Milagres: milagre e milagres (II)

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 329/1989)

 

Em síntese: A imprensa noticiou em julho pp. a cura milagrosa de De­lizia Cirolli, jovem siciliana, incuravelmente afetada por câncer e subtraída a qualquer tratamento médico. O fato relatado por um Informativo do Episcopado francês, que acrescenta à narração algumas considerações sobre milagre e as etapas que a Igreja observa para averiguar a autenticidade dos fatos. A Igreja sempre reservada e cautelosa diante da notícia de “mila­gre’_

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As páginas de PR voltam a tratar de milagre,[1] inspiradas pelo fato de que a imprensa no Brasil noticiou em julho pp. o reconhecimento, por par­te da Igreja, do 65? milagre de Lourdes. Assim se lê, por exemplo, num pe­riódico de grande circulação no Brasil:

“LOURDES- A Igreja Católica reconheceu ontem que Delizia Cirolli, uma italiana hoje com 24 anos, foi curada milagrosamente depois de uma peregrinação ao santuário de Nossa Senhora de Lourdes há treze anos. Em 1976, Delizia apresentou um câncer na perna direita, segundo o médico Theodore Mangiapan, Diretor da Agencia Médica de Lourdes encarregada de comprovar a ocorrência dos milagres.

O reconhecimento criterioso de milagres no seio da Igreja Católica contrasta com a notícia de “milagres freqüentes” apregoada em novas e no­vas assembléias cristãs; nestas, de antemão os pregadores garantem que, por ocasião do culto, Deus fará um milagre para cada um dos devotos carentes.

A fim de mais elucidar o episódio transmitido pela imprensa a respeito de Delizia Cirolli, publicaremos, a seguir, em tradução portuguesa um Comu­nicado oficial do Episcopado francês:[2] relata o ocorrido com a enferma e propõe considerações sobre as curas e os milagres de Lourdes.

I. NOTA MÉDICA REFERENTE À CURA DE DELlZIA CIROLLI

“Uma adolescente siciliana, nascida em novembro de 1964, apresen­tou em março de 1976, com onze de idade, distúrbios no caminhar, por cau­sa de uma inflamação dolorosa de um de seus joelhos.

Após algumas semanas de tratamento corriqueiro, a menina foi hospi­talizada para que se fizesse uma biópsia, à altura de 1/3 superior de sua tí­bia direita.

Feito este exame, o lamentável diagnóstico foi formulado… O cirur­gião consultado foi obrigado a prescrever tratamentos mutiladores e, mes­mo assim, apenas paliativos. Os genitores da criança, consternados, os rejei­taram, julgando melhor levar de volta para casa a sua filhinha condenada.

Alguns meses mais tarde, no verão de 1976, a menina, graças à genero­sidade dos amigos, fez uma peregrinação a Lourdes, acompanhada por sua mãe. Voltou de lá esgotada, mas sem modificação do quadro, e certamente, não curada…

Nas proximidades de Natal de 1976, quando já se agravara o seu esta­do e sua vida se ia apagando, a vizinhança não cessava de implorar Nossa Se­nhora de Lourdes… Foi então que se deu a cura,… de modo totalmente im­previsto. Muito rapidamente, a menina retomou a sua vida normal: pôs-se a comer devidamente, caminhar, ir à escola… e manifestava enorme desejo de viver e se desenvolver!

Em julho de 1977, a adolescente voltou a Lourdes com sua mãe; contatou os médicos do Bureau Médical e foi examinada. Notaram então: uma deformação residual do eixo da perna direita, em joelho valgo;[3] uma trans­formação radiológica da zona atingida, prova objetiva de desaparecimento do tumor, totalmente imprevisível.

De 1977 a 1980, a menina foi acompanhada ano por ano, verificando-­se que gozava de perfeita saúde e se beneficiava de crescimento harmonioso.

Aos 28 de julho de 1980, o Bureau Médical de Lourdes, quase unani­memente, decidiu considerar essa cura – ocorrida após uma doença certa e comprovada, de prognóstico fatal e para a qual nenhum tratamento havia si­do executado… – como fenômeno contrário às previsões da experiência mé­dica e cientificamente inexplicável.

Dois anos mais tarde, uma Comissão Médica Diocesana emitia uma apreciação e conclusões semelhantes.

E em setembro de 1982 o Comitê Internacional de Lourdes confirma­va com mais autoridade ainda as opiniões já emitidas a respeito desse retorno à saúde excepcional, no sentido mais estrito da palavra e, além do mais, inexplicável.

