Milagres: os estigmas: sinal de Deus?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 54/1962)

 

«Que são os estigmas?

Que pode haver de autêntico e de falso nos casos de estigmatização que se costumam narrar?

Como se explicam à luz da Medicina e da Religião?»

Os modernos estudos de Psicologia têm chamado a atenção para fenômenos extraordinários que outrora eram tidos como milagres ou testemunhos da ação de Deus em uma alma e que hoje a vários estudio­sos parecem não ser mais do que indícios de estados doentios. Entre esses fenômenos, conta-se a estigmatização, à qual será dedicada a pre­sente resposta.

Visando perceber o verdadeiro significado dos estigmas, definire­mos primeiramente em que consistem; a seguir, verificaremos como têm ocorrido através dos séculos ou na história; por fim, considerare­mos a explicação mais plausível que se possa dar a tal fenômeno.

I. Em que consistem os estigmas?

1. Na linguagem dos gregos e romanos pré-cristãos, “stigma” era a marca que, com ferro candente, se gravava no gado, em escravos e em soldados, a fim de designar o seu respectivo senhor (o proprietário do latifúndio ou general do exército).

É São Paulo quem pela primeira vez usa o termo em sentido reli­gioso, asseverando que «traz em seu corpo os estigmas do Senhor Jesus» (cf. Gál 6,17); destarte intencionava referir-se às marcas san­grentas dos padecimentos que ele havia suportado por amor a Cristo

(cf. 2 Cor 11,24;.). Esses estigmas o deviam caracterizar como verda­deiro servo e miliciano do Senhor.

Na história do Cristianismo, continuaram a reproduzir-se os estig­mas nos servos de Deus, sob modalidades várias, apresentando contudo algumas características constantes e comuns:

Os estigmas são lesões do organismo não produzidas por agentes externos ou por doenças; manifestam-se imprevistamente em partes determinadas do corpo (principalmente nas mãos, nos pés, no lado direito ou esquerdo do peito, mas tam­bém nos ombros, sobre os quais Cristo carregou a cruz, e na cabeça, a recordar a coroação de espinhos). São geralmente­ acompanhados de profundas dores (físicas e morais). Essas cha­gas apresentam aspectos e tamanhos diversos: ora são arredon­dadas, ora ovais; ora superficiais, ora profundas; podem ter o mesmo diâmetro de um lado ao outro da mão, podem também estreitar-se de modo a terminar em ponta. Costumam lançar sangue (sangue rubro, rutilante) à guisa de hemorragia, hemor­ragia que pode ser contínua ou intermitente.

Os estigmas se distinguem das feridas ou chagas comuns também por serem refratários a todo tratamento: não há me­dicação ou curativo que provoque a sua cicatrização; ao contrá­rio, qualquer intervenção médica só redunda em aumento das dores. Doutro lado, não acarretam infecção, supuração, necrose de tecidos ou gangrena; nem exalam aroma desagradável. Con­servam-se inalterados durante anos e anos,- ao invés do que as leis da natureza fariam prever. Aparecem muitas vezes reco­bertos por uma crosta vermelha escura, devida à coagulação do sangue; em todo caso, não costumam ser chagas expostas, mas, sim, protegidas por fina membrana contra riscos e perigos do ambiente.

Em resumo,, as autoridades da Igreja costumam caracterizar os estigmas mediante as seis seguintes notas, que se devem verificar todas sem exceção:

Aparecimento subitâneo.

Hemorragias.

Importante modificação dos tecidos do organismo.

Ausência de supuração

Cicatrização instantânea

Persistência e imutabilidade, (quando,­de fato, se dá, apesar de todos os tratamentos médicos).

Os teólogos observam ainda que os estigmas ocorrem fre­qüentemente em pessoas assinaladas por outros fenômenos ex­traordinários, como êxtase, levitação, cardiognosia (ou conhe­cimento dos corações), dom das línguas, inapetência parcial ou total, abstenção completa ou quase completa de sono…

2. Existem, além dos estigmas visíveis, os chamados «estigmas invisíveis». Estes fazem que a pessoa se sinta como que ferida ou cha­gada em seu íntimo, experimentando atrozes dores, sem que todavia isto se manifeste na carne. O caso mais famoso é o de Sta. Catarina de Sena († 1380), que, dirigindo-se ao bem-av. Raimundo de Cápua, seu confessor, assim descreveu o que ela experimentou:

«Tendo pedido a vida eterna para V. Revma. e para as outras pes­soas por quem eu orava, o Senhor prometeu atender-me. Então disse-lhe eu, não por incredulidade, mas para guardar ainda melhor recordação dessa graça: ‘E que sinal me dareis, Senhor, de que os salvareis?’ Respondeu o Senhor: ‘Estende a mão em direção a Mim’. Estendi-a, e Ele me apresentou um prego; a ponta deste, Ele a fincou no meio de minha mão, e calcou-a tão fortemente que me parecia que a estava per­furando de lado a lado. Experimentei dor tão viva como a que eu sofre­ria se me traspassassem a mão com um cravo de ferro a golpes de mar­telo. Assim, pela graça de meu Senhor Jesus Cristo, tenho um estigma na mão direita, e, embora ninguém veja essa chaga, ela me causa dor sensível e contínua».

No momento preciso em que a santa recebia tal ferimento (sinal de graças para aqueles por quem ela rezava), o bem-av. Raimundo de Cápua, seu confessor, que então não estava pensando em assuntos ex­plicitamente piedosos, experimentou fervor e devoção tais quais nunca até então conhecera (Bolandistas, 30 de abril, pág. 910, n° 193).

A mesma santa, em diálogo com o seu confessor, relatou como, além da imperceptível chaga da mão, recebeu outros estigmas invi­síveis:

«Vi o Senhor crucificado que descia em direção a mim em meio a grande claridade. A minha alma impetuosamente quis então saltar ao encontro do Criador – o que fez que meu corpo se levantasse do chão (onde estava prostrado). Naquele momento vi que das cicatrizes das santíssimas chagas do Senhor emanavam cinco raios de sangue, os quais desciam, dirigindo-se às minhas mãos, aos meus pés e ao meu coração. Compreendi o mistério e logo exclamei: ‘Ah! Senhor meu Deus, suplico-Vos que as cicatrizes não fiquem manifestas no meu corpo’. Ainda estava falando, quando os raios, antes de me atingir, mu­daram sua cor de sangue em alvura refulgente. Foi sob a forma da luz pura que eles me tocaram em cinco partes do corpo: nas mãos, nos pés e no coração».

Perguntou então Raimundo: «Não lhe chegou raio algum ao lado direito do peito?» – «Não. disse a santa; um feixe de raios atingiu-me no flanco esquerdo, diretamente sobre o coração, pois esse traço de luz, saindo do lado direito de Jesus, encaminhou-se para mim não em linha oblíqua, mas em reta».

Continuou Raimundo: «Experimentou alguma dor?»

Após longo suspiro, respondeu ela: «A dor que sinto nesses cinco lugares, principalmente no coração, é tão grande que, se o Senhor não fizer novo milagre, me parece impossível viver com tal dor sem termi­nar em breve os meus dias» (Bolandistas, 30 de abril, pág. 910, n° 194-6).

O motivo pelo qual a santa pedia que os estigmas não lhe impri­missem marca visível, era a modéstia ou o desejo de não chamar a atenção para essa graça extraordinária.

Rapidamente delineado o fenômeno da estigmatização, lan­cemos um olhar sobre a história e vejamos como o dito fenô­meno, através dos séculos, aparece ao observador.

II. O depoimento da história

A estigmatização é fenômeno característico da piedade católica ocidental a partir do séc. XIII (o primeiro caso regis­trado é o de São Francisco de Assis, em 1224).

No Oriente apenas se poderia apontar um caso – o de Naszti Vo­loszen – ocorrido recentemente entre os católicos ucranianos unidos e estudado pelo Dr. G. Costelnek (cf. artigo em «Christos Nasza Sela», de 12 de abril de 1936).

Fala-se outrossim de um caso de estigmatização verificado há pou­cos anos atrás na Alemanha em uma jovem protestante (Elisabete) internada no sanatório do Dr. Lechler. A paciente, porém, parece ter sofrido a influencia de Teresa Neumann, estigmatizada católica, da qual o Dr. Deutsch muito falava à jovem protestante. Esta se terá dei­xado sugestionar pelas narrativas assim recebidas, de modo que a sua conseqüente estigmatização não é tida como fruto direto da piedade protestante.

Nem entre os muçulmanos, cuja tempera religiosa é, aliás, muito férvida, jamais se registrou caso de estigmatização. Esta nem sequer entra no horizonte de suas cogitações e aspirações.

