Milagres: natural, sobrenatural, preternatural

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 028/1960)


«Que se entende por ‘natural, sobrenatural, preternatural’?

Quais as relações desses elementos com o ‘milagroso’?»

Pode-se dizer que as quatro noções acima supõem todas o conceito de natureza. Será preciso, portanto, começarmos a nossa explanação averiguando o sentido exato deste vocábulo.

1. Natureza e natural

Etimologicamente, natureza vem do radical latino gna, que signi­ficar gerar (donde nasci = nascer). Daí se vê que natura, natureza, já por sua etimologia designa (para falarmos em termos muito simples) «aquilo que faz que alguma coisa seja o que ela é».

Na linguagem precisa da Filosofia e da Teologia, por «natureza» de um ser entende-se a essência específica desse ser ou a sua estrutura ontológica. Assim a natureza do homem (aquilo que propriamente faz que o homem seja homem) é a sua racionalidade ou a sua composição de corpo e de alma racional.

Define-se conseqüentemente como natural «o que é pro­porcional à natureza» ou «o que é determinado pelas exigên­cias da natureza» ou ainda «o que decorre da natureza».

Assim como há diversos tipos de natureza (a do homem, a do animal irracional, a da planta…), há também diversos tipos de «natural»: é, sim, natural, para o homem (não, porém, para a pedra), ter uma inteligência, uma vontade, sofrer a doença, a velhice, a morte; para que o olho veja, é condição natural haja luz (o mesmo, porém, não se requer para que o ouvido ouça).

A ordem natural, por conseguinte, é a reta disposição das criaturas necessária para que possam conseguir o fim último correspondente à sua natureza; no caso do homem:… para que este possa chegar à bem-aventurança de que é capaz a sua natureza.

2. Sobrenatural

1. Sobrenatural, em relação a determinada natureza, é em termos negativos: aquilo que não pertence à integri­dade dessa natureza nem é necessário para que ela se conserve ou para que consiga a sua perfeição ou finalidade natural;

em termos positivos: o que está acima das exigências dessa determinada natureza. O sobrenatural, portanto, é sem­pre um dom gratuito, que sobrevém à natureza já constituída.

O sobrenatural divide-se em

a) sobrenatural simplesmente dito e sobrenatural relativo.

Sobrenatural simplesmente dito é aquilo que excede as exigências de toda e qualquer criatura: tal é, por exemplo, a visão de Deus face a face;

Sobrenatural relativamente dito ou segundo determinado aspecto é aquilo que excede as exigências de determinada criatura apenas; assim o raciocínio é natural ao homem; seria sobrenatural, porém, para a pedra.

b) Sobrenatural quanto à substância e sobrenatural quanto ao modo.

Sobrenatural quanto à substância é aquilo que por si ou por sua própria essência está acima do alcance de determinada natureza; assim o conhecimento dos mistérios divinos.

Sobrenatural quanto ao modo diz-se aquilo que por sua essência é natural, mas que, pelo modo como é produzido, ultrapassa o alcance de determinada natureza; assim o desencadeamento de uma tempes­tade (coisa natural) num momento em que o céu esteja limpo e a atmosfera serena, é um fenômeno sobrenatural quanto ao modo.

Mais dois exemplos ilustrativos sejam aqui consignados.

A vida milagrosamente restituída a um cadáver é vida natural (vegetativa e sensitiva) causada de modo sobrenatural por Deus; a graça santificante, ao contrário, é vida essencialmente sobrenatural, em relação tanto ao homem como ao anjo, pois consiste em parti­cipação da vida íntima de Deus, dispondo a criatura a ver o Criador face a face.

2. À luz de quanto dissemos, depreende-se que ordem sobrenatural vem a ser a reta disposição das criaturas neces­sária para que possam conseguir o seu fim último sobrenatural simplesmente dito, ou também:… para que o homem possa chegar à visão de Deus face a face.