Entrementes os anos foram passando. A menina tornou-se moça, aca­bou os estudos humanísticos, e continuou a estudar em vista de um diplo­ma de Enfermeira. Recentemente casou-se.

Na quarta-feira 28 de junho de 1989, Mons. Luigi Bonmarito, arcebis­po de Catânia, assinou uma declaração em que dizia:

‘Recebo a notícia de que tal cura é cientificamente inexplicável. Decla­ro a sua índole milagrosa. Ela se acrescenta a tantas outras que, há 130 anos, se verificam em Lourdes. Exorto os fiéis a dar graças por esse dom.. A jo­vem Delizia Cirolli nunca o fará bastante. Trata-se de um dom concedido à Igreja’.

No dia 6 de julho de 1989 em Catânia, a declaração do arcebispo foi entregue ao público.

II. AS CURAS E OS MILAGRES DE LOURDES

Os critérios de cura

São necessários critérios para que a cura possa ser, um dia, interpreta­da como inexplicável. Dizem respeito a três níveis:

– primeiramente a própria cura. É preciso que seja

– repentina e imprevisível…

– total ou efetuada de uma só vez, sem convalescência,

– duradoura por seis ou oito anos, antes de ser reconhe­cida como tal.

– A seguir, a doença anterior à cura. É preciso que tenha sido

– grave, isto é, ameaçadora para a vida ou incapaz de cura;

– orgânica, e não funcional, isto é, centrada sobre uma lesão. Assim a perda da fala não decorrente de uma le­são cerebral não é reconhecida;

– enfim, objetivamente provada por análises, radiogra­fias, tomografias, biópsias, et…, que devem ser comu­nicadas aos especialistas para fins de perícia.

– Por último, os recursos terapêuticos, que atuaram ou poderiam ter atuado. – A tuberculose, por exemplo, que outro­ra era objeto de numerosas curas averiguadas, desapa­receu quase por completo dos dossiês de nossos dias por causa da realidade de uma medicação eficaz e específica aplicada aos pacientes de nosso tempo.

Como se realiza o controle?

Em 1883 foi fundado o Bureau des Constatations Médicales,[4] que ho­je é o Bureau Médical; reúne todos os médicos presentes em Lourdes. É aberto a todo médico, qualquer que seja a sua crença, a sua religião, a sua fi­losofia.

Esse Bureau Médical se limita a estabelecer um dossiê médico que per­mite averiguar a certeza da doença anterior e a da cura obtida sem trata­mento eficaz.

Desde 1947 existe uma segunda instância, fixa, composta de trinta médicos aproximadamente: é o Comité Médical National, desde 1954 Inter­national. Entre esses médicos todos especialistas e, na maioria, professores de Universidade ou médicos-chefes de serviços de Hospitais, existem: france­ses (cerca de 45%, alemães, ingleses, belgas, escoceses, espanhóis, holande­ses, irlandeses, e italianos. Esse Comitê reexamina o caso: o dossiê então é entregue a um perito escolhido nesse colegiado. O perito tem todo o tempo necessário para apresentar suas conclusões ao Comitê reunido em plenário convocado para Paris, ao máximo uma vez por ano; é o colegiado que con­firma ou não a índole inexplicável da cura.

Desde 1947 até nossos dias, 1.300 dossiês aproximadamente foram abertos, contendo cada qual a alegação de uma cura., Dentre todos os casos, somente 57 pessoas foram reconhecidas como curadas em Lourdes pelo Bu­reau Médical e 47 foram apresentadas a segunda instância em Paris.

Ao Comitê de Paris foram submetidas nove outras curas ocorridas an­tes de 1947 – o que perfez um total de 56 casos ou relatos. Apenas 29 fo­ram confirmados como curas medicamente inexplicáveis, 10, pelo Comitê Médico Nacional e 19 pelo Comitê Médico Internacional. Cada qual desses 29 dossiês foi submetido ao Bispo da diocese de origem do ex-enfermo, pois, após tais constatações, estava encerrada a tarefa dos médicos.

Decisão do Bispo [5]

Uma vez entregue ao Bispo o dossiê por parte do Comitê Médico In­ternacional, compete ao prelado nomear uma Comissão que inclua, entre ou­tras pessoas, teólogos, canonistas e também médicos. Essa Comissão tem por objetivo examinar as circunstâncias, a finalidade, o agente, os meios, as con­dições, os efeitos da cura.