Voltando ao Ocidente católico, devemos mencionar o levan­tamento efetuado, no decurso de vinte e cinco anos de pesquisas pacientes e tenazes, pelo Dr. A. Imbert-Gourbeyre, professor da Faculdade de Medicina de Clermont-Ferrand. Conseguiu enu­merar 321 casos de pessoas estigmatizadas (41 homens e 280 mulheres, ou seja, um caso masculino para sete femininos); cf. Imbert-Gourbeyre, La stigmatisation, l’extase divine et les mira­cles de Lourdes. Réponse aux libres-penseurs. Clermont-Ferrand 1894.

Acrescentando-se a essa lista os nomes dos estigmatizados posteriores (dos quais há dois famosos hoje existentes: o Pe. Pio de Pietralcina, capuchinho, e Teresa Neumann), obtém-se um total aproximado de 350 pessoas portadoras do fenômeno.

Os estigmatizados referidos pelo Dr. Imbert-Gourbeyre distribuem-se do seguinte modo: 229, na Itália; 70, na França; 47, na Espa­nha; 33, na Alemanha; 15, na Bélgica; 13, em Portugal; 5, na Suíça; 5, na Holanda; 3, na Hungria; 1, no Peru.

Dentre os estigmatizados pertencentes a Ordens ou Congregações Religiosas (os quais constituem a grande maioria), o mesmo Dr. Imbert-Gourbeyre contava 109 dominicanos, 102 franciscanos (dos quais uma quarta parte é de Clarissas), 14 carmelitas, 14 ursulinas, 12 visitandinas, 8 agostinianos, 3 jesuítas e alguns casos isolados em tal ou tal Congregação.

Acontece, porém, que os estudiosos mais recentes julgam pouco crítica a obra de Imbert-Gourbeyre; os resultados numé­ricos que apresenta, parecem excessivos.

Hoje enunciam-se cerca de 80 estigmatizados que a Sta. Igreja declarou bem-aventurados ou santos:

S. Francisco de Assis, Sta. Margarida de Cortona, Sta. Mectildes… filhos do séc. XIII;

Sta. Gertrudes, Sta. Clara de Montefalco, Sta. Catarina de Sena, do séc. XIV;

Sta. Francisca Romana, do séc. XV…

Note-se, porém, que a Santa Igreja, ao beatificar ou canonizar al­gum de seus filhos estigmatizados, de modo nenhum intenciona pronun­ciar-se sobre a origem e a índole (natural, preternatural, neurológica ou não) dos respectivos estigmas. Por ocasião da canonização de Sta. Gema Galgani (que, conforme as fontes históricas, teria recebido os estigmas em 1899), a Santa Sé chegou a declarar explicitamente que desejava não proferir juízo algum sobre tal fenômeno atribuído à santa (cf. AAS 24 [19321 57). São Pio X, aliás, definiu claramente a posição da S. Igreja frente aos fenômenos extraordinários: «A Igreja não se empenha… pela veracidade de tais episódios; simplesmente ela não proíbe que os fiéis dêem crédito a coisas para as quais não faltam motivos de credi­bilidade humana» (cf. Janssens, Les faits mystérieux de Beauraing 93).

Em outros termos: a aceitação ou a rejeição de casos de estigmatização não é do setor da fé ou da dogmática (a menos que a Santa Igreja o declare explicitamente); por conseguinte a atitude dos fiéis católicos frente a tais fenômenos poderá e deverá reger-se pelos argu­mentos humanos, que se apresentem em favor ou em contrário de cada um dos respectivos casos.

Há três ocasiões em que a S. Liturgia celebra a estigmatização de um santo: a de São Francisco de Assis, aos 17 de setembro; a de Sta. Catarina de Sena, a 1º de abril (no calendário da Ordem Domini­cana, por concessão do Papa Bento XIII em 1727); e a de Sta. Teresa de Ávila (na Ordem Carmelita). Nem mesmo estas celebrações poderão ser equiparadas a definições dogmáticas; por tais atos, a Sta. Igreja apenas reconhece haver benefícios espirituais decorrentes da devoção que os fiéis experimentam ao contemplar a apregoada estigmatização dos referidos santos (a Sta. Igreja, por conseguinte, não se empenha pelos «fatos», mas pelas conseqüências subjetivas que os mencionados fatos tem na piedade popular).

Após esta sumária consideração do material que a história apre­senta ao estudioso, importa-nos indagar:

III. Como explicar as estigmatizações?

a) Embuste e impostura?

