(Revista Pergunte e Responderemos, PR 88/1967)
«Em que consiste a diferença entre ‘natural’ e ‘sobrenatural’?
É conciliável com as tendências do pensamento moderno?»
«O conceito de ‘sobrenatural’ é tão essencial ao Cristianismo quanto, por exemplo, o de ‘revelação’ ou ‘Encarnação’ ou ‘sacramento’. Pode se afirmar que a noção de ‘sobrenatural’ está presente em todos os tempos do Cristianismo, não somente no decurso da tradição, mas desde as origens e já na S. Escritura» (H. de Lubac, Surnaturel. Paris 1946, 325).
Destas observações se depreende que negar ou empalidecer o sobrenatural equivale a negar ou menosprezar a própria Encarnação do Filho de Deus, mistério fundamental da mensagem cristã.
Importa, porém, precisar exatamente a noção de «sobrenatural» (de antemão seja dito que se distingue tanto de «natural» como de «portentoso», «portento» ou «milagre»). Em vista disto, examinaremos primeiramente as passagens da Sagrada Escritura atinentes ao assunto; depois consideraremos a elaboração teológica do conceito, e a confrontaremos brevemente com o pensamento moderno.
1. «Filhos de Deus»
1) No Evangelho: O Senhor Jesus deu a entender que veio trazer aos homens não somente preceitos e máximas para se comportarem sabiamente, mas também um novo princípio de vida, uma regeneração ontológica (não apenas moral ou psicológica); essa regeneração os torna participantes da vida do próprio Deus, habilitando-os a imitar (de maneira finita) a santidade do Pai Celeste (cf. Mt 5,48; Lc 6,36).
É o que se lê principalmente no Evangelho de São João:
Em Jo 3, Jesus fala a Nicodemos, judeu para quem o título de «filho de Abraão» representava o sumo valor religioso. O Senhor mostrou-lhe então a necessidade de nascer de novo para uma vida que não tem neste mundo sua origem nem seu termo final: «Se alguém não renascer da água e do Espírito, não poderá entrar no Reino de Deus» (3,5).
Em Jo 5 volta Cristo a falar dessa vida superior, asseverando que Ele (como homem) a recebeu do Pai e que ela é comunicada a todo homem que ouve a Palavra do Filho e crê no Pai (cf. 5,24.26).
Em Jo 6, Jesus promete «o alimento que nutre para a vida eterna», «o verdadeiro pão do céu», «o pão de Deus que desce do céu e dá a vida ao mundo», «o pão da vida» que é Ele mesmo. Não vem ao caso aqui indagar se esse pão é a Eucaristia ou a fé; em qualquer hipótese, Jesus anuncia uma vida nova, que vem do céu, é comunicada às almas na fé e na caridade, é nutrida por um alimento espiritual e perpetuada no céu.
Tenham-se em vista as significativas palavras de Cristo em sua última ceia:
«Ainda um pouco de tempo e o mundo não me verá mais. Vós, porém, me vereis, porque estou em meu Pai e vós em mim e eu em vós…
Se alguém me ama, guardará minhas palavras. Meu Pai o amará, e nós viremos a ele e nele faremos nossa morada» (Jo 14,19s.23).
Nessas frases misteriosas, o Senhor propõe uma imanência mútua de Deus nos homens e dos homens em Deus; essa imanência não significa fusão, mas união dos discípulos com Cristo tão íntima que, por Cristo-Homem, eles são levados a participar da vida de Cristo-Deus e, consequentemente, da vida da SS. Trindade: «Vós em mim: eu em vós e no Pai» (cf. 14,20).
Muito eloqüente é outrossim o inciso em que Jesus se compara à videira. Esta imagem diz comunhão de vida do homem com Deus e, mais uma vez, imanência mútua num plano que ultrapassa de muito as exigências da natureza humana:
«Eu sou a verdadeira vide, e meu Pai é o agricultor… Permanecei em mim, e eu permanecerei em vós. Como o ramo não pode produzir fruto de si mesmo, se não permanece unido à videira, assim também vós não o podeis produzir se não permanecerdes em mim… Aquele que permanece em mim, e eu nele, produz muito fruto, pois sem mim nada podeis fazer… Assim como o Pai me amou, também eu vos amei. Permanecei em meu amor» (15, 1. 4s. 9).