Tal Comissão, terminados os seus estudos, entrega as conclusões ao Bispo. Então toca a este, e somente a este, se o julga conveniente e oportu­no, declarar a cura milagrosa e nela reconhecer ‘uma intervenção do poder de Deus, Criador e Pai, e a intercessão da Virgem Imaculada’ (declaração de Mons. Alessandro Gottardi, arcebispo de Trento, aos 26 de maio de 1976, a respeito da cura milagrosa de V. Michelil.

Ou, como fez Mons. Orchampt, bispo de Angers, após a cura de Sergio Perrin, reconhecer a índole milagrosa e convidar os cristãos a perceber nesse sinal um ato do amor misericordioso do Senhor.

É certo que cada um de nós, examinando-se atentamente, pode reco­nhecer na sua vida intervenções extraordinárias e benévolas de Deus, mas estas dizem respeito tão somente a nós, beneficiários e crentes. Deus está pre­sente no coração da nossa vida e ao longo de toda a nossa vida.

Quando um fenômeno ultrapassa o quadro da nossa pessoa e tende a ser apresentado como sinal aos olhos dos homens, é necessário que haja um tal controle rigoroso da parte tanto dos médicos quanto dos Pastores da Igreja.

Como quer que seja, é sempre na ação de graças que temos de viver es­ses acontecimentos pessoais ou eclesiais.

o número de curas milagrosas reconhecidas é pequeno em relação ao número de enfermos. Desde 1858, 64 curas foram pela Igreja reconhecidas como milagrosas sobre 3.500 curas averiguadas pelos médicos[6] e sobre 2.300.000 doentes que foram a Lourdes em peregrinação organizada. Isto corresponde mais ou menos a um milagre para 40.000 doentes e para 50 cu­ras medicamente confirmadas”.[7]

III. COMENTANDO…

O relatório do Informativo francês concernente aos Santuários que acaba de ser apresentado, evidencia bem quanto a Igreja é cautelosa quando situada diante de fatos tidos como milagrosos. Isto, aliás, já foi observado no artigo de PR 327/1989, pp. 338-344.

Interessa pôr em relevo aqui a distinção, ocorrente no relatório, entre doença orgânica e doença funcional. Esta se deve a uma disfunção ou a um bloqueio do sistema nervoso (asma, eczemas, úlcera estomacal, verrugas…); por conseguinte, pode ser curada por um desbloqueio dos nervos, desblo­queio que se obtém mediante emoções, sugestões…, isto é, por via psíquica. As curas assim obtidas não são consideradas milagrosas (embora efetuadas em ambiente de curandeirismo religioso, espírita, umbandista, protestante), porque têm explicação natural assaz perceptível. Ao contrário, as doenças orgânicas são as que afetam um órgão mediante lesão, tumor, fratura… Estas moléstias não são curáveis por um desbloqueio psíquico (embora o psiquis­mo seja sempre importante na saúde e na doença de uma pessoa); só podem ser sanadas pela medicina (cirúrgica, por vezes) ou por milagre.

Conclusão: o fato de que Deus ainda hoje realiza milagres, deixando a ciência e a inteligência humanas estupefatas, é sinal…, sinal que chama os homens a reconhecer o Amor e a Providência do Senhor em relação às suas criaturas, principalmente àquelas que com humildade e fervor O invocam.

Estêvão Bettencourt O.S.B.

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NOTAS:

[1] Ver PR 327/1989, pp. 338-344.

[2] O texto francês original encontra-se em INFO-SANCTUAIRES. Bureau de Presse, Sanctuaire de Lourdes, 5/7/89.

[3] “Valgo” é adjetivo médico que significa “voltado para fora” (Nota do Tradutor).

[4] Escritório de Averiguações Médicas.

[5] Esta última parte do processo corresponde à terceira etapa na apreciação de um milagre enunciada em PR 327/1989, pp. 338-344. Trata-se de averi­guar se o fato extraordinário foi obtido em condições dignas de uma inter­venção e de um sinal de Deus (Nota do Tradutor).

[6] O número de 3.500 encontrado neste relatório do Episcopados francês não coincide com o número de 5.000 Que colhemos em outra fonte e publi­camos em PR 327/89, p.341. Não temos como dirimir a dúvida, mas cre­mos Que essa enumeração não é essencial no caso (Nota do Tradutor).

[7] É de notar, porém, Que mesmo a declaração final da autoridade eclesiás­tica Que reconhece um milagre, não é artigo de fé e, por conseguinte, pode não merecer crédito da parte dos fiéis (Nota do Tradutor).

 

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