Registraram-se casos em que evidentemente os fenômenos de estigmatização se reduziam simplesmente a fraude e mentira da parte dos «estigmatizados».

Tal é, por exemplo, o que se deu com Angela Hupe (da Vestfália), a qual provocava falsos estigmas maltratando o seu corpo mediante fragmentos de vidro; … com Teresa Stoedele, de Bohlingen, que para tanto se servia de pregos. Eustáquio de Pádua, em estados paranormais ou faquíricos, traspassava os seus pés com um prego e o seu flanco com um facão (a respeito do faquirismo, cf. «P.R.» 33/1960, qu. 4). Também Roberto de Montferrand (1234) perfurava suas próprias mãos e seus pés às sextas-feiras, desejoso de imitar a Paixão de Nosso Senhor (pode-se supor que o fizesse de boa fé).

Não foi sempre fácil aos observadores desmascarar os embustes. Tenha-se em vista o ocorrido com Carolina Boller, de Warburg. Apre­sentava estigmas que sangravam às sextas-feiras. Os peritos então en­volveram-lhe as mãos em ataduras lacradas; não obstante, verificou-se o habitual derramamento de sangue, sem que o invólucro lacrado pa­recesse ter sido violado. À vista disto, os estudiosos resolveram colocar uma folha de papel muito tênue entre as ataduras lacradas e a pele das mãos; a seguir, verificaram furos muito delgados nesse papel, os quais indicavam que um objeto pontiagudo havia sido aplicado. A paciente então confessou que usava de artifícios para reproduzir os estigmas de São Francisco de Assis.

O Pe. Agostinho Gemelli, médico e Reitor da Universidade Católica de Milão, estudou trinta casos de estigmatizados, declarando por fim que, em nenhum deles, conseguira eliminar peremptoriamente a hipó­tese de manobra artificial por parte dos pacientes (o que não quer dizer que fossem impostores, mas apenas que não se podiam prestar a conclusões rigorosas).

Fonte freqüente de imposturas e falsificações é a histeria de que possam estar afetados os pretensos estigmatizados. Todo histérico, no dizer dos bons médicos, é essencialmente um enga­nador ou mentiroso, ora mais, ora menos consciente; sua índole própria leva-o a encenar com habilidade surpreendente. Seu poder de sedução pode ser aguçado pela contemplação de qua­dros carregados de traços dramáticos, que muito excitem a afe­tividade.

Assim o Dr. Brueck relata o caso de jovem histérica tida por mís­tica. Durante dezoito meses pareceu viver alheia à realidade cotidiana, sem ingerir a mínima parcela de alimento; entrementes, de sua boca escorria sangue. Foi, no decorrer de dias e noites, submetida ao con­trole de concidadãos seus, os quais declararam que a fraude, no caso, era impossível. A vista disso, as autoridades civis e os médicos manda­ram transferir a jovem para fora da sua casa de família, onde os pro­dígios se verificavam. Em conseqüência, tudo cessou imediatamente; a fraudulencia e os artifícios empregados pela donzela foram desmasca­rados.

Deixemos agora de lado a explicação por embuste, para indagar se não há estados afetivos ou emocionais que, sem intenção enganadora da parte do paciente, ocasionem fenômenos semelhantes à estigmatização. – Será este o objeto do exame abaixo.

b) Os estigmas e a ciência.

Médicos e psicólogos têm confrontado os fenômenos de estigmatização com manifestações meramente naturais de índole fisiológica ou psicológica.

Lembram principalmente a existência de certas enquimoses (manchas de sangue) produzidas por emoção, independentes de traumatismo físico ou de golpes corpóreos e geralmente ocor­rentes em pessoas do sexo feminino. Têm importância particular em medicina legal.

Eis um caso assaz significativo, estudado pelo Dr. Magnus Huss

Uma jovem se queixava de haver sido maltratada por seu patrão, mostrando com ênfase os vestígios de golpes e hemorragias no couro cabeludo. Os médicos houveram por bem submete-la a exames, e ave­riguaram que o sangue da donzela emanava pelos poros capilares da cabeça, sem rasgar a pele; da mesma forma escorria sangue dos cílios e das mucoses; tais derramamentos eram acompanhados de enquimoses na parte esquerda do corpo da jovem. Esta de modo nenhum fora es­pancada ou maltratada, mas atravessava crises emotivas de grande veemência: assim, no decorrer das suas hemorragias, mostrava-se ora inquieta e delirante, ora abatida e prostrada; dias antes de passar por tais fenômenos, pressentia-os, caindo em estado de ansiedade. A análise médica do sangue derramado confirmou o diagnóstico: o líquido só continha glóbulos vermelhos, o que dava a ver que as hemorragias não eram de tipo ordinário, mas, como concluíam os estudiosos, afetivas e emocionais.