Notem-se ainda as palavras do Senhor em sua última prece:
«Todos sejam um, como Tu, Pai, estás em mim e eu estou em Ti, para que também eles sejam um em nós…
Sejam um, assim como nós somos um – eu neles, e Tu em mim para que todos se congreguem na unidade, e o mundo conheça que Tu… os amaste como também amaste a mim» (Jo 17, 21-23).
Estes dizeres apregoam uma união dos fiéis com Cristo que é cópia da união de Cristo com o Pai; há um paralelo e uma proporção entre aquela e esta. Diríamos, esquematizando as palavras do Senhor: «Assim como o Pai está para o Filho, assim o Filho está para os discípulos».
Este estranho paralelismo é explicitado pelo próprio São João no prólogo de seu Evangelho:
A todos aqueles que O receberam
– e são os que crêem em seu nome –
Ele (o Filho ou Verbo) deu o poder
de se tornarem filhos de Deus.
Estes não nasceram do sangue,
nem da vontade da carne,
nem da vontade do homem,
mas de Deus.»
(Jo 1, 12s)
Sem ulteriores comentários a textos tão claros, passemos à doutrina contida
2) Nas epístolas. Sejam aqui realçados os seguintes tópicos:
Conforme São Paulo, Deus não somente perdoou aos homens, mas tornou-os, de modo especial, seus filhos, e quer que o chamem «Pai!». O gênero humano, antes de Cristo, era escravo do pecado e vivia em espírito de temor; a esse espírito sucedeu o espírito de amor e filiação; escravos por natureza, fomos feitos, por graça de Deus, filhos, herdeiros da bem-aventurança celeste e co-herdeiros com Cristo. Aliás, com Cristo e em Cristo todos os homens constituem um só (Filho) no plano místico. Cf. Gál 4,4-7; Rom 8,14-17.
A união com Cristo, que torna o homem participante da filiação divina, é ilustrada por São Paulo mediante expressivas comparações:
Cristo é o Novo Adão, Pai da humanidade regenerada (cf. Rom 5,14; 1 Cor 15,21s. 44-49);
Cristo é a Cabeça; somos os membros do seu Corpo Místico, recebendo d’Ele a verdadeira vida (cf. 1 Cor 12,12-27; Ef 4,11-13);
Cristo é o Esposo; a Igreja (e, dentro dela, cada alma fiel), a Esposa (cf. Ef 5,29-32).
Essa estupenda comunhão de vida com Cristo e Deus Pai, no Espírito Santo ou no Amor, tende a levar o homem ao Bem Supremo, «que o olho jamais viu, o ouvido jamais ouviu, o coração jamais concebeu», ou seja, a visão de Deus face a face (cf. 1 Cor 2,9; 13,12).
São João, em sua primeira epistola, por sua vez, assevera que, elevados à dignidade de filhos, «nós O veremos como Ele é»:
«Vede que grande amor nos testemunhou o Pai: somos chamados filhos de Deus, e realmente o somos… Caríssimos, desde agora somos filhos de Deus, mas ainda não se manifestou o que seremos. Sabemos, porém, que, quando isto se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos como Ele é» (1 Jo 3,ls).
São Pedro exprimiu a riqueza do dom de Deus feito ao cristão, recorrendo à fórmula mais profunda que se possa conceber: «Ele nos deu as preciosas e grandes promessas, a fim de que, por elas, vos torneis participantes da natureza divina» (2 Pe 1,4).
É o consórcio da natureza divina, afirmado por São Pedro, que explica as proposições do Senhor Jesus e dos Apóstolos referentes à nossa união com Deus e ao nosso destino supremo: conheceremos a Deus como Ele conhece a Si mesmo.
E é justamente esse consórcio da natureza divina que, em linguagem teológica, se chama «dom sobrenatural» ou «ordem sobrenatural» (= ordem que supera a natureza humana ou mesmo toda e qualquer natureza criada, porque é a ordem de vida de Deus mesmo).
Vejamos, pois, como a Teologia propõe o significado e o valor da ordem sobrenatural, característica da mensagem cristã.
2. O conceito de «sobrenatural»
Colhendo os dados fornecidos pelos escritos do Novo Testamento, os teólogos elaboraram a seguinte noção de sobrenatural:
Deus é Amor (cf. 1 Jo 4,8).
