declarassem submeter-se ao julgamento da Igreja, difundiam notícias de aparições formalmente desaprovadas, como as de Espis e Bouxières.

À guisa de espécimen, eis uma das comunicações que mais preten­diam edificar o leitor:

Na aldeia de Tilly (França), diziam, a Virgem Santíssima apareceu no início do século XX, pedindo a recitação do rosário. Os homens, porém, não lhe obedeceram. Em conseqüência, Tilly foi destruída na última guerra mundial. E, para corroborar esta interpretação dos fatos, os arautos da mensagem lembraram que durante os combates de junho­-julho de 1944 Tilly foi pelos beligerantes tomada e retomada vinte e três vezes. Ora vinte e três seria justamente o número das encíclicas dedicadas ao rosário pelo S. Padre Leão XIII !

Como que para temperar tal desejo de revelações particula­res em nossos dias, vem a propósito as palavras de S. João da Cruz:

«Não convém interrogar a Deus por via sobrenatural, nem é neces­sário que Ele nos fale desse modo; tendo Ele manifestado todas as verdades da fé em Cristo, não há mais fé a revelar nem jamais haverá. Querer receber conhecimentos por via extraordinária é, como dissemos, notar falta em Deus, achando não nos ter dado bastante em seu Filho. Mesmo quando se deseja essa via sobrenatural dentro da fé, não deixa de haver curiosidade proveniente da fé diminuta. Assim não devemos querer nem buscar doutrina ou outra coisa qualquer por meio extraor­dinário. Quando Jesus, expirando na cruz, exclamou: ‘Tudo está consu­mado’ (Jo 19,30), quis dizer terem-se acabado todos esses meios, e tam­bém todas as cerimônias e os ritos da Lei antiga. Guiemo-nos, pois, agora pela doutrina de Cristo-Homem, de sua Igreja e seus ministros, e por este caminho humano e visível encontraremos remédios para nossas ignorâncias e fraquezas espirituais, pois para todas as necessi­dades aí se acha abundante remédio. Sair desse caminho não só é curiosidade, mas muita audácia; não havemos de crer, por via sobrena­tural, senão unicamente o que nos é ensinado por Cristo, Deus e Ho­mem, e seus ministros, homens também. É o que nos diz São Paulo nestas palavras: ‘Se algum anjo do céu vos ensinar outra coisa fora do que nós, homens, vos pregamos, seja maldito e excomungado’ (cf. Gá1 1,8)» (A Subida do Monte Carmelo 1. II cap. 22).

Nas linhas acima, o Santo não nega a possibilidade nem o valor de revelações particulares; apenas intenciona acautelar os devotos contra as possíveis ilusões nesse setor, e censura os que tendem a esti­mar essas comunicações mais do que a grande Revelação transmitida por Cristo à Igreja inteira.

Com estes dizeres parece suficientemente esclarecido o lugar que compete aos fenômenos extraordinários no trâmite da vida cristã.

 

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