3. Tornam-se oportunas agora algumas observações em torno de quanto acaba de ser exposto:

1) O sobrenatural não se opõe por si ao natural nem destrói a estrutura da natureza. Ao contrário, o sobrenatural supõe a natureza e tende a aperfeiçoá-la. Conseqüentemente, os dons sobrenaturais podem ser comparados ao fogo, que penetra totalmente a barra de ferro, comunicando-lhe as propriedades de luz e calor características do fogo, sem, porém, destruir a natureza do ferro; são também comparados ao enxerto que, colocado em árvore selvagem, não extingue a vida desta, mas, ao contrário, faz que produza melhores frutos.

2) Ê fora de propósito dizer-se, com Ripalda, teólogo do séc. XVII († l648), que Deus poderia criar uma substância sobrenatural, ou seja, uma substância para a qual o sobrenatural simplesmente dito fosse natural. O sobrenatural simplesmente dito excede as exi­gências de toda e qualquer criatura; nunca, portanto, pode ser natural a uma criatura.

3. Preternatural

O preternatural vem a ser uma modalidade de sobrenatu­ral: é aquilo que aperfeiçoa determinada natureza, excedendo as exigências dessa natureza, sem, porém, a elevar acima de si mesma; o preternatural, portanto, é um dom que liberta a natureza dos defeitos que lhe são congênitos, possibilitando-lhe mais fácil consecução de seu fim próprio.

Haja vista o seguinte exemplo. É natural ao homem morrer após alguns decênios de vida na terra; admita-se, porém, que a existência de determinada pessoa venha a ser prolongada por Deus de modo a não conhecer a morte, sem, porém, que essa pessoa deixe de exercer as faculdades de simples homem (portanto, sem ser elevada ao plano dos anjos ou dos filhos adotivos de Deus); diz-se então que o dom correspondente a tal prolongação é o dom preternatural da imortalidade. — «Preter.. .» denota o que está além das exigências da natureza, permanecendo, porém, na linha mesma da natureza, não passando para plano superior (sobrenatural).


Eis outro exemplo: o homem, como vivente racional, adquire lentamente as suas idéias mediante o raciocínio. Dado, porém. que, em vez de conquistar paulatinamente sua ciência pelo raciocínio, o homem venha a possuí-la imediatamente infundida por Deus no momento da sua criação, diz-se que recebe o dom preternatural da ciência; é um dom que não está propriamente acima da natureza, mas está fora de quanto é devido à natureza humana como tal.

Convém por fim notar que «sobrenatural» e «preterna­tural» não são termos sinônimos de «espiritual». Todo espírito tem sua natureza e por esta se acha integrado na sua res­pectiva ordem natural (de alma humana, de anjo…). Pode, porém, ser elevado à ordem sobrenatural ou preternatural me­diante os dons que acabamos de caracterizar. Paralelamente, todo ser material tem sua natureza, pertencendo a determi­nada ordem natural (de corpo humano, p. ex.); além disto, pode ser sujeito de dons sobrenaturais (da glória dos filhos de Deus…) ou preternaturais (imortalidade da carne, isen­ção de dores e miséria…).

Observe-se também que o sobrenatural e o preternatural não são necessariamente algo de milagroso. Por «milagroso» (no sentido religioso) entende-se o fenômeno extraordinário que chame a atenção dos homens por ser sinal de Deus (cf. «P. R.» 6 1958, qu. 1). Ora pode-se muito bem admitir que dons sobrenaturais ou preternaturais sejam concedidos à na­tureza humana sem chamar a atenção da comunidade, nem mesmo a do sujeito agraciado. Doutro lado, porém, deve-se reconhecer que todo milagre é algo de sobrenatural ou, ao menos,… de preternatural (justamente por derrogar ao curso normal da natureza é que o milagre chama a atenção dos homens).

Estas noções já nos fornecem elementos para passarmos a ulterior questão.

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