Ora o amor é essencialmente difusivo ou comunicativo de si; ainda que nada tenha a lucrar, o amor se dá espontaneamente.
Na verdade, o Amor de Deus se derramou ou comunicou de dois modos neste mundo:
1) Deus criou todos os seres, dando a cada qual sua natureza própria, dotada de perfeições ou predicados. A natureza de cada criatura (mineral, vegetal, animal irracional, homem, anjo) representa um valor; é uma imagem ou reflexo, em grau finito ou em miniatura, da infinita Perfeição do Altíssimo.
Deus está presente a cada criatura (racional ou irracional) pelo simples fato de a ter criado e de a conservar; a mesma Onipotência Divina que do nada fez emergir o universo, sustenta-o continuamente, impedindo que recaia no não-ser. Tal tipo de presença é chamado «presença de conservação ou de imensidade».
O amor com que Deus ama todas as criaturas, dando-lhes a existência, é dito «amor comum». Mesmo o homem pecador e o anjo rebelde são amados por Deus, amados, sim, na medida em que têm seu ser ou a sua natureza (o que no demônio e no homem pecador há de mau, não é algo de positivo, mas é apenas a aversão da sua vontade frente a Deus; é a sua carência de ordenação ao Senhor).
2) Às criaturas dotadas de inteligência e vontade (homem e anjo), o amor de Deus se quis comunicar de maneira especial. Sim; além da sua presença de criação ou imensidade, o Senhor lhes dá a sua presença: de habitação, isto é, comunica-lhes uma entidade criada, chamada graça, (= dom!), que habilita o homem e o anjo a conhecer e amar como Deus conhece e ama.
Em virtude dessa entidade – a graça -, as três Pessoas divinas vivem ou habitam na alma do justo: o Pai aí gera o seu Filho, e ambos (o Pai e o Filho) se amam mutuamente no Espírito Santo ou no Amor subsistente; a inteligência e a vontade do justo são envolvidas nesse fluxo e refluxo da vida divina.
Assim o homem, em estado de graça, já não é filho dos homens apenas, mas também filho de Deus, configurado ao Filho Eterno.
Explicitando, diremos: para que a criatura humana possa conhecer e amar a Deus como Ele se conhece e ama, isto é, no seu mistério mais oculto, deve ser infundido na alma humana o princípio de conhecimento e amor que em Deus existe de maneira infinita; e este princípio infuso é justamente a graça: (dita «santificante» ou «habitual»; habitual,… porque é um hábito ou uma entidade permanente, que só o pecado ou a vontade depravada do homem podem afastar).
Com razão, pois, diz-se que a graça significa um consórcio da natureza divina ou que é uma participação na vida trinitária do Pai, do Filho e do Espírito Santo; a graça dá início; no homem, a uma vida sobrenatural; ela imbebe e transforma o ser da alma para o proporcionar a um fim que ultrapassa a natureza humana.
Os autores ilustram tal verdade recorrendo à seguinte imagem: um instrumento por si produz efeitos simples e rudes (um cinzel corta a esmo, um pincel borra, um lápis ou um giz mancha…); manuseado, porém, pelo homem inteligente, o instrumento produz efeitos superiores à sua natureza («sobrenaturais»), isto é, efeitos que participam da inteligência e da nobreza da alma do artista. – Assim a alma humana, tocada pela graça, torna-se apta a realizar atos que já no são propriamente humanos, mas participam da vida infinitamente perfeita de Deus.
3. Sobrenatural e natural
Para melhor penetrar as idéias acima, indagamos: se Deus tivesse criado apenas a ordem natural, quais seriam as nossas relações com Ele?
Conheceríamos diretamente o mundo visível, usando dos nossos sentimentos e da nossa razão; e, do conhecimento do mundo, passaríamos ao de Deus, como do efeito se passa à causa (Deus é, sim, a Causa Suprema do mundo). Veríamos então a Deus de maneira mediata, ou seja, através do espelho ou da analogia que as criaturas nos oferecem. Em outros termos: conheceríamos a Deus como o Grande X a que o universo está suspenso; nós O conceberíamos como o Senhor, o Criador, mas não poderíamos entrar com Ele em relações de amigo para amigo ou de filhos para pai. O filósofo pagão Aristóteles dizia acertadamente: «Não se pode falar de amizade com os deuses imortais, pois a amizade supõe certa igualdade».