Bergeret, por sua vez, refere a história de uma Religiosa extática, que apresentava ferimentos, atribuindo a sua origem ora ao demônio, ora a um membro de sua família contrariado. Contudo, após demorados exames, Bergeret verificou que se tratava apenas de enquimoses psico­páticas (isto é, produzidas por fatores emocionais). Nas mulheres, tais hemorragias são mais freqüentes que nos varões, pois elas podem tomar o lugar dos fenômenos de regras e menstruação.

Em geral, as enquimoses produzidas por estados afetivos se distribuem irregularmente pelo corpo do paciente. Contudo podem também tomar configuração simbólica.

Assim o fisiologista Brown-Sequard narra ter prestado assistência a uma mulher a qual viu seu filho precipitar-se pela janela, ferindo-se no braço esquerdo; logo no dia seguinte tal senhora trazia no seu braço esquerdo enquimoses e uma chaga, cuja cicatrização foi muito lenta; Carl du Prel refere que certa vez um homem assistiu ao suplício do torniquete infligido a um réu; alguns instantes depois, estava marcado por enquimoses nas mesmas regiões em que o condenado fora atingido. Doutra feita, uma mulher viu seu filho enfiar a cabeça pelo cano de uma chaminé, em uma aventura perigosa; conseguiu salvá-lo, mas apa­receu mais tarde recoberta de manchas sanguíneas no pescoço.

A produção de enquimoses emotivas ainda é mais vultuosa nos estados de hipnose e histeria, em que a vibratilidade do pa­ciente se torna mais sensível: as sugestões do ambiente atuam então com muito mais pujança sobre a pessoa.

O Dr. Schindler, por exemplo, observou o episódio de uma jovem histérica que foi colocada junto a uma doente atingida por enquimoses nas pernas; logo que a donzela avistou as manchas desta paciente, exclamou: «Tenho a mesma coisa». Os observadores então lançaram um olhar para a histérica, e com grande surpresa verificaram que de fato ela trazia na região das tíbias as mesmas marcas que a outra doente. – Também por sugestão, implícita ou explícita, podem as enquimoses e as dores concomitantes desaparecer.

Em uma palavra: os autores geralmente admitem no ser humano a faculdade da ideoplastia, isto é, de tornar «plástica», sensível, alguma idéia ou alguma atitude da mente: o psíquico tende assim a se traduzir no físico ou em sinais do corpo do respectivo sujeito. A ideoplastia existente em certas pessoas num grau mais apurado explicaria que algumas noções, captadas por sugestão do ambiente ou concebidas por iniciativa do próprio sujeito, provoquem uma correspondente alteração nos tecidos e nas funções do organismo (daí hemorragias, enquimoses, es­tigmas… ) .

No papel de concretizar ou configurar as idéias que se referem à dor, costuma-se atribuir importância especial a um composto químico chamado histamina. Com efeito; toda sensação de dor provoca no orga­nismo a secreção dessa substância, da qual uma das propriedades mais características é a de dilatar os vasos sanguíneos; daí se seguiriam as hemorragias e enquimoses, que, como vimos, certos autores tendem a equiparar aos estigmas dos místicos.

Estes dados já são suficientes para indagarmos: que diz de tais explicações médico-científicas a Teologia?

IV. Os estigmas e a Teologia

1. É claro que o teólogo de modo nenhum nega os fenômenos naturais que se possam confrontar com os estigmas dos santos ou de pessoas religiosas.

Notamos outrossim que a Teologia e o seu genuíno porta-voz – o magistério da Igreja – não fazem questão de defender a índole sobre­natural dos episódios de estigmatização descritos pelos historiadores. Caso haja fraude nesses fenômenos, a Igreja a reconhece sem dificul­dade. Em geral, enquanto nada o dissuade, a Igreja permite que seus filhos creiam na índole sobrenatural dos episódios de estigmatização que tenham em seu favor razões plausíveis. Raramente, e só após muito estudo, Ela se pronuncia positivamente em favor deste ou da­quele caso (os estigmas de S. Francisco de Assis têm sido reconheci­dos de modo especial, sem, porém, que a Igreja intencione definir algo a respeito).