Deus, porém, não nos quis deixar nessas condições. Derramou em nós um novo princípio de vida, para que nos possamos encaminhar para as profundezas de seu ser e entrar em convívio de amizade ou filiação com Ele.
Compreende-se que essa entidade nova, quando nos é infundida, se assemelhe a uma tênue semente que deve desabrochar paulatinamente. Por todo o decorrer da nossa existência sobre a terra, ela se desenvolve, enquanto a vida do Primeiro Adão (herdada de nossos pais) vai sendo mortificada e finalmente morre. Quando um dia fecharmos definitivamente os olhos da nossa natureza para este mundo visível, deveremos abrir em plenitude o nosso olhar sobrenatural para Deus visto face a face. A fé que possuímos aqui na terra como lanterna de viandantes, deverá então transformar-se em visão beatifica.
Procurando resumir de maneira sistemática a noção de sobrenatural, ensinam os teólogos:
O sobrenatural é essencialmente a visão de Deus face a face.
Por extensão, sobrenatural é também dito tudo que neste mundo tem relação com tal fim supremo. Tudo isso, em última análise, entra na ordem sobrenatural e pode, segundo graus diversos, ser chamado «sobrenatural». Assim, além da fé e da graça (já mencionadas), as virtudes e os dons do Espírito Santo, que são infundidos ao cristão no dia de seu Batismo, a fim de que se encaminhe para a visão beatífica. Também é dita «sobrenatural» a Revelação de verdades que Deus fez ao homem mediante os Profetas do Antigo Testamento e principalmente mediante Jesus Cristo; foi pela manifestação de tais verdades que Deus chamou todas as criaturas à ardem sobrenatural.
4. Sobrenatural, milagroso, espiritual
Das observações até aqui propostas depreende-se também a diferença entre «sobrenatural» e «milagre» ou «milagroso».
O milagre é sempre, entre outras coisas, um feito sensível que sai do curso ordinário dos acontecimentos e, por isto, surpreende o público. O sobrenatural, ao contrário, por si mesmo nada apresenta de sensível; não surpreende o observador; assim a transubstanciação ou a conversão do pão no corpo de Cristo; a justificação de um pecador, que passa do estado de morte espiritual para o de vida sobrenatural. – A ordem sobrenatural pode, sim, envolver milagres (que Deus realiza para chamar os homens a Ele), mas nem tudo que se encontra na ordem sobrenatural é milagroso.
Vê-se também que «sobrenatural» e «espiritual» não são termos sinônimos. O espírito é um ser dotado de sua natureza própria, como a matéria também é dotada de natureza própria. Um espírito pode viver e realizar-se em sua ordem meramente natural, sem ser elevado ao plano sobrenatural.
Pascal († 1662) reconstituiu em poucas frases a escala que passa da matéria (corpo) ao espírito na ordem natural, e do espírito a Deus na ordem sobrenatural:
«Todos os corpos, o firmamento, as estréias, a terra e seus reinos não valem o mínimo dos espíritos, pois o espírito conhece essas coisas e conhece a si mesmo, ao passo que os corpos nada conhecem».
«O homem é apenas um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço que pensa… Mesmo que o universo o esmagasse, o homem ainda seria mais nobre do que aquilo que o mata, porque o homem sabe que morre, ao passo que o universo não conhece a vantagem que ele (universo) tem sobre o homem».
O filósofo quer dizer que o mundo material, por muito pujante que seja, fica aquém da dignidade do homem, porque é massa que não pensa, é mera matéria sem espírito. –
Ao contrário, o homem cuja massa é muito inferior à das grandes criaturas visíveis, ultrapassa a todas em dignidade, porque possui espírito (uma alma espiritual) e, com isto, a capacidade de pensar; um só pensamento ou um só ato de inteligência (produto do espírito) é por si muito mais nobre do que todo o imenso universo não pensante.
Isto… na ordem das naturezas ou levando-se em conta apenas as capacidades das criaturas.
Pascal agora indica novo salto, ainda mais estupendo do espírito considerado em sua natureza ao espírito elevado à ordem sobrenatural
«De todos os corpos reunidos, não se poderia obter o mínimo pensamento; isto é impossível, pertence a outra ordem. De todos os corpos e espíritos não se poderia obter um movimento de verdadeira caridade; isto é impossível, pertence a outra ordem, é sobrenatural».
Por «movimento de verdadeira caridade» o filósofo entende o amor de Deus comunicado aos homens mediante a regeneração batismal. Todo o cosmos visível e todos os anjos (não elevados à ordem sobrenatural) não têm o valor de um ato de amor procedente de uma velhinha simples ou de um enfermo que estejam na graça de Deus.
5. Um texto compendioso
A título de conclusão, vai aqui apresentada uma poesia de S. Teresa de Ávila († 1582), a qual exprime bem como o cristão aprecia a comunhão com a vida divina, que o Senhor Jesus Cristo veio oferecer a todos os homens:
Um dia, S. Teresa ouviu durante a sua oração esta frase misteriosa: «Procura-te em mim!». – À guisa de recreio espiritual, propôs o enigma a seu irmão Lourenço de Cepeda, que, sob a direção de Teresa, se ia iniciando ardorosamente na vida espiritual. Lourenço pediu a colaboração de três de seus amigos, entre os quais São João da Cruz. Foi estipulado que cada qual dos companheiros refletiria à parte sobre a misteriosa frase e consignaria por escrito as suas considerações. Após certo tempo, os quatro trabalhos estavam redigidos; foram submetidos a Teresa, incumbida pelo próprio bispo de Ávila de fazer o julgamento. A santa exprimiu seu parecer em uma de suas mais belas cartas, perpassada de malícia e bom senso, em que ela desembaraçadamente se dirigia a cada qual dos quatro amigos. O bispo de Ávila então intimou a Teresa, fizesse algo que suplantasse os quatro trabalhos apresentados. Ao que ela respondeu mediante a poesia seguinte:
“Alma, é preciso que te procures em mim e que me procures em ti”.
Tal era o texto a comentar. Assim o parafraseou Teresa:
“O amor, ó alma, pôde de tal modo traçar a tua efígie em mim que o mais hábil pintor não poderia com semelhante maestria produzir igual imagem.
Foi meu amor que te formou, surpreendentemente bela; assim pintada em meu coração, se te perdesses, minha bem-amada, seria preciso que te procurasses em mim.
Sei que te encontrarias reproduzida em meu coração, e reproduzida tão ao vivo que, se tu te visses, te regozijarias por te ver tão bem pintada.
E, se por acaso não soubesses onde encontrar a Mim, não deverias Vaguear por cá e por lá; mas, se Me queres encontrar, é preciso que Me procures em ti.
Pois tu és o meu lugar de repouso, és a casa em que resido; por isto, clamo todas as vezes que verifico que em teu pensamento a porta não está aberta.
Fora de ti, não Me procures. Pois, para Me procurar, basta apenas que Me chames; e estarei presente a ti sem tardar. Basta que Me procures em ti”.
(Histoire de Sainte Thérèse d’après les Bollandistes, t. II, pág. 507)
Esta poesia vem a ser um comentário profundo e vívido das palavras do Senhor: «Vós em mim, e eu em vós» (Jo 14,20), palavras que exprimem incisivamente o mistério da ordem sobrenatural!
Se tantas almas viveram e experimentaram tal realidade, como não a poderiam viver todos aqueles que foram igualmente enxertados no Cristo Jesus pelo Batismo?
6. Corolário
O pensamento moderno tende a valorizar em termos otimistas a natureza humana. Com ele concorda o Cristianismo (cf. Concílio do Vaticano II, Const. «Gaudium et Spes»).
Há, porém, um otimismo filosófico tal que concebe a consumação do gênero humano como resultado normal da evolução de predicados que a natureza irracional possuía em estado germinal desde as suas origens; dentro da matéria primitiva ter-se-ia em miniatura tudo que há no homem plenamente desabrochado e ainda santificado por Cristo.
Tal perspectiva, é claro, não se coaduna com a mentalidade genuinamente cristã. Esta asseverará sempre que o homem recebeu de Deus Pai, em vista de Cristo e por Cristo, certos dons que ultrapassam as exigências da natureza humana. Frente a tais dons, só existe na natureza do homem uma potência obediencial, isto é, a aptidão a ser elevada (caso Deus queira conceder esta gratuita elevação).
O homem é grande por sua própria natureza, mas é maior ainda por ser o indigente de Deus, o indigente que Deus quis beneficiar com a filiação divina.