2. Embora aceitem tudo que a ciência possa apontar para elucidar os fenômenos de estigmatização, os teólogos geralmente julgam que nenhuma das teorias dos médicos ou psicólogos for­nece plena explicação das estigmatizações religiosas; elas eluci­dam, sim, um ou mais traços de tais fenômenos, mas não dão conta de tudo que aí ocorre.

Eis as principais diferenças registradas entre chagas e enquimoses comuns, de um lado, e, de outro lado, os estigmas religiosos

1) estes são, como dissemos, refratários a todo tratamento médico; não podem ser curados por terapêutica humana; às vezes, é de crer que cicatrizam e desaparecem instantaneamente, como narram os biógrafos de Sta. Gema Galgani;

2) os estigmas religiosos apresentam geralmente um aspecto sim­bólico (significam a Paixão de Cristo), em vez de ser, como as chagas naturais, lesões localizadas em qualquer parte do corpo e destituidas de configuração precisa.

Com efeito. Os estigmas costumam aparecer nos lugares em que Cristo foi mais ferido em sua santíssima Paixão (nas mãos, nos pés, no flanco, nas espáduas, na cabeça… ); tem uma aparência simétrica ou geométrica bem definida (os de S. Francisco de Assis, par exemplo, tinham o aspecto de cabeça e pontas de pregos), à diferença do que se dá com ferimentos devidos a perturbações do organismo ou a acidentes.

Levando em conta estes diversos elementos, os teólogos concluem que as genuínas estigmatizações religiosas não são fenômenos meramente naturais, mas também não são algo de puramente preternatural ou sobrenatural. Em outros termos são fenômenos que Deus suscita de maneira extraordinária, ser­vindo-se de predisposições ordinárias ou naturais (físicas, psí­quicas, históricas… ) dos respectivos sujeitos humanos.

A distinção entre natural, preternatural e sobrenatural se acha explanada em «P.R.» 28/1960, qu. 2.

Assim torna-se claro o seguinte: é, de um lado, porque Deus intervém nas estigmatizações religiosas que estas apresentam as duas características ou diferenças acima indicadas. Doutro lado, é porque há um elemento humano ou natural nas estigmatizações religiosas que se explica, só tenham aparecido no séc. XIII, e apenas na piedade ocidental: justamente nessa época os fiéis no Ocidente voltaram mais e mais a sua atenção para o aspecto doloroso da Paixão de Cristo (aspecto que na antigüidade era menos focalizado, pois os cristãos costumavam ver na cruz à nova árvore da vida ou o instrumento da vitória de Cristo sobre o pecado).

Na Alta Idade Média, os orantes ocidentais passaram a se deter na contemplação das chagas e dos sofrimentos de Cristo; em conseqüência, conceberam o desejo de compartilhar, à guisa de expiação, os padecimentos do Salvador (haja vista, por exem­plo, a piedade de São Bernardo, antessignano da tendência). – A essa atitude psicológica o Senhor houve por bem corres­ponder concedendo aos fiéis a graça de poderem, de maneira ex­traordinária, participar realmente dos sofrimentos do Redento, daí a reprodução das chagas de Cristo em alguns justos. Como se vê, a contemplação e o desejo terão, por assim dizer, excitado o carisma ou o dom extraordinário de Deus; o Senhor, porém, não derramou esse dom extraordinário em qualquer cristão, mas, sim, naqueles que ofereciam uma constituição físico-psíquica es­pecialmente vibrátil, um sistema nervoso mais sensível ou exci­tável; tratava-se em geral de organismos debilitados pela ascese ou por prolongados jejuns e penitencias; tratava-se também de organismos femininos, mais sujeitos a hemorragias do que os­ masculinos.

Contudo note-se bem que as predisposições físicas não explicariam de modo cabal a fenomenologia dos estigmas religiosos. Deus apenas quis servir-se dessas predisposições…, e quis servir-se delas para torná-las sinais,… sinais da santidade de vida ou da veracidade de doutrina das pessoas agraciadas. Assim, em última análise, o que habilita o estudioso a distinguir as estigmatizações genuínas, provocadas por Deus, das chagas mera­mente naturais ou das que o demônio possa de algum modo produzir, é o contexto religioso do fenômeno, isto é, a virtude e a pureza de fé ou de intenção do respectivo sujeito; na verdade, os estigmas religiosos desempenham o papel de sinete divino im­presso a uma realidade humana; ora Deus só pode colocar seu sinete sobre a verdade e o bem; Ele só pode produzir fenômenos extraordinários para confirmar a autenticidade de doutrina ou de vida da pessoa agraciada: Ele não o faria apenas para denun­ciar o desequilíbrio físico ou psíquico do paciente.

Um episódio da vida de Santo Inácio de Loiola ilustra muito bem quanto acaba de ser dito:

Certa vez o Religioso dominicano Frei Reginaldo, homem ponde­rado e virtuoso, foi ter em Roma com Inácio de Loiola, a quem propôs o caso de uma Religiosa dominicana que junto ao seu convento, em Bolonha, gozava de favores extraordinários: orava, sim, com tal inten­sidade que freqüentemente era arrebatada fora de si e já nem sequer sentia a aproximação do fogo ou as punções que se lhe fizessem; trazia os estigmas do Senhor nas mãos e no flanco; tinha a cabeça como que dilacerada por espinhos, a derramar sangue. Morta para todas as coisas, só se rendia à obediência: logo que ouvia o chamado de Madre Priora, voltava a si, como se despertasse do sono.

Frei Reginaldo, admirado por quanto vira, não sabia se o devia, aprovar ou não, e pedia o parecer de Inácio. Este respondeu que, de tudo que Reginaldo relatara, uma só coisa devia ser levada em consi­deração, isto é, a prontidão da Religiosa para obedecer: esta seria a pedra de toque para se avaliar se os respectivos prodígios provinham de Deus como graças extraordinárias (neste caso, seriam sinais para confirmar a santidade de vida da Religiosa) ou, antes, provinham de­ algum estado patológico (histeria, neurose…) ou mesmo do demônio (cf. Vida de S. Inácio, por Ribadeneira, Acta Sanctorum, julho t. VII 778).

Ó admirável sabedoria cristã, que sabe guardar a hierarquia dos valores! Acima de qualquer outro bem, está a virtude, que dá a posse, do próprio Deus, embora ela pouco ou nada impressione. Os outros bens.­ainda que mais impressionem, são menos ricos.

Do que dissemos se depreende que a Teologia não julga essenciais os prodígios extraordinários na vida dos santos. Somente Deus sabe a quem deve distribuir os seus carismas. Independentemente destes, o programa de santificação fica sendo sempre o mesmo para qualquer cristão: renunciar ao velho homem e cultivar a virtude.

3. As considerações até aqui propostas ainda projetam luz sobre um aspecto misterioso das estigmatizações: os santos e justos recebe­ram as suas chagas nas palmas da mão… Ora hoje e assevera na base de seguras experiências, que Cristo não pode ter sido traspassado nas palmas das mãos, mas nos punhos (pois os ossos e os tecidos das pal­mas não ofereceriam resistência à dilaceração causada pelos cravos). – O enigma se elucida desde que se leve em conta que o Senhor, me­diante o seu dom extraordinário, correspondia à atitude psicológica dos fiéis. Ora estes, na Idade Média e ainda em época recente, costumavam contemplar o Cristo crucificado nas palmas, e não nos punhos (a icono­grafia até hoje representa geralmente Jesus com as mãos traspassadas pelos cravos).

Haja vista, por exemplo, o que refere o biógrafo de Sta. Gema Galgani:

«Para ter idéia do seu lamentável estado, lembrai-vos do grande crucifixo do nosso refeitório, ao pé do qual Gema tanto gostava de rezar. A semelhança era exata: as mesmas chagas, as mesmas dilace­rações da pele e da carne nas mesmas partes do corpo, e o mesmo aspecto comovedor» (trecho citado por Ch. Journet, em «Etudes Carmélitaines» 1936 II pág. 180 n. 1).

Para explicar remotamente este fato, pode-se recorrer ao fenômeno natural da ideoplastia, de que tratamos atrás (cf. pág. 221).

A esta altura põe-se obviamente a questão: e que pensar em par­ticular dos estigmas de Teresa Neumann e do capuchinho Pe. Pio de Pietralcina? — Trata-se de casos ainda em observação, a propósito dos quais as opiniões divergem, de modo que seria prematuro definir-se a respeito. Poderão ser futuramente abordados em «P. R.».